A chantagem nuclear
Ao substituir sua política de contenção pela de guerra preventiva e inventar o “eixo do mal”, Bush cometeu a imprudência de provocar a Coréia do Norte que, ameaçada por um “ataque preventivo”, tomou a iniciativa de colocar Washington na paredeBruce Cumings
Em 1991, o governo de George Bush pai ficou preocupada com as atividades do complexo nuclear norte-coreano de Yongbyon, que abriga um reator de grafita. O Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), no entanto, atribui direitos de auto-defesa a países não-detentores de armas nucleares que estejam sob ameaça desse tipo de armamento. Os Estados Unidos o possuíam – artilharia, minas terrestres, bombas e mísseis Honest John (de 1958) – na Coréia do Sul. Bush pai estabeleceu as primeiras conversações com Pyongyang, tendo o armamento nuclear americano sido retirado da Coréia do Sul um pouco antes de o presidente deixar a Casa Branca. Ao chegar ao poder, Clinton acabou com este tipo de diplomacia: só tinha olhos para a economia e não prestou qualquer atenção, inicialmente, à República Popular Democrática da Coréia (RPDC).
Em 1994, a Coréia do Norte retirou oito mil barras de combustível irradiado, com plutônio suficiente para a fabricação de várias bombas atômicas
Seis semanas após sua posse, a Coréia do Norte afirmou que os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) estavam sob as ordens dos serviços de informação norte-americanos e anunciou sua retirada do TNP. Mobilizando seu formidável aparelho de propaganda, qualificou como “ato de guerra” possíveis sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A crise assim iniciada pelo finado Kim Il Sung iria durar 18 meses e se agravar dramaticamente em maio de 1994, quando a Coréia do Norte retirou do reator de Yongbyon 8 mil barras de combustível irradiado, contendo plutônio suficiente para a fabricação de cinco ou seis bombas atômicas. No final de junho de 1994, Clinton esteve a dois passos de declarar guerra à Coréia do Norte. O ex-presidente James Carter deslocou-se a Pyongyang, onde se encontrou pessoalmente com Kim Il Sung e obteve o compromisso de um congelamento total do funcionamento do complexo de Yongbyon.
Uma crise que vem de longe
O acordo de outubro de 1994 entre os Estados Unidos e a RPDC ratificou esse compromisso. A AIEA lacrou o reator de Yongbyon, armazenou as barras de combustível irradiado em contêineres de concreto e monitorou a instalação durante os últimos oito anos. Em seguida, o governo Clinton procurou chegar a um acordo global, propondo ajuda econômica a Pyongyang em troca da paralisação de seu programa nuclear. Entre 1998 e 2000, William Perry, embaixador itinerante do presidente Clinton, propôs os termos de um reconhecimento diplomático mútuo e da compra de todos os mísseis norte-coreanos1. Isso quando os serviços de informação norte-americanos tinham provas de que a Coréia do Norte tinha começado a importar, em 1998, tecnologias relacionadas a um novo programa nuclear de enriquecimento de urânio. Na época, os republicanos manifestaram sua insatisfação com a complacência do governo para com um “Estado delinqüente”.
A atual crise foi oficialmente desencadeada após a visita a Pyongyang, entre 3 e 5 de outubro de 2002, do subsecretário de Estado para assuntos do Pacífico e da Ásia Oriental, James Kelly, que retornou com provas da retomada do programa nuclear norte-coreano. Após negarem inicialmente, os norte-coreanos acabaram por admitir o fato. Em 1998, Pyongyang teria concluído com Islamabad um acordo, que previa a transferência de mísseis norte-coreanos para o Paquistão, em troca da tecnologia paquistanesa de enriquecimento de urânio. O processo é muito lento, mas se os norte-coreanos envidarem esforços, com a ajuda das mil centrifugadoras emprestadas, poderão fabricar anualmente, segundo o modelo paquistanês, uma ou duas bombas atômicas de grande porte. Pouco tempo após Kelly ter retornado a Washington, uma autoridade norte-americana declarou aos jornalistas que o acordo de 1994 sobre a suspensão do reator de Yongbyon fora cancelado e anulado.
Prepotência e desprezo de Bush
O ex-presidente James Carter deslocou-se a Pyongyang e obteve o compromisso de um congelamento total do funcionamento do complexo de Yongbyon
Tratava-se na verdade de uma profecia auto-realizadora, uma vez que os conselheiros de Bush afirmaram, pouco após sua chegada à Casa Branca, considerar o acordo como letra morta2. Além do mais, Washington inverteu a política até então vigente, de contenção (containment), substituindo-a por uma de guerra preventiva (compellence), com Bush inventando o “eixo do mal”.
