A condenação de Bolsonaro na ONU pela exposição de crianças
Dois fatores centrais nesse episódio chamam atenção: o uso político de crianças no governo Bolsonaro e os argumentos que a ONU utilizou ao formular sua resposta
No dia 5 de outubro, o Comitê dos Direitos da Criança – órgão das Nações Unidas que monitora o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança –condenou o uso de crianças fardadas em eventos políticos promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Em comunicado enviado à imprensa brasileira, o Comitê alertou que a exposição de crianças a essas situações viola os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e deve ser criminalizada. O posicionamento da ONU ocorreu depois que oitenta entidades de direitos humanos denunciaram Bolsonaro ao Comitê, após imagens do presidente segurando uma criança fardada circularem na mídia. As fotos foram registradas em evento da Polícia Militar, no dia 30 de setembro, em Belo Horizonte. Na ocasião, Bolsonaro colocou ao seu lado uma criança de 6 anos que usava uma farda policial e portava uma arma de brinquedo. O presidente chegou a erguer a criança acima de seus ombros, posar para fotos e parabenizar os pais do menino pelo exemplo de patriotismo e civilidade.
Dois fatores centrais nesse episódio chamam atenção: o uso político de crianças no governo Bolsonaro e os argumentos que a ONU utilizou ao formular sua resposta.
No que concerne ao primeiro fator, pode-se afirmar que o presidente vem, repetidamente, associando crianças a atividades militares e policiais como parte da promoção de sua agenda política. Em abril deste ano, Bolsonaro realizou atitude semelhante ao pegar no colo uma criança fardada e com um fuzil de brinquedo, durante evento em Manaus. Em outubro de 2019, em cerimônia da Polícia Militar em São Paulo, o presidente exaltou, posou para fotos e mostrou aprovação diante de uma criança fardada, segurando uma réplica de uma arma. Em 2018, durante campanha presidencial, Bolsonaro já demonstrava apologia à associação entre crianças, armas e violência: ao pegar uma criança no colo, o presidente a fez imitar uma arma com as mãos. Também em 2018, o político criticou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirmando que este deveria ser “jogado na latrina”, pois incentivaria a “vagabundagem infantil”, em referência aos direitos que o documento garante como liberdade, educação, lazer, respeito e dignidade.
Em todas essas situações, as crianças são colocadas como símbolos da propaganda de uma agenda política voltada para o discurso de ódio e de incentivo à violência. As crianças também simbolizam as futuras gerações e o futuro de um país. De certa forma, a imagem da criança nesses contextos representa a imagem de um futuro violento e militarizado. Esses episódios recorrentes no governo Bolsonaro expõem as crianças a situações constrangedoras em ambientes adultos e relacionados à glorificação da vida militar e policial. Durante o acontecimento do dia 30 de setembro, por exemplo, Bolsonaro procurou naturalizar a associação entre crianças e armamentos, declarando na ocasião: “Quando eu era moleque, eu brincava com isso: arma, flecha, estilingue. Assim foi criada a minha geração e crescemos homens, fortes, sadios e trabalhadores”. Nessa passagem fica explícita a conexão feita entre um padrão de comportamento infantil voltado para a disciplina, masculinidade e violência e a produção de uma geração de homens que se encaixa no ideal de patriotismo deste governo.
Com relação ao segundo fator – a resposta da ONU – é interessante notar que o Comitê repudiou “o uso de crianças em quaisquer atividades relacionadas a conflitos e a produção e disseminação de imagens de crianças envolvidas em hostilidades reais ou simuladas”, visto que tais ações contrariam tratados internacionais que resguardam os direitos das crianças, das quais o Brasil é signatário. Mais especificamente, as Nações Unidas fazem referência ao “Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados”, de 2002. Tal documento, assinado e ratificado pelo Brasil, conclama os Estados a tomarem todas as medidas possíveis para que menores de 18 anos não participem de hostilidades (art. 1) e para que não sejam recrutados compulsoriamente nas forças armadas (art. 2).
