A Constituição que pesa sobre a política americana
Nas eleições americanas, o dinheiro e a notoriedade dos candidatos valerão mais que suas posições políticas. O debate dos problemas de fundo — corrupção, número recorde de prisões e execuções, crescimento das desigualdades — parece estar proibido. Imutável e sacralizada, a Constituição contribui para esta apatia.Daniel Lazare
Ao longo da campanha presidencial americana que se inicia, os candidatos abordarão os mais diversos temas, de uma eventual baixa de impostos à necessidade de abolir a discriminação que atinge os homossexuais membros das forças armadas. Há um assunto, no entanto, que não será debatido: a Constituição americana.
É ao mesmo tempo estranho e compreensível. Estranho porque esse documento de 212 anos é o mais velho do planeta e o mais resistente a mudanças. Parece portanto urgente remediar os inúmeros anacronismos que o obstruem. Para que serve uma eleição se ela se abstém de discutir as questões-chaves relativas à modernização política?
O estranhamento fica um pouco atenuado quando se compreende que a idade da Constituição, sua aversão a mudanças e o domínio que ela exerce sobre a sociedade a tornam quase invisível no debate político. Ela é uma base estrutural legal dentro da qual se insere a cidadania, e está instituída há tanto tempo que os americanos já não notam mais sua existência. Se, nos outros países, uma constituição é o produto de um combate que dará à luz um novo comportamento da vida política, nos Estados Unidos o povo é uma entidade que a Constituição criou e moldou à sua imagem para melhor perpetuar uma República jeffersoniana herdada do século XVIII. Para um americano, seria tão natural questionar a Constituição quanto para um vassalo da Idade Média repreender seu suserano.
A princípio, é isso que se costuma chamar de “excepcionalismo americano”. Na origem, esse conceito, que data dos anos 20, procurava explicar a força insólita do capitalismo americano, que o protegia contra o ciclo de crescimento e recessão que atingiam outras nações. A idéia, retomada pelos arautos da “nova economia”, foi brutalmente desmentida pelo crash de 1929. Desde então, os acadêmicos moderados e conservadores se reapropriaram do conceito para descrever uma vida política e uma sociedade fundamentalmente diferentes das sociedades das outras nações democráticas — em particular devido à fraca tradição contestadora e socialista dos Estados Unidos [1]. De fato, se a política americana é “excepcional”, esse fato se deve em grande parte à Constituição em que ela se baseia.
O estudo dessa base estrutural se impõe na mesma proporção em que a democracia parece estar em vias de decomposição. À exceção talvez do Japão, nenhum país industrial conhece tamanho nível de corrupção política institucionalizada [2], a tal ponto que um dos principais candidatos republicanos, John McCain, avaliou recentemente que a política americana não passava de um “sistema elaborado de tráfico de influência no qual os dois partidos entram em acordo para permanecerem no poder vendendo o país ao comprador mais generoso. [3]” Resultado: o eleitor americano é talvez um dos mais apáticos da Terra. Em 1996, pela primeira vez em uma eleição presidencial, a maioria da população em idade de votar ficou em casa. Dois anos mais tarde, 64% dessa população se absteve de votar nas eleições legislativas, o que no entanto não impediu milhares de analistas de comentar o significado prodigioso da referida eleição.
Entre estagnação e histeria
Se, como se diz nos Estados Unidos, a Constituição é responsável por tudo que há de maravilhoso naquele país — “O mundo todo nos inveja”, avaliava o antigo vice-presidente republicano Dan Quayle; nós somos “a nação indispensável ao mundo”, confirma o presidente democrata Bill Clinton — não deveríamos também responsabilizá-la pelo que vai mal: a corrupção política, o peso opressivo da religião, a fragilidade das liberdades públicas e das proteções sociais?
Num país que crê que sua Constituição tem inspiração quase divina, uma pergunta desse tipo é quase herética. No entanto, colocá-la permitiria compreender que esse velho texto, longe de ser o instrumento de um governo representativo e soberano, é uma mistura intrincada de crenças democráticas e pré-democráticas, de compromissos capengas e contradições ofuscantes.
O prefácio do texto, ou seja, o famoso parágrafo de introdução que começa por “Nós, o povo dos Estados Unidos”, dá imediatamente margem a uma ambigüidade significativa. As três primeiras palavras parecem de fato colocar a Carta à frente da nova era de soberania que surge a partir dos anos 1770 e 1780. Porém, o poder do povo gera a ambigüidade dos pais fundadores. Por um lado, eles admitiam que esse poder seria a fonte de uma autoridade legítima na nova República (daí a generalização da eleição na maior parte dos órgãos públicos). Por outro lado, no entanto, a nova força orientadora da decisão pública lhes inspirava tanto pavor que quiseram controlá-la de muito perto, generalizando um sistema de restrições e limites. Frente a uma Câmara de Representantes, de composição mais plebléia, foi criado o Senado, quase aristocrático, destinado a equilibrá-la (“O Senado mata as leis ruins, a Câmara dos Representantes, as boas”). Em seguida, os pais fundadores conceberam uma presidência bonapartista que contrabalanceava o Congresso e um corpo de magistrados nomeados vitaliciamente para equilibrar ao mesmo tempo a Casa Branca e o Capitólio. Enfim, como se não bastasse, foram delegados aos Estados inúmeros poderes essenciais — entre os quais a Educação e a Justiça — que lhes permitiam diminuir um pouco o poder federal.
Tudo isso porque, para os pais fundadores, frente à periculosidade inerente a todo poder político, a preservação da liberdade impõe que a autoridade seja fragmentada, que devore a si mesma. Nos anos 1720, dois dos precursores da Constituição, John Trenchard e Thomas Gordon, autores de Cartas de Catão, explicavam: “O poder e a soberania devem ser delimitados de forma precisa, repartidos entre diversos órgãos e confiados a um grande número de homens de modo que suas rivalidades, invejas, medos ou interesses transformem cada um deles em espião dos outros. [4]” Numa carta de 1787 a Thomas Jefferson, James Madison, o “Pai da Constituição”, diz a mesma coisa: “Dividir para reinar. Essa regra corrompida, própria da tirania é, sob certas condições, a única política que permitirá a uma República ser administrada por princípios justos. [5]”
Esse é o postulado central da Constituição dos Estados Unidos e, portanto, da política americana. A soberania no entanto não é divisível. Ao desejar dividir o que é inteiro, James Madison não podia senão levar o povo a voltar-se contra si mesmo, na esperança de que ele não parasse de se contradizer. No lugar de uma república equilibrada, da qual deve resultar o desencorajamento do extremismo e a promoção da moderação, essa arquitetura construiu uma forma política profundamente neurótica, oscilando permanentemente entre a estagnação e a histeria.
Assim, porque havia coberto a escravidão de garantias legais quase impossíveis de serem desfeitas, a Constituição favoreceu a Guerra de Secessão de 1861-1865. Os americanos gabam-se de ter evitado um período de terror jacobino como o da revolução francesa do século XVIII. Esquecem-se de que o que fizeram foi apenas adiá-lo por um século, quando 600 mil deles foram mortos em combate e o exército da União invadiu o território do sul, numa luta tão mortífera quanto a “Vendéia” do período revolucionário francês. Logo que a guerra foi concluída, o Estado central assumiu sua função de governo títere, com os “barões ladrões” (os grandes grupos capitalistas da época) apressando-se em ocupar o espaço vazio. As greves foram arrasadas sem piedade e os negros viram-se em um regime de servidão quase tão terrível quanto o da escravidão do qual acabavam de escapar. Face a um estado de urgência entre os anos 1930 e 1940, Franklin Roosevelt conseguiu reforçar por algum tempo a autoridade do poder federal, mas nem por isso a tornou mais coerente.
A partir daí, a política nacional foi marcada pela confusão e pela repetição de paralisias. A desintegração do sistema de partidos inviabilizou a esperança de uma formação política capaz de controlar todas as engrenagens de comando do poder federal. Com um presidente democrata — Bill Clinton — enfrentando nas questões essenciais de seu mandato um Congresso de maioria republicana, enquanto seus antecessores republicanos — Richard Nixon, Gerald Ford, Ronald Reagan, George Bush — haviam enfrentado Congressos de maioria democrata, institucionalizou-se uma espécie de guerra de trincheiras, na qual dois poderes rivais disputam o controle de um terceiro, a Corte Suprema.
As liberdades públicas questionadas
Nos anos 80, essa situação levou ao escândalo Irãgate, que viu a administração Reagan tentar passar para trás o Congresso (de maioria democrata) financiando ilegalmente, graças ao produto da venda de mísseis ao Irã, o fornecimento, também ilegal, de armas às milícias anticomunistas da Nicarágua. A dupla ilegalidade, que quase provocou a destituição do presidente Reagan, baseava-se, de um lado, no fato de que o Congresso havia se recusado explicitamente a financiar as milícias anticomunistas nicaragüenses e, de outro, no fato de o Irã estar sob embargo em relação à venda de armas. Em 1995-1996, o governo federal precisou parar — suas funções não-essenciais não foram mais garantidas e o pagamento de seus funcionários foi bloqueado — quando os dois partidos não conseguiram chegar a um acordo sobre o orçamento. Na época do caso Lewinsky, a revelação do perjúrio do presidente Clinton pelo procurador Starr propiciava aos republicanos, derrotados ao final da “batalha do orçamento”, uma espécie de desforra.
Essa obstrução permanente chegou a colocar em questão a própria idéia de um governo representativo. Na medida em que as realizações legislativas tornaram-se cada vez mais raras, os conchavos e as barganhas pararam de ser feitos à luz do debate público e eram realizados dentro das centenas de comissões e sub-comissões, muitas vezes dirigidas por lobistas e grandes colaboradores de fundos eleitorais. A generalização da corrupção foi acompanhada de uma diminuição da transparência do processo político, o que desencorajou um pouco a participação de milhares de americanos. No entanto, em nome da liberdade de expressão — primeira emenda da Constituição — a Corte Suprema opôs-se a qualquer regulamentação constrangendo os financiamentos eleitorais.
No domínio das liberdades públicas a situação não é melhor. Os constituintes, que temiam a predisposição tirânica do poder político, quiseram preservar os direitos da pessoa protegendo-os das contingências parlamentares e presidenciais. Assim, a Declaração dos Direitos — Bill of Rights — ou seja, as dez primeiras emendas da Constituição adotadas em 1791, é tida como mais sagrada ainda do que o resto do documento na qual se encontra. Contém hoje sete artigos e 26 emendas, entre as quais a última — direito de voto aos 18 anos — foi adotada em 1971. Porém, com o declínio democrático, as liberdades cívicas também foram questionadas. A ofensiva conservadora, mantida quase ininterruptamente desde os anos 70, facilitou na verdade a interpretação cada vez mais restrita da Declaração dos Direitos pela Corte Suprema. Sem contar os políticos que construíram suas carreiras convencendo as classes médias de que a luta contra o crime obrigava ao questionamento de certas liberdades cívicas [6].
Em Nova York, uma cidade que era orgulhosa de sua faceta irreverente e agitada, o resultado é uma atmosfera cada vez mais repressiva, na qual a menor das manifestações enfrenta cordões de policiais equipados contra rebeliões. Quando, em outubro de 1999, foi inaugurada num museu da cidade a exposição “Sensation”, com obras de arte provocadoras, o prefeito, Rudolph Giuliani, denunciou-a como anticatólica e anunciou que iria retirar a verba municipal destinada ao museu. Resultado: os índices de popularidade do prefeito aumentaram.
“Estou disposto a sacrificar 10% de minhas liberdades cívicas em troca de uma baixa de criminalidade de 5%”, explicou um dia um habitante de Greenwich Village, o antigo bairro boêmio de Nova York, atualmente vigiado vinte e quatro horas por dia por câmeras que pretendem captar os traficantes de drogas e os bêbados [7]. Mas por que parar nos 10%? Por que não renunciar à totalidade de suas liberdades em troca da paz total dos cemitérios?
Caso de amor com a pena de morte
Outro sinal do retrocesso democrático que não engana: o aprofundamento da “história de amor” entre os Estados Unidos, a prisão e a pena de morte. O essencial da inflação carcerária — que se traduz por uma taxa extravagante de 668 detentos para cada 100 mil habitantes — deve-se às detenções e prisões por drogas. 80% das pessoas presas é acusada de simples posse, sendo que mais da metade delas (44%) por posse de maconha. Em outras palavras, as prisões americanas estão transbordando de pessoas cujo único crime é o consumo de uma substância menos nociva que o cigarro.
Em 1999, as autoridades penais procederam à execução de 98 condenados à morte — um número sem precedentes desde 1976, ano em que a Corte Suprema restabeleceu esse procedimento. Ela declarou não se tratar de “pena cruel e inusual”, proscrita pela Constituição. O recorde precedente datava de 1998: 68 execuções. O de 1999 será certamente batido este ano. Como governador do Texas desde 1995, George Bush, um dos favoritos na corrida à Casa Branca, aprovou 112 execuções. Seu irmão John Ellis (“Jeb”) não mede esforços para acelerar o ritmo dos suplícios na Flórida, Estado do qual é governador. Serão executadas no Texas e na Virgínia três pessoas que eram menores no momento em que cometeram o crime.
Longe de ser a substância que permite consolidar a democracia, a Constituição dos Estados Unidos assemelha-se mais a uma fé, que a ameaça. Quanto mais ela é alçada acima da política e das escolhas democráticas, mais diminui o alcance destas últimas. Quanto mais envelhece, mais pesa sobre a sociedade. O procedimento de revisão é tão complexo — voto de cada uma das duas Câmaras com maioria de dois terços, e ainda ratificação por três quartos dos Estados — que basta 13 Estados representando apenas 5% da população para bloquear qualquer modificação desejada por 95 % dos americanos. O problema está longe de ser amenizado: os Estados menos populosos estão diminuindo sua população (o Wyoming conta com apenas 481 mil habitantes); os mais populosos vêem crescer seu peso demográfico (32 milhões de habitantes vivem na Califórnia).
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