A Comuna de Paris chega às telas
Autor de alguns dos melhores filmes políticos das últimas décadas, o inglês Peter Watkins termina uma obra atraente tanto pelo tema quanto pela narrativa, que estimula o distanciamento e a crítica do espectador. A dúvida é: “La Commune” chegará ao Brasil?Philippe Lafosse
“Hoje em dia, um diretor que recusa submeter-se à ideologia da cultura de massas, baseada no desprezo pelo público, que não quer adotar uma montagem frenética feita de estruturas narrativas simplistas, de violência, de ruído, de ações incessantes — em suma, que não aceita a forma única, ou o que eu chamo de “monoforma”, este diretor não pode filmar em condições decentes. É impossível”. Quem está falando assim é o cineasta Peter Watkins (nascido em 1937), um dos maiores diretores vivos que, apesar de estar filmando há mais de trinta e cinco anos, encontra, desde a metade dos anos 70, as maiores dificuldades para realizar seus projetos.
“Mais do que dificuldades”, acrescenta ele. “Desde 1976, data na qual meu último filme, Edward Munch, foi produzido profissionalmente, está sendo impossível conseguir verbas normalmente, a ponto de muita gente pensar que estou morto”. No entanto, os que tiveram a sorte de assistir a seus longas metragens — iconoclastas, críticas, complexas, rebeldes — não poderão esquecê-las tão cedo. “Hoje em dia, os produtores direcionam o dinheiro prioritariamente para a diversão. Qualquer artista que escolha outra orientação é totalmente marginalizado. A repressão, bem como a violência das mídias, estão institucionalizadas” .
Peter Watkins acabou de terminar La Commune, filme realizado nos estúdios de Montreuil — um subúrbio da periferia de Paris — com mais de cem atores, na maioria amadores. O filme foi produzido essencialmente por “13 Production”, sociedade de Marselha, “A Sétima Arte” e pelo “Museu d’Orsay”. Total do orçamento: pouco mais de 1 milhão de dólares. Assim, antes de voltar a Vilnius, na Lituânia, onde reside atualmente, o autor de War Game (1965), de Privilège (1967), de The Gladiators (1969) et de Punishment Park (1970), lega-nos um novo longa metragem sobre a voz do povo, o poder e a contestação. Um filme político que apela para o coletivo, a reflexão e a ação.
Inovador e censurado
Foi em dezembro de 1965 que a Inglaterra descobriu Peter Watkins. Tinha então 28 anos e havia sido contratado um ano antes pela televisão. Nessa época a BBC-1 exibiu um filme sobre a batalha na qual, em 16 de abril 1746, as tropas do escocês Charles Edward Stuart enfrentaram as do Duc de Cumberland. O que poderia ter sido um simples documentário impregnado de história revelou-se uma crítica ao imperialismo de corte bastante contemporâneo, já que a linguagem também nada tinha de clássica. A trama coloca um repórter televisivo sendo projetado ao passado do século XVIII, a trocar idéias com os protagonistas da batalha.
No ano seguinte, no seu novo filme The War Game, incendiário, pacifista e antinuclear (ainda para a BBC), Peter Watkins “reconstituiu sob nossos olhos o que seria uma apocalipse que destruiria não apenas o nosso passado e o nosso presente, mas também minaria por muito tempo o futuro dos homens”. [1] Nele denuncia a falta de debate sobre o arsenal nuclear, bem como a desinformação. Os difamadores de Watkins insurgiram-se contra ele e o filme foi censurado na televisão.
Punishment Park, filmado em 1970 nos Estados Unidos, fustiga uma América violenta que conspurca os direitos humanos e na qual os contestatários são considerados como “criminosos políticos”. Como nos outros casos, um filme cuja força está no efeito de realidade que dele emana. No entanto, foi retirado de cartaz depois de apenas quatro dias de exibição em Nova York.
O espectador inadvertido poderia pensar que com Edvard Munch, filmado em 1976, as coisas iriam melhorar. Este admirável filme mistura com grande finura o íntimo e o social. É ainda hoje uma das mais inteligentes e mais pujantes biografias de artista jamais realizadas. No entanto, foi mal distribuído e permanece até hoje praticamente inencontrável. Um destino bem pior estava reservado a The Journey, filme de catorze horas que capta a voz da “gente comum” de doze países, entre 1983 e 1986: nenhum canal de televisão demostrou o menor interesse por ele. Quanto a The Freethinker, uma biografia de August Strindberg e de sua esposa, a atriz Siri Von Essen, realizado entre 1992 et 1994, quem o viu?
Porém, Peter Watkins não desanima. “A sociedade norueguesa que tenta esmagar Munch é como a sociedade sueca que quer esmagar Strindberg: é a nossa própria sociedade que quer humilhar os que procuram se expressar sempre e por todos os meios. Não há somente o passado, um passado congelado sem relação com o mundo contemporâneo. Culloden ou Munch são, ao mesmo tempo, o passado, o presente e o futuro. Por isto, eu embaralho e estabeleço relações. Falar de ontem é falar de hoje. É a mesma coisa com La Commune. Às vezes a idéia que se tem do tempo é muito convencional”.
Pensamento único e “monoforma”
Apesar de dizer que La Commune poderá ser seu ultimo filme — não poderia tê-lo concretizado se não tivesse aparecido uma “oportunidade inesperada”: o acordo de Thierry Garrel com “A Sétima Arte” e o apoio decidido de Paul Saadoun, o diretor de “13 Production” — Peter Watkins não desanima. Contra toda uniformização do pensamento, contra as mídias tradicionais, coloca, de maneira muito sofisticada, suas palavras carregadas de encantador sotaque de gentleman britânico. “A televisão impôs à sociedade estruturas narrativas totalitárias sem que ninguém tivesse tempo de reagir, por causa de sua rapidez, sua arrogância e seu lado misterioso. Isto é a “monoforma”: uma torrente de imagens e de sons, juntados e montados com muita velocidade e densidade, uma estrutura fragmentada, dando porém a impressão de ser uniforme.” É esta mistura fluida e nauseante que se encontra nas novelas, bem como nos seriados policiais e nos jornais televisivos. “Apesar das aparências”, sublinha o diretor, “a ’monoforma’ é rígida e controlada, deixa de lado as possibilidades enormes e ilimitadas de assimilação pelo público, considerado imaturo pelas mídias.”
Mas o que está em jogo, como todos os filmes de Peter Watkins procuram demostrar, é o controle social e a dominação do poder. “Os profissionais das mídias têm um papel chave na manutenção dos sistemas autoritários e na escalada das violências físicas, sexuais e morais.” A televisão poderia ter sido outra coisa, um verdadeiro meio democrático de comunicação e de interação. “Mas ela está nas mãos de uma elite de poderosos intermediários, de magnatas, de executivos, de diretores de programas e de produtores que dispõem de um poder colossal e que impõem, por toda parte, a sua ideologia globalizante e comercial, cruel e cínica, recusando obviamente dividir este poder. Querem ficar tranqüilos para manipular os espíritos. Assim, imperam agora, em todo o mundo, as mesmas imagens, a mesma recusa em desenvolver responsabilidades, em criar uma relação inteligente com a comunidade.”
Para acompanhar o pensamento único teria sido criada a imagem única. Uma imagem intolerante e antidemocrática que tende a ver o público “não como seres complexos”, prossegue Peter Watkins, “mas como um mega bloco de humanidade, um alvo ideal para os publicitários e programadores obcecados pelos índices de audiência, bem como para o capitalismo e a economia de mercado.” Uma imagem e uma cultura ditas “populares”, “mas que em realidade são somente artificiais e não têm nada a ver com o povo”. Uma cultura que considera o povo como fantasma.
