A contribuição do movimento agroecológico para o debate eleitoral
A retomada do ambiente democrático ilumina os caminhos do país e as organizações do campo agroecológico estão mobilizadas para contribuir para a reconstrução do Estado
Em 15 de junho de 2022, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que reúne redes regionais, estaduais e territoriais de agroecologia, além de movimentos sociais do campo, da cidade, das