A construção do espaço vazio como matriz do projeto da cidade contemporânea: o projeto da expansão da Pinacoteca de São Paulo
O projeto não é apenas uma aspiração para o futuro do museu, mas também representa um compromisso concreto para o desenvolvimento sustentável da cultura
O tema da coexistência física entre o “antigo” e o “novo” na arquitetura nunca deixou de suscitar renovadas investigações, reflexões especulativas e hipóteses propositivas. Tal relação sempre esteve presente na história dos edifícios como um processo natural e evolutivo de construção e reconstrução das cidades. Entretanto, o debate teórico que se desenvolveu em torno dessa questão é mais recente e dialético, pois foi alimentado pela evolução interpretativa e avaliativa a que se submeteram os topoi conceituais – antigo e novo – que se sucederam ao longo dos séculos XIX e XX.
No debate atual, assim como na investigação disciplinar, parece emergir uma situação de impasse, de “crise de época”: por um lado, o progresso tecnológico e as próprias tendências do desenho têm favorecido, há décadas, uma proliferação incessante de linguagens e projetos – cada vez mais personalizados, autorais e autorreferenciais. Por outro lado, o patrimônio edificado herdado, como qualquer outro produto histórico, está sujeito a revisões de valores e formas de uso, em uma época marcada por uma erosão de identidade dos lugares e do legado da tradição.
Dentro dessa perspectiva, o projeto da Pina Contemporânea, inaugurada em 04 de março de 2023, ultrapassa a reflexão sobre o “antigo” como pré-texto (ou pretexto) para a construção do novo. A investigação projetual parte da construção do espaço que confia ao “vazio” um valor de “hermenêutica” da arquitetura, redefinindo o espaço público no mundo contemporâneo como espaço fluído, lugar de relações e encontros sociais, e como lugar de sedimentação da memória.
Fronteira ambígua e mutável entre interior e exterior, entre cidade, jardim público e arquitetura, o novo edifício da Pinacoteca, o Pina Contemporânea, surge como um recinto incompleto que encerra um espaço arqueológico de diferentes estratificações e sedimentações, representado pelo centenário Parque da Luz e pelos tradicionais bairros Bom Retiro e Luz.
Em lugar de um edifício unitário, autônomo e isolado, o vazio, construído como uma praça, estabelece um sistema de elementos e ligações espaciais relacionais, enfatizando um percurso urbano complexo de superfícies sempre incompletas, que orientam a percepção do espaço em direções precisas e, ao mesmo tempo, aludem a gestos inacabados. Um articulado sistema que reúne artefatos antigos e novos sem recorrer a qualquer hierarquia tradicional: um mais antigo, atribuído ao escritório de Ramos de Azevedo, remanescente da primeira escola lá construída, e outro mais moderno, da década de 1950, de autoria do arquiteto Hélio Duarte.
Desde as décadas de 1980 e 1990, o termo vazio está ligado à modificação qualitativa de projetos de requalificação urbana e assumiu vários significados e funções, que vão da concepção como ágora entre “otium e negotium” (Cacciari, 2008) a redefinições conceituais complexas e abrangentes tanto na esfera física como na cultural-simbólica.
O espaço vazio da cidade sempre foi intérprete de ideias diferentes de espaço ao longo do tempo. Vazios na cidade podem ser considerados como as “formalizações” das diferentes formas de compreender e interpretar a relação entre o homem e a cidade, entre Civitas e Urbs. O vazio emerge como espaço das relações entre artefatos arquitetônicos, não só por suas características geométricas e formais, mas também como elemento de considerável importância para redesenhar a cidade.
A estratégia projetual em questão move-se a partir da análise aprofundada das relações existentes – em longo prazo – entre a arquitetura e o tempo, relação dialética investigada através da condição particular da “vida dos edifícios”. Tal condição foi resumida por Rafael Moneo dentro de uma perspectiva que avalia obras arquitetônicas como cápsulas do tempo, capazes de fixar o tempo – ou melhor, os tempos – das transformações e preservando, de forma evidente, um traço figurativo e material. Um potencial expresso de forma clara quando, ao longo da vida centenária de algum edifício, novas peças arquitetônicas se inserem no edifício preexistente marcado por uma sequência de abandonos, reutilizações e reconstruções.
Essa elucidação prossegue na análise dos diferentes (e, muitas vezes, contrastantes) contextos arquitetônicos em que a relação antigo/novo é, tanto do ponto de vista teórico como prático, diferente de uma intervenção em preexistências históricas. Em particular, se compararmos os parâmetros utilizados de forma recorrente na disciplina de restauro – ainda que nas suas vertentes mais gerais e codificadas – com a cultura e a prática do projeto de arquitetura, sendo esta última orientada para ações mais transformadoras, predominantemente criativas e inovadoras. Embora, em geral, verifique-se uma visão antitética nos dois campos disciplinares, considera-se útil tal comparação sobre as posições e respostas dadas ao nosso tema, ao longo dos acontecimentos históricos contemporâneos.
O destino específico do museu não é indiferente ao tema antigo/novo colocado no centro da nossa discussão, se considerado através do fator tempo na relação entre recipiente (arquitetura) e conteúdo (objetos expostos). Como destaca Michel Foucault, o museu nasceu como uma heterotopia espaço-temporal: um lugar baseado na coleção enciclopédica de todas as coisas dignas de memória e, consequentemente, na acumulação e na abordagem espacial de artefatos de tempos múltiplos (Foucault). As estratificações arquitetônicas características, visíveis através da textura original dos edifícios e dos subsequentes trabalhos de reconstrução, entrelaçam-se, assim, com as cronologias distantes das exposições, dando origem a palimpsestos complexos – fusões de arquitetura, espaços e objetos – com um carácter multitemporal.
Como nos indica Henri Focillon em Vie des formes (1934), essas prefigurações deixadas no papel iluminam a potencial não-unicidade (ou melhor, a declinação latente, diferente) não só da obra arquitetônica como artefato físico, mas também do projeto arquitetônico, potencialmente aberto e disponível a outras soluções, a diferentes abordagens: “o conceito de experimentação (experiência) tem uma importância capital na economia do sistema: é o próprio fundamento da produção e da inovação. […] O que dá um sentido aberto e inacabado a essa “evidência bem definida” é a série de experimentos, propostas e hipóteses que estão por trás dela e que a projetam em diversas direções rumo ao futuro.
Ao integrar arte, história e tecnologia para criar uma experiência única, o projeto não é apenas uma aspiração para o futuro do museu, mas também representa um compromisso concreto para o desenvolvimento sustentável da cultura, sublinhando o papel crucial da arte como ponte entre passado, presente e futuro.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).
Referências
O projeto da expansão da Pinacoteca é assinado pelo escritório Arquitetos Associados em parceria com Silvio Oksman e em diálogo com as equipes do museu.
CACCIARI, M., La città, Pazzini editore, Rimini, 2008.MONEO, Rafael., “Per una teoria dell’architettura: Rafael Moneo e Giorgio Grassi. La solitudine degli edifici”, Casabella n. 666, 1999, pp. 30-33.
TAFURI, Manfredo “Storia, conservazione, restauro”, Casabella n. 580, 1991, pp. 23-26 e DAL CO, Francesco, “Che differenza ci può essere tra progetto di restauro e progetto di architettura? Les Leçons du Thoronet secondo Eduardo Souto de Moura”, Casabella n. 830, 2013, pp. 94-97.
M. Foucault, Spazi altri, Mimesis Eterotopia, Milano, 2001, p. 20.
FOCILLON, Henri. Vie des formes. Paris: Librairie Ernest Leroux, 1934.