A responsabilidade da TV
Quem é o responsável? Peter Watkins responde sem hesitação: a televisão. “Se a televisão tivesse se engajado numa direção diferente durante os anos 60 e 70, hoje em dia a sociedade seria muito mais humana e mais justa, não tenho a menor dúvida Os efeitos produzidos pela mídia audiovisual de massa são enormes e, muitas vezes, devastadores, ainda mais porque não quisemos levar em conta o fato de que os sistemas educativos não têm cumprido sua função. A cultura de massas que foi imposta — vulgar, estreita e brutal, feita de simplismo e de curiosidade mórbida, infestada de estereótipos sexistas e chauvinistas dedicados ao culto do dinheiro — deve ser considerada responsável por muitos desastres. O impacto social da ’monoforma’ é devastador”.
Para Peter Watkins, La Commune é uma maneira de se opor à máquina emburrecedora. O filme começa por um plano-seqüência, mostrando o local da filmagem após a última cena e informando que ele foi rodado durante treze dias, pois os atores se apresentam e apresentam o seu personagem. Estamos, ao mesmo tempo, em março de 1871 e hoje. “Pedimos a todos para imaginar o dia 17 de março 1871”, dizem; o olhar da câmera se espalha, como numa reportagem e logo descobrimos dois jornalistas de uma televisão local…
O dispositivo de filmagem, o sistema de fabricação e o procedimento de narração são extremamente explícitos. Ao longo do filme, por um artifício, o espectador é sempre remetido a sua condição de espectador e, então, ao seu senso crítico. “Espero,” reafirma Peter Watkins, “que La Commune seja uma ferramenta de aprendizagem que ajude a dissecar e a questionar as convenções do cinema e da televisão. Assim, os textos dos cartazes, das legendas, bem como a minha determinação de não respeitar uma duração pré-estabelecida independentemente do assunto, estão lá para desafiar o mecanismo das mídias audiovisuais.”
Passado e presente
A aposta de La Commune é filmar principalmente as idéias, encarnar o pensamento, mostrando os mecanismos de materialização das idéias e como elas se tornam atos. De tudo isto resulta um filme sobre a idéia da Comuna, esta idéia sempre viva na qual se vê a rebelião do povo de Paris não como uma derrota, mas como o início de uma reflexão, o começo de uma concepção de solidariedade e de participação. Há muitos paralelos com a nossa época: o racismo, o lugar e o papel das mulheres, a repartição das riquezas, a globalização, a censura, a falência da escola…
Quem for assistir a este filme não deve esperar descobrir personagens famosas da época como Louise Michel, Jules Vallès e outros insurrectos: não é esse o objetivo. Movido por um grande desejo de exatidão histórica, o projeto é, porém, muito mais ambicioso, por ser multiforme.
É a fala do povo, o nascimento desta fala e a democracia neste início do século XXI. É também a difícil elaboração de um discurso e de uma iniciativa coletiva, já que La Commune também não é o elogio do primeiro poder revolucionário proletário: perplexidades, vacilações, divergências individuais e conflitos não são ocultados. De fato, é mais uma vez a vontade de não realizar um filme unívoco e de empurrar para adiante as fronteiras habituais entre o público e as mídias, embora o diretor, vigilante, tenha “consciência de não ter evitado todas as armadilhas”.
Comenta o produtor Thierry Garrel que “o filme permite interrogar-se sobre que tipo de ferramenta a televisão é e sobre o papel que ela pode ocupar na intervenção social. É um abacaxi no pântano da produção audiovisual”. Obra rebelde que se desenrola lentamente (durante mais de 5 horas!), sob o signo atormentado da esperança de mais democracia.
“Quando o assunto vale a pena, a duração não é um problema,” afirma ainda Thierry Garrel. “Estamos prontos para atropelar a programação de uma noite”. [2] Mas para o cinema, o filme, mesmo em versão abreviada, ainda não encontrou distribuidor.
Porém Peter Watkins, que está na Lituânia, não abandona a luta: “É a democracia que está em jogo. As formas alternativas têm que ser reconhecidas. É preciso que as escolas de comunicação en