A contribuição do filme estrangeiro
Na França, nove em cada dez ingressos vendidos são de filmes franceses ou norte-americanos, o que limita as visões do mundo. No entanto, existe um público que, às vezes, transforma em sucesso um filme tailandês ou argentino pouco promissorPhilippe Lafosse
Os filmes estrangeiros não-americanos ganharam muitos espectadores nos últimos dois anos. Em 2001, o número de espectadores chegou a 16,5 milhões. Foi registrado até um aumento superior à média nacional (15,4%). Em compensação, sua participação no total da arrecadação sofreu uma leve diminuição, passando de 13,6% em 1999 para 9% no ano passado1.
É claro que, com um número de ingressos tão baixo, não é preciso muito para alterar o resultado anual: em 1994, por exemplo, o filme britânico Quatro Casamentos e um Funeral conseguiu, sozinho, perto de 6 milhões de ingressos; em 1999, estimulado ainda pelos ingleses, o número de ingressos de filmes estrangeiros não-americanos superava em 7 milhões o de 2000. Se é incontestável que esses filmes resistem e têm um público, também não se pode negar que se situam numa faixa que sofre para superar uma fatia de 10% do mercado.
Abrindo novas portas…
Os números não refletem a importância do filme estrangeiro. O cinema asiático, em poucos anos, “tornou-se o novo centro de gravidade do cinema mundial”
De qualquer forma, como acontece com a audiência da televisão, esses números não refletem a importância desse tipo de cinema, ocultando sua contribuição qualitativa. O cinema asiático é exemplo típico dessa situação. Em alguns anos, “tornou-se o novo centro de gravidade do cinema mundial”, escreveu, em 1999, Olivier Joyard e Charles Tesson, na edição dos Cahiers du Cinema “Made in China2“, antes de dizer que depois do Japão, “a produção de um cinema industrial, popular, ideológico e artístico”da China Popular, de Hong-Kong e Taiwan nos obrigavam a “sair do eixo Europa/Hollywood”.
Três anos depois, não esquecemos as cortesãs e o feitiço de Flores de Xangai (Hou Hsiao-hsien, Taiwan, 1998); nem a chuva, a escuridão e a solidão de O Buraco (Tsai Ming-liang, Taiwan, 1997); ou a depressão e a sensibilidade de Procurando o Amor (Wong Kar-wai, Hong-Kong, 2000); nem a estranheza, a alteridade e a inquietante fuga do brilhante Carisma (Kiyoshi Kurosawa, Japão, 1999); ou a visão fantástica, desenfreada e ao mesmo tempo branda, do desejo e do prazer de Água Morna sob a Ponte Vermelha (Shohei Imamura, Japão, 2001); ou ainda a sutileza, a sobriedade e a profundidade de O Órfão de Anyang (Wang Chao, China, 2001) 3.
Esses filmes têm um público próprio, assim como outros filmes de países com produção esporádica, e contribuem para “sair do eixo do cinema”, abrindo novas portas. Até o presente, La Ciénaga, de Lucrecia Martel (Argentina, 2001), contabilizou 50 mil ingressos, e Delbaran, de Abol Lazl Jalili (Irã, 2001), 20 mil. O primeiro já é um autêntico “sucesso”.
A emoção e a explicação
Esses filmes têm um público próprio, assim como outros filmes de países com produção esporádica, e contribuem para sair do eixo Europa-Hollywood
Ouvindo os espectadores desses filmes, percebe-se a curiosidade como primeiro fator de sua opção. “É para mudar de ares, suprir a vontade de ver novas idéias e um modo diferente de narrar”, explica Mathilde, jovem espectadora de 20 anos. Para Jean-Pierre Gibrat, diretor da produtora Trans Europe Films – cujas filmagens são sempre em outros países – o interesse que suscitam esses filmes vem de um desejo de “se impregnar de uma cultura e de ângulos diferentes daqueles que geralmente são mostrados” e de uma reação de hostilidade e de rejeição ao cinema norte-americano e às grandes produções. “Esse apetite pelo que é estrangeiro”, continua ele, “explica-se principalmente pela vontade de descobrir temas originais que apresentem um conteúdo universal”. Alguns filmes japoneses, por exemplo, ancorados em uma cultura específica, falam da perda de valores ancestrais ou refletem o conflito entre tradição e modernidade, temas que não têm fronteiras.
Há também, logicamente, os filmes que encontram eco contemporâneo direto e ajudam a penetrar uma situação complexa ou desconhecida. É o caso de Kedma, último longa-metragem de Amos Gitaï, que, por meio da chegada a Israel de emigrantes judeus em 1948, nos fala do atual conflito. Marie-José Sanselme, co-roteirista desse filme apaixonante – e também dos dois filmes anteriores do realizador israelense, Kippur e Éden – tinha como objetivo “estabelecer uma linha entre a emoção e a explicação”. O resultado é uma obra que, para o espectador, é um notável instrumento de conhecimento, tanto político e social, como íntimo.