O documento foca essencialmente em contextos de hostilidades e conflitos armados e não faz menção explícita à utilização de imagens de crianças fardadas ou portando armas. Ao ressaltar que a divulgação dessas imagens pode ser um incentivo à participação de crianças em hostilidades, as Nações Unidas fazem uma leitura mais ampla do Protocolo e mostram uma abordagem mais aprofundada sobre o tema. Isto é, a ONU passa a mensagem de que a violência contra a criança pode se expressar de diferentes formas e a preocupação internacional não se refere apenas a crianças utilizadas em conflitos armados, mas a atitudes que fazem apologia a esse treinamento e recrutamento de crianças e que, consequentemente, vão contra todo o esforço internacional de proteção das crianças.
Logo, o problema extrapola a questão do envolvimento direto de crianças em atividades bélicas (na linha de batalha), portando armas reais, que configuram a típica imagem da chamada criança-soldado – geralmente associadas a Estados mais pobres que passam por conflitos armados violentos, principalmente no continente africano e em alguns países do Oriente Médio. Isso significa que o incentivo ao envolvimento de crianças em atividades bélicas não é algo distante da nossa realidade. Pelo contrário, está presente em ações cotidianas que naturalizam e exaltam a participação das crianças em ambientes que glorificam um ideal de força armada que garantiria uma suposta segurança. Está presente também na ideia de que a inserção de crianças em contextos violentos seria necessária para torná-las mais fortes e preparadas para a vida.
O posicionamento da ONU sobre o caso brasileiro abre precedentes para que a organização se manifeste de forma mais explícita em outras situações que envolvam discursos voltados para a violência contra as crianças, naturalização de crianças com armas e disseminação de imagens de crianças em atividades bélicas que ocorram em quaisquer países, sejam nações em desenvolvimento ou desenvolvidas.
As Nações Unidas ainda acrescentaram que “aqueles que envolvem crianças nas hostilidades devem ser investigados, processados e sancionados”. No entanto, não cabe ao Comitê aplicar punições. O que o órgão faz é avaliar o cumprimento dos tratados de proteção à infância assinados pelos países. O membro do Comitê dos Direitos da Criança, Luis Ernesto Pedernera, ressaltou que na última avaliação, em 2015, o Brasil mostrava avanços na adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, a exemplo de sua política pelo desarmamento. Nessa mesma avaliação, também havia sido recomendado que o país criasse um órgão independente para acompanhar a aplicação da Convenção. No entanto, tal iniciativa não avançou.
Na conjuntura atual, a postura da ONU é relevante e chama atenção para a necessidade de um entendimento mais profundo acerca dos documentos internacionais relativos à infância. Ainda que uma agenda de proteção da criança já esteja estabelecida em âmbito internacional, é necessário acompanhar sua adoção nos diferentes países signatários e até mesmo sugerir revisões, com base nos desafios contemporâneos. A menção que o Comitê fez ao uso de imagens de crianças fardadas e envolvimento de crianças em hostilidades simuladas são exemplos de desafios atuais que precisam ser melhor especificados e contemplados pelas Nações Unidas e Estados. Paralelamente, houve uma relativa demora para a ONU assumir um posicionamento mais rígido, haja vista que o governo Bolsonaro já vinha mostrando desprezo pelos direitos das crianças desde sua campanha presidencial e a organização só se posicionou após pressão da sociedade civil brasileira.
Pensando no próximo ano, é provável que imagens de crianças fardadas e com armas sejam usadas no contexto de campanha presidencial do atual governo para se comunicar com uma parte do eleitorado. Não somente imagens, mas falas, ações e discursos de ódio que expõem crianças a situações degradantes e desafiam a integridade infantil também podem ser ferramentas utilizadas com o objetivo de se manter no poder. É preciso atentar para que essas violações – que já se tornaram cotidianas – não sejam ainda mais naturalizadas, pois desafiam décadas de trabalho para consolidar a criança como cidadã e sujeito de direitos.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutora em Relações Internacionais (PPGRI “San Tiago Dantas” – Unesp/Unicamp/Puc-Sp) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS).