A contra-reforma agrária egípcia
Mais de meio século depois da “revolução nasserista”, que pôs fim ao “antigo regime” nos campos do Egito, as velhas famílias latifundiárias voltam a gozar seus privilégios, sob os auspícios do neoliberalismo. Mas os camponeses não estão passivos frente a essa escalada
Quando Ernesto Che Guevara visitou o Egito, em 1965, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser o levou a Kamchich, um povoado localizado no coração do Delta do Nilo. Dois anos mais tarde, lá estiveram Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Em 2005, foi a vez da associação Via Campesina comparecer ao local. Por que esse obscuro lugarejo suscita tanto interesse? Kamchich ocupa uma posição singular, entre Kafr Al-Musaylaha (terra natal do presidente Hosni Mubarak) ao norte, Mit Abu Al-Kom (terra natal do ex-presidente Anuar Sadat) a sudeste, e Dinchaway (palco de uma célebre revolta contra a ocupação britânica em 1906) a leste. Mas sua importância vem do fato de ser um símbolo das lutas camponesas do Egito. E, como tal, traz a marca tanto de seus êxitos passados quanto de suas dificuldades presentes.
Antes da revolução de 1952 [1], quando a grande maioria do campesinato padecia de condições de vida miseráveis, existia, ao lado da pequena agricultura livre, mas empobrecida, um amplo setor agrícola de tipo feudal. Os camponeses que a ele pertenciam eram meeiros semi-servos. Vivendo em isbás, rústicas habitações rurais, trabalhavam as terras dos senhores, administradas por intendentes. Trabalho duro, não remunerado por salário, mas pela atribuição, a título precário, de pequenas glebas, que os camponeses e suas famílias cultivavam por conta própria e lhes permitiam apenas sobreviver.
Sem fugir à regra, Kamchich encontrava-se, então, sob o domínio dos Fiqqui. No final dos anos 1940, essa família possuía cerca de 600 hectares, tinha influência sobre a cooperativa agrícola, criada em 1936, e controlava a distribuição de crédito, sementes e adubos aos pequenos camponeses – um controle que, juntamente com o da Prefeitura, lhe permitia forçar a troca de glebas, requisitar mão-de-obra para trabalhar em suas terras e se atribuir privilégios em matéria de irrigação.
Durante esse período, e depois de forma mais premente, se impôs em todo país a necessidade de uma reforma agrária. Em 9 de setembro de 1952, apenas dois meses após sua ascensão ao poder, os oficiais liderados por Gamal Abdel Nasser promulgaram uma lei que limitava severamente o tamanho das propriedades agrícolas, marcando, deste modo, o início da reforma agrária.
Assim como outros grandes proprietários, os Fiqqui de Kamchich conseguiram escapar dessas disposições no primeiro momento. E, até 1961, usaram inúmeros subterfúgios para fazer crer que sua propriedade fundiária individual não excedia o teto fixado, quando, na verdade, cada um de seus membros possuía mais do que o dobro. Diante dessa situação, desde o final de 1952, jovens estudantes e agricultores do povoado engajaram-se na luta lançada por Salah Hussein Maqlad, oriundo de uma família de médios proprietários empobrecidos. Eles conclamavam os camponeses a recuperar as terras que os Fiqqui haviam comprado a preço baixo, aproveitando-se da crise dos anos 1930, que arruinara muitos integrantes do meio rural.
Confrontos armados que permanecem na memória ocorreram durante o ano de 1953. Salah Hussein foi condenado à residência forçada em Shibin al-Kom, sede administrativa da província. Depois, aprisionado durante mais de um ano por suposta participação na organização Irmãos Muçulmanos. E, finalmente, destituído de seus direitos civis até o final de 1965. Pois o Estado, a despeito de suas posições declaradamente “antifeudais”, não via com bons olhos o desenvolvimento de um movimento camponês autônomo.
Em julho de 1961, o regime de Nasser deu uma guinada radical “à esquerda”, com a promulgação de “decretos socialistas” que desencadearam o sequestro dos bens de 4 mil famílias, num total de mais de 50 mil hectares. Em Kamchich, foram necessários seis meses para se recensear todas as parcelas em litígio, mas o comitê designado para isso estabeleceu que a área pertencente aos Fiqqui ultrapassava de longe o teto fixado pela lei. Confiscadas, essas propriedades foram redistribuídas a 200 pequenos camponeses. E os Fiqqui viram-se condenados à residência forçada em Alexandria. Por certo tempo, Kamchich tornou-se um exemplo de paz e justiça social.
Tal situação não durou, porém, mais de cinco anos. Quando Salah Hussein, com seus direitos civis restabelecidos, voltou ao povoado em 1966, ele foi considerado um perigoso agitador comunista e colocado sob vigilância dos serviços de segurança. Escreveu então uma carta aos dirigentes da União Socialista Árabe, o partido único, para reivindicar o confisco dos palácios abandonados pelos “feudais” a fim de abrigar serviços sociais de educação e saúde. Alguns dias mais tarde, foi morto durante uma “briga”. Dois membros do ramo principal dos Fiqqui tornaram-se imediatamente suspeitos de haver comandado o assassinato, mas somente personagens de segundo plano foram condenados pela Justiça.
Ao implementar a reforma de 1961, o Estado tinha também motivações de ordem política: acabar com o poder da grande aristocracia fundiária, aliada da antiga realeza, destruindo sua base socioeconômica. Porém, em vista dos inúmeros postos políticos e administrativos ainda ou novamente ocupados pelos membros dessa classe e seus herdeiros durante os anos 1960, podemos considerar que o propósito do Estado teve um sucesso apenas relativo.
Além disso, a partir de 1961, os latifúndios passaram a ser classificados segundo dois critérios distintos. O primeiro referia-se às terras confiscadas pela reforma agrária: os camponeses que as exploravam poderiam se tornar proprietários mediante o pagamento ao Estado de 40 anuidades. O segundo dizia respeito às terras seqüestradas durante a radicalização do regime nasserista: sem que deixassem de lhes pertencer, os grandes proprietários não podiam dispor delas à sua vontade. Elas caíram sob a autoridade do Estado, que as administrava e as confiava em arrendamento a pequenos exploradores, pagando aluguel aos grandes proprietários.
Após a morte de Nasser, em 1970, o novo presidente, Anuar Sadat, lançou, em maio de 1971, um “movimento retificador”, dando início à “desnasserização”. Em junho de 1974, foi votada uma lei anulando os seqüestros decorrentes dos “decretos socialistas” de 1961. Ela previa a restituição pura e simples de 60 mil hectares a seus proprietários ou uma indenização substancial. Essa operação não se deu sem conflitos. De posse de contratos de locação permanentes, com um valor legal fixo e muito módico, os camponeses impediam os proprietários de desalojá-los.
Em Kamchich, a família Fiqqui conseguiu retomar não somente suas terras seqüestradas, mas também a antiga residência familiar, onde tinham sido instalados uma escola e diferentes serviços sociais. E a viúva de Salah Hussein, Shahinda Maqlad, que assumira a liderança de um movimento regional de protesto em junho de 1971, foi proibida de permanecer na aldeia e, mais tarde, presa várias vezes.
Hoje, Kamchich conta com 40 mil habitantes. Enriquecida por imigrantes vindos dos países do Golfo a partir de 1990, a cidade foi embelezada com um novo parque público gradeado, oferecido por Suzanne Mubarak, a primeira-dama egípcia. Exatamente ao seu lado encontra-se um dos símbolos da luta obstinada contra o “feudalismo”: um dos palácios abandonados pela família Fiqqui. Isolados, ameaçados, cercados, aprisionados, torturados, banidos e às vezes assassinados, muitos camponeses pagaram um alto preço pela luta que travavam, em especial pelo direito à terra. Mas, após 55 anos da primeira reforma agrária, outros continuam a viver com medo de um dia, no futuro, serem arbitrariamente expulsos de seus lares.
De fato, adotada em 1992, a nova lei agrária marcou uma mudança profunda nas relações entre proprietários e arrendatários. Ela estabeleceu um prazo de cinco anos, durante o qual o preço do aluguel da terra subiu progressivamente de 7 para 22 vezes o valor do imposto fundiário. Findo esse período, os proprietários ficaram liberados para definir o preço do arrendamento de acordo com o mercado, e os locatários incapazes de pagar tornaram-se passíveis de expulsão. Os contratos deixaram de ser permanentes e transmitidos por herança, para serem firmados a prazo, com duração mínima oficial de um ano. Quanto à renda anual, ela passou a ser pagável em espécie e na totalidade a partir da assinatura do contrato de arrendamento, ou seja, antes mesmo da colheita. Na montanha de relatórios consagrados à reforma do setor agrícola, a sorte das vítimas de tal política não foi objeto de nenhuma consideração.
Essa lei, que afetou cerca de 6 milhões de pessoas, um nono da população total do país, traduziu a convergência de interesses entre proprietários e neoliberais. Ela permitia aos primeiros revalorizar seu patrimônio fundiário pelo aumento sensível da renda ou pela possibilidade de dispor dele à vontade. E, aos segundos, se vangloriar do livre funcionamento do mercado, ao qual foram atribuídas todas as “virtudes” do novo sistema.
A revalorização da renda oferecia proprietários e neoliberais duas grandes vantagens: de um lado, encorajava a busca de maior rentabilidade e, portanto, a modernização e intensificação da produção; de outro, promovia a “seleção” dos minifúndios não rentáveis, facilitando sua incorporação às propriedades modernas. Ao mesmo tempo, o regime precedente era descrito de forma caricatural, com os proprietários sendo “explorados” por locatários “indolentes”. Favorecidos pelo valor irrisório da renda, estes teriam acumulado enormes lucros, com os quais puderam comprar, a preços baixos, as terras que eles mesmos haviam arruinado.
A realidade é bem diferente, porém: as pequenas propriedades egípcias praticam uma agricultura extremamente intensiva; seus rendimentos estão entre os melhores do Hemisfério Sul; e cada parcela dedicada à horticultura pode fornecer até três colheitas por ano. Se os pequenos proprietários procuram prioritariamente a auto-subsistência, para garantir o alimento indispensável à família, eles também têm a preocupação de maximizar os lucros por meio da diversificação da produção destinada à venda – o que implica assumir os riscos daí decorrentes, notadamente aqueles provocados pelas flutuações do mercado. Em contrapartida, constata-se facilmente que os locatários investem trabalho e insumos na melhoria das terras, quando se sentem garantidos por contratos de arrendamento de longo prazo. Como os locatários passíveis de ser desalojados após um ano poderiam fazer o mesmo?
A votação da lei de 1992 criou certa comoção entre os camponeses atingidos. Mas, como uma parcela significativa deles só tomou conhecimento do assunto tardiamente, a imprensa esperava que a entrada em vigor da nova legislação, em outubro de 1997, suscitasse verdadeiras “insurreições populares”. Estas não ocorreram. Porém, conflitos pontuais eclodiram em várias cidades, provocados pelas expulsões forçadas dos camponeses que recusavam os aumentos de aluguel. O Centro Agrário para os Direitos Humanos [2], uma organização não-governamental do Cairo, contabilizou, em três anos, no período 1998-2000, um total de 119 mortos, 846 feridos e 1.409 prisões vinculadas a operações de expulsão de camponeses e outros conflitos associados à disputa por terras agrícolas.
A ausência de uma “reação em cadeia” – que o Estado creditou às “comissões de conciliação” implantadas por sua iniciativa – deveu-se, de fato, à proibição de qualquer sindicato independente e à onipresença e eficácia dos órgãos de informação, controle e repressão. Ela se explica também pela extrema complexidade das relações sociais no meio rural – em particular pela existência prévia de um mercado de locação paralelo, no qual os aluguéis já eram muito elevados, pelas relações de clientelismo estabelecidas entre proprietários e camponeses, e pela presença em cena de pequenos locadores e não apenas de latifundiários.
A lei agrária de 1992 transtornou, porém, a vida dos camponeses. A partir dessa data, a renda fundiária decuplicou, alcançando, em muitos casos, a metade do valor do rendimento bruto anual das propriedades. Estima-se que três quartos dos pequenos proprietários que arrendaram terras em 1996 tenham desistido, na maioria das vezes devido ao superendividamento. Vários testemunhos atestam que os camponeses se endividam cada vez mais pesadamente para pagar os novos aluguéis. Vendas expressivas de jóias familiares e gado têm ocorrido, e os arrendatários procuram cortar despesas de todas as formas: suprimindo a carne na alimentação cotidiana, retirando uma criança da escola para colocá-la no trabalho etc.
As propriedades com área superior a 10 feddans [3] consolidaram-se em detrimento das micropropriedades. Assim, as desigualdades na distribuição das terras agrícolas, que tinham diminuído de 1952 a 1980 para estagnar entre essa data e 1990, recomeçaram a crescer. Como nos últimos anos do “antigo regime”!
No decorrer da última década, a Governadoria de Minufiyya, à qual Kamchich pertence, foi palco de inúmeras “explosões sociais” ligadas à terra. Em geral transcorridas sob o silêncio da mídia, elas foram causadas pelas manobras das antigas famílias proprietárias.
Baseando-se na lei de 1992, estas começaram a recuperar as terras que lhes tinham pertencido ou a se apoderar de outras que lhes apeteciam. Tais manobras desencadearam confrontos com freqüência muito violentos entre os camponeses e os capangas ou as forças policiais convocados por essas famílias – confrontos seguidos de intimações, prisões arbitrárias, às vezes acompanhadas de torturas, e de processos injustos, coroados com pesadas penas. Segundo o Centro Agrário para os Direitos Humanos do Cairo, daí resultaram, entre 2001 e 2004, um montante de 171 mortos, 945 feridos e 1.642 prisões.
Os acontecimentos ocorridos em 2005 em Sarando, cidade de 10 mil habitantes situada a noroeste do Delta, ilustram essas ocorrências. Aproveitando-se da confusão jurídica que cercava os 2.100 hectares em sua possessão antes de 1952, a família Nawar resolveu retomar “suas” terras pela força. De 5 de janeiro a 15 de março, a população local viveu por isso verdadeiro pesadelo, com a polícia saqueando casas, aterrorizando os moradores e intimando muitos homens sob a acusação de porte de armas, destruição de colheita e tentativa de assassinato de agentes da força pública. Dezenas de pessoas foram presas – uma delas, mulher de 40 anos, morreu após ter sido torturada.
A 200 km a nordeste, a localidade de Izbat Mersha presenciou, no ano passado, outros incidentes graves. Lá, embora os camponeses beneficiários da reforma agrária tenham pago, entre 1964 e 2005, as anuidades que lhes dariam a posse definitiva das parcelas a eles atribuídas, o órgão governamental encarregado do assunto recusava-se a entregar-lhes os títulos de propriedade. Aproveitando-se disso, o proprietário anterior abriu processos contra os camponeses e conseguiu recuperar, dessa forma, até metade dos 42 hectares que lhe tinham sido expropriados. Os camponeses apelaram. Porém, como tal apelação não tinha efeito suspensivo, 17 furgões de polícia e dezenas de policiais à paisana cercaram uma parcela, em maio de 2006, a fim de proceder a nova expulsão. Acompanhados de jornalistas, os 600 habitantes de Izbat Mersha acorreram então em auxílio do camponês ameaçado, e entraram em confronto com as “forças da ordem”. Armados com cacetetes e bombas de gás lacrimogênio, os policiais chegaram até a jogar as mulheres em um canal. Vinte e cinco pessoas foram intimadas, e um jornalista, ferido.
No entanto, e pela primeira vez, o acontecimento teve repercussão no exterior, graças à presença da imprensa, assim como de um comitê de apoio aos camponeses criado em Kamchich em 2005. Este participara do Fórum Social Europeu (FSE), realizado em Barcelona, adquirindo assim notoriedade. Com as embaixadas egípcias inundadas por mensagens de
*Beshir Sakr é jornalista.