No caso da Coréia do Norte, o presidente norte-americano entregou-se a ataques gratuitos e incessantes contra Kim Jong-il, demonstrando menosprezo total pela política de reconciliação empreendida por Seul. O presidente da Coréia do Sul, Kim Dae Jung, prêmio Nobel da paz, ouviu do presidente Bush, em março de 2001, que o líder norte-coreano não era digno de confiança (como se o acordo de 1994 tivesse por base a confiança e não a vigilância). Por ocasião de uma entrevista recente com o jornalista Bob Woodward, Bush afirmou que “detest(a)va Kim Jong-il”, acrescentando que preferiria “derrubar” o regime norte-coreano3.
Em 27 de dezembro de 2002, a RPDC expulsou novamente os inspetores da AIEA – denunciando o organismo como instrumento de Washington – e começou, em seguida, a carregar o reator de Yongbyon com novas barras de combustível. Em 10 de janeiro de 2003, anunciou que se retirava do TNP e que qualquer sanção que lhe fosse imposta pelo Conselho de Segurança da ONU seria considerada uma “declaração de guerra”. Mas evitou, até o momento, abrir os contêineres com o combustível irradiado.
Um “golpe cirúrgico” do Pentágono
A atual crise foi oficialmente desencadeada no início de outubro de 2002, quando foi comprovada a retomada do programa nuclear norte-coreano
Washington declara não negociar com os norte-coreanos, afirmando que isso seria ceder à “chantagem nuclear”. Também não seria o caso de reconhecer o regime, coisa que os Estados Unidos se recusam a fazer desde a subida ao poder de Kim Il Sung, em 1946. Aquilo que se acreditava ser a essência da posição norte-americana fora anunciado por William Perry, secretário da Defesa do governo de Clinton, que declarou, em 1994: “Não queremos a guerra e não vamos provocar a guerra na Coréia nem sobre esta ou qualquer outra questão”. Mas se as sanções impostas pelas Nações Unidas “levarem os norte-coreanos a entrar em guerra… correremos o risco4“. O presidente Clinton não correu esse risco, pois o general Gary Luck o informou que uma nova guerra duraria seis meses e poderia fazer até 100 mil vítimas norte-americanas.
Atualmente, Bush afirma que os Estados Unidos não têm a intenção de “invadir” a Coréia do Norte, mas que os falcões do Pentágono preparam um “golpe cirúrgico” contra Yongbyon. Na realidade, a decisão tomada em setembro de 2002 de confiar o problema das armas de destruição em massa (ADM) do Iraque ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e à AIEA forneceu a ocasião para que Pyongyang desse início à crise atual. Bush previa agir contra o “eixo do mal” segundo uma ordem: inicialmente, Saddam Hussein, em seguida, a Coréia do Norte, e depois o Irã. Apressado, Kim Jong-il alterou a ordem das operações.
A opção não-diplomática dos EUA
Um acordo de 1998 previa a transferência de mísseis norte-coreanos para o Paquistão, em troca da tecnologia paquistanesa de enriquecimento de urânio
Após quase dois anos de uma política externa norte-americana que combina o realismo mais duro com o idealismo messiânico, era inevitável que um dos países do “eixo”, ameaçados por um ataque preventivo, tomasse a iniciativa e colocasse Washington contra a parede. Kim Jong-il não fez outra coisa. Suas provocações recentes permitiram-lhe reforçar sua posição, enquanto Bush não tirava os olhos do Iraque. A Coréia do Norte acredita que os Estados Unidos não dispõem de meios para sustentar duas guerras importantes ao mesmo tempo. E mais, como poderia Bush justificar uma nova guerra devastadora? Foi ele que pôs fim à tentativa quase bem-sucedida de Clinton de comprar os mísseis norte-coreanos de médio e longo alcance e de continuar a política de congelamento nuclear.
Determinadas fontes revelam que, por ocasião de sua saída, a assessoria de Clinton colocou a equipe de Bush a par das informações obtidas acerca das importações norte-coreanas de tecnologia paquistanesa de enriquecimento do urânio. Ora, o governo Bush nada fez antes de julho de 2002, data em que recebeu informações indicativas de que a Coréia do Norte havia provavelmente iniciado a construção de uma instalação para enriquecimento de urânio 5. Inúmeros especialistas avaliam que decididamente Pyongyang afastou-se de seus compromissos ao importar essas tecnologias. Mas teria sido possível congelar sua utilização caso tivesse sido tentado obter o acordo sobre os mísseis e tivessem sido normalizadas as relações entre os Estados Unidos e a RPDC. Ao mudar o fuzil de ombro, a equipe de Bush transformou um problema solucionável em uma grave crise, que deixa pouca margem de manobra a ambas as partes.
O apoio de Washington à ditadura
Bush entregou-se a ataques gratuitos e incessantes contra Kim Jong-il, demonstrando menosprezo total pela política de reconciliação empreendida por Seul
O perigo provém de uma conjugação de fatores: as provocações previsíveis da Coréia do Norte, a intenção norte-americana de utilizar armas nucleares desde o início do conflito e a doutrina de guerra preventiva de Bush: o direito dos Estados Unidos atacarem um país sobre o qual pensam que poderão vir a ser atacados. A este perigo se acrescenta uma nova ameaça contra a estrutura de dissuasão existente na península. Segundo o general James Grant, responsável pelas informações militares na Coréia entre 1989 e 1992, o progresso norte-americano com munições de precisão fez com que seja possível, a partir de agora, destruir os 10 mil tubos de artilharia escondidos nas montanhas ao Norte de Seul até agora inacessíveis, constituindo a principal defesa da RPDC contra uma eventual agressão por parte da Coréia do Sul. Se este é o caso, e na ausência de garantias de segurança confiáveis, os generais de Pyongyang se voltarão na direção de uma dissuasão mais confiável.
Estes fatos são ainda mais lamentáveis porque, desde 1998, sob instigação de Kim Dae Jung, grandes progressos foram feitos no sentido da reconciliação das duas Coréias. Pela primeira vez desde a divisão do país, em 1945, os dois chefes de Estado apertaram-se as mãos em junho de 2000, em Pyongyang. Em dezembro de 2002, os sul-coreanos romperam com o sistema de guerra fria ao eleger para a presidência, contra todas as expectativas, Roh Moo Hyun, um advogado de passado corajoso como defensor de dirigentes operários e de militantes de direitos humanos, durante o período sombrio da ditadura militar, na década de 80.
Entre a juventude, começa a surgir uma oposição à presença norte-americana na Coréia do Sul. Gigantescas passeatas ocupam a grande avenida onde fica a sede da embaixada norte-americana em Seul, reunindo ex-estudantes que participaram da agitação universitária durante a década de 80, quando a diplomacia de Washington sustentava a ditadura e apoiou a sangrenta repressão do levante de Kwangju, em 1980. Como o governo de Roh Moo Hyun está perfeitamente consciente da responsabilidade norte-americana na atual crise, Bush terá que administrar relações bastante difíceis com os dois países – a Coréia do Norte e a Coréia do Sul.
Um retorno ao acordo de Clinton?
Há vários perigos: as provocações da Coréia do Norte, a intenção norte-americana de utilizar armas nucleares e a doutrina de “guerra preventiva” de Bush
A não-proliferação baseia-se num princípio essencial: os países não-detentores de armas nucleares não podem ser ameaçados pelos que as possuem. Para obter o voto dos países não-nucleares na ratificação do TNP pelas Nações Unidas em 1968, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a URSS empenharam-se em ajudar qualquer “vítima de um ato ou ameaça de agressão que implique o recurso a armas nucleares” (resolução 255 do Conselho de Segurança, de 7 de março de 1968). Em 1996, a Corte Internacional de Justiça de Haia recomendou que o emprego ou ameaça com armas nucleares fossem proibidos, salvo em caso de “última necessidade”. A Corte, entretanto, não chegou a uma decisão com relação a saber se seria ou não justificado o recurso a estas armas em caso de auto-defesa: “A Corte, no entanto, não concluiu de forma definitiva sobre a questão de saber se a ameaça ou a utilização de armas nucleares seriam ilegais em circunstâncias extremas de auto-defesa, quando a própria sobrevivência de um Estado estiver em jogo6.” Segundo esse critério, a Coréia do Norte está mais respaldada para desenvolver armas nucleares que os Estados Unidos, que ameaçam aniquilar uma Coréia do Norte não-nuclear.
A RPDC avalia que sua própria sobrevivência está em jogo. É provável que esteja enganada, mas dentro do clima explosivo em que vive o mundo não se pode esperar que assuma riscos em uma situação tão grave. A única maneira de evitar a guerra é retornar rapidamente ao status quo de antes de 2001, ou seja, ao compromisso, ainda possível, que Clinton e Kim Jong-il estabeleceram quando da primeira crise.
(Trad.: Marinilzes Mello)
1 – Ler, de Bruce Cumings, “Périls sur la détente asiatique”, Le Monde diplomatique, maio de 2001.
2 – Contrariamente ao que afirma o governo Bush, o acordo não se opõe ao enriquecimento do urânio, mas é certo que a Coréia do Norte violou o princípio desse acordo.
3 – Ler, de Bob Woodward, Bush at War, ed. Simon & Schuster, Nova York, 2002, p. 340.
4 – Chicago Tribune, 4 de abril de 1994. Num comunicado enviado às Nações Unidas (em 10 de abril de 1996), a RPDC afirmava que “uma segunda guerra na Coréia teria eclodido se as Nações Unidas tivessem escolhido repetir a história, impondo unilateralmente ?sanções? à RPDC”.
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