O público do filme estrangeiro
Marianne Boussard, que propôs ao cinema Jean Vigo, de Nice, a apresentação de pelo menos um programa temático por mês (uma panorâmica do cinema português, dos cinemas da Europa), adianta um outro elemento como resposta: “Algumas pessoas fazem de seu gosto cinematográfico uma questão de identidade. O cinema de autor tem uma assinatura, ao contrário do cinema de produção. Por meio de suas opções, os espectadores forjam uma personalidade, se afirmam, mostram que têm opiniões, que são conscientes.” Às vezes, escolher filmes estrangeiros não-americanos também é reivindicar sua participação na comunidade, fixar um sinal de distinção. “É indiscutível que esse tipo de filme exige um certo esforço”, acrescenta Marianne Boussard, “o que não é pouca coisa numa sociedade muitas vezes preguiçosa.”
“O apetite pelo que é estrangeiro”, segundo um produtor, “explica-se pela vontade de descobrir temas originais que apresentem um conteúdo universal”
Como o espectador entrevistado à saída de O Órfão de Anyang, algumas pessoas só vêem filmes estrangeiros porque “os franceses são muito psicológicos, sempre com as mesmas histórias, nos mesmos ambientes, e feitos do mesmo jeito, na mesma fôrma…” Alexandra Henochsberg e Gregory Gajos, da empresa Ad Vitam – que explora várias salas no Quartier Latin, em Paris, e é uma das mais importantes distribuidoras de filmes estrangeiros4 -, tentam equilibrar aquilo que poderia ser visto como uma atitude fechada ou uma segmentação sectária. “Não há um público específico para os filmes estrangeiros. É o mesmo público cinéfilo interessado por filmes de autor em geral. Existem particularidades, nichos, em termos de país e gêneros… mas existem pontes entre os cinéfilos.”
A padronização do cinema
Sem ceder a preconceitos, Marie-José Sanselme e Jean-Pierre Gibrat compartilham de uma parte das críticas desses espectadores em relação a filmes franceses. Ela lamenta que muitos desses filmes “apresentam uma realidade estreita e narcisista e falta-lhes um olhar tangencial”. Para explicar o “sucesso” dos filmes estrangeiros não-americanos, Gibrat observa que “são muitas vezes filmes de orçamento modesto, o que influencia no conteúdo e na liberdade. O peso da aparelhagem de alguns longas-metragens franceses faz com que surjam obras formatadas”.
Na França, há de fato roteiros obrigatórios para conseguir financiamento: subvenções ou adiantamentos do Centro Nacional da Cinematografia (CNC, subordinado ao Ministério da Cultura), participação de canais de televisão abertos e no Canal Puls e de empresas para o financiamento da indústria cinematográfica e audiovisual (Sofica5). Esses mecanismos permitem a existência do atual cinema francês, o único a se opor ao gigante norte-americano; mas, devido à onipresença das televisões e ao papel das Soficas, de um lado, e ao funcionamento e espírito conservador de algumas comissões de ajudas seletivas do CNC, de outro, é forçoso constatar que esses mecanismos também permitem uma padronização do cinema, uma “qualidade francesa” que nivela e exclui projetos ambiciosos, minoritários e inovadores.
“Exilados em seu país”
Kedma, último longa-metragem do israelense Amos Gitaï, remete o espectador, através da chegada a Israel de emigrantes judeus em 1948, ao atual conflito
Com relação a isso, pode-se lamentar que o Estado não exerça seu papel de contra-poder às normas impostas pela lógica do mercado. Na realidade, o CNC, os canais e as Sofica juntam-se muitas vezes para promover um mesmo cinema “moderno, eficaz, não muito lento, que se dirige principalmente a um público de nível superficial e que, baseado no estrelismo, unifica ao defender valores fortes, se possível consensuais”, para retomar as palavras “esportivas” de dois membros dessas comissões que querem manter o anonimato, “um cinema que possa não ser apenas diversão, mas que também não polua com pensamentos e formas radicais demais”, como enfatiza um deles. E isso ainda que dentro do CNC – e ao contrário do que se passa nos principais canais, em que a renúncia é completa -, as pessoas continuem lutando por uma outra idéia de cinema, de modo que, de tempos em tempos, um filme venha perturbar a ordem dos “profissionais da profissão”.
Globalmente, em nome de um público fantasma, impõem-se amarras ao cinema francês, concedendo-lhe originalidade apenas com parcimônia. “É como se as pessoas se permitissem, com os filmes estrangeiros, o que é proibido com os franceses”, comenta Alexandra Henoschberg. Para a produção, é diferente: “Sem o CNC, as pequenas distribuidoras como a nossa não poderiam sobreviver”, explica ela. “Delbaran e Procurando o Amor foram filmados sem roteiro”, lembra Gregory Gagos. “Como seria possível fazer hoje um filme sem roteiro na França?” Muitos são os autores franceses que assimilaram as regras e os arranjos do sistema, e os realizadores audaciosos parecem atualmente exilados em seu próprio país.
Preferência por filmes que “pagam”
“Algumas pessoas fazem de seu gosto cinematográfico uma questão de identidade. O cinema de autor tem uma assinatura”, afirma Marianne Boussard
O que os espectadores de filmes estrangeiros buscam é também coragem, uma lufada de ar fresco, uma liberdade e uma “matéria” árida difícil de encontrar em um filme de 4 milhões de euros – em 2000, o orçamento médio de um filme francês foi de 4,7 milhões de euros -, já que ele precisou dobrar-se a muitas exigências ao longo do seu processo. Os orçamentos confortáveis, e mesmo conseqüentes, tendem a produzir filmes… confortáveis, sem qualquer conseqüência. Dos realizadores aos técnicos, passando pelos atores, cada qual faz o que sabe fazer, cada qual faz seu filme como se o encomendasse a si mesmo, com aplicação e rentabilidade. Assim, os realizadores não passam de “fazedores” e os filmes são rapidamente esquecidos. Marie-José Sanselme fala de “histórias muito amarradas e de um conformismo intelectual ao qual corresponde um conformismo estético”, e afirma que “ver um filme francês é como estar em família”.
No ano 2000, dos 544 longas-metragens exibidos nas telas francesas, 142 eram estrangeiros não-americanos. Ou seja, 26,1% dos filmes exibidos, o que está longe de ser irrelevante. No entanto, totalizaram apenas 8,63% dos ingressos. É o caso de se perguntar se o público tem fácil acesso a essas obras, principalmente quando não mora em Paris. Preferindo filmes que supostamente “pagam” – e que podem, inclusive, ter elementos de arte e ensaio -, os multiplex6 programam poucos desses outros filmes; ocorre que 36% das salas dependem de grupos nacionais. Isso corresponde à idéia de que um bom número de programadores atende ao gosto do público: fica difícil saber se o público de uma sala apreciaria um filme coreano ou iraniano… quando não tem acesso a ele.
Os orçamentos gigantescos
Sem ceder a preconceitos, Marie-José Sanselme e Jean-Pierre Gibrat compartilham de parte das críticas dos espectadores em relação a filmes franceses
Se essa questão é pertinente para as salas de cinema, ela é muito mais ampla e envolve a cultura de uma forma global. Na realidade, os programadores dessas salas comportam-se como os diretores da maioria dos canais por satélite. Produtor de documentários, Jean-Pierre Gibrat observa que “a falta de cultura de muitos deles” os leva a agarrar-se a valores confiáveis, ao que conhecem um pouco melhor. É verdade que, não sustentados por campanhas publicitárias importantes, os filmes mais difíceis demandam um trabalho prévio que exige conhecimento, continuidade e paixão. Alexandra Henoschberg acrescenta: “As televisões nos abandonaram, não garantem mais seu papel de educadoras, renunciaram às versões originais, não compram mais nossos filmes. Se não existíssemos, elas nem perceberiam. Estamos isolados.”
É essa falta de cultura que, em grande parte, explica os orçamentos superdimensionados de filmes franceses: num mundo em que prevalece o quantitativo e em que o desempenho substituiu o conteúdo, quanto mais caro for um projeto, mais seguro ele será, pois parecerá melhor, causará mais efeito e ocupará seu lugar na paisagem midiático-cinematográfica.
A felicidade neoliberal
Num mundo em que prevalece o quantitativo e em que o desempenho substituiu o conteúdo, quanto mais caro for um projeto, mais seguro ele será…
E se a opção por ver um filme estrangeiro fosse ao mesmo tempo uma forma de recusar a imposição televisual e rejeitar os produtos impostos por uma economia asfixiante? E se pensássemos que podemos encontrar em uma certa “pobreza econômica” aquilo que a opulência nega, a saber, por exemplo, uma opinião diferente sobre o mundo, uma outra experiência de tempo? Assim, quando diminui a distância entre pequenos e grandes orçamentos, a opção de milhões de espectadores constitui, na prática, uma reação diante da crescente inflação nos gastos de filmes tipicamente franceses, inflação que é prejudicial à sua qualidade de inovação e à diversidade de olhares.
Patrick Villacampa, produtor e presidente da Associação Henri Langlois, vê nesses gastos “uma forma mais ou menos consciente de garantir um polimento suplementar a um filme para obter um produto de ordem audiovisual e midiática”: “Na realidade”, conclui ele, “a experiência do real, a urgência e a vontade de rodar que sentimos muitas vezes nos filmes de orçamento baixo – e até nos radicalmente pobres e clandestinos – não se encontram nos produtos padronizados, condenados desde o início a serem agradáveis para poder participar da felicidade neoliberal.”
(Trad.: Denise Lotito)
1 – Fonte: Centre National de la Cinématographie (CNC).
2 – Esgotado (abril de 1999).
3 – Poderiam ainda ser citados Xiao Wu, o artista batedor de carteiras (Jia Zhiang ke, China, 1998), M/Other (Nobubiro Suwa, Japão, 1999), Millenium Mambo (Hou Hsiao-hsien, Taiwan, 2001) ou Lan Yu (Stanley Kwan, China, 2001)…
4 – Nos últimos tempos, distribuíram La Ciénaga, de Lucrecia Martel, e Plataforma, de Jia Zhang-ke.
5 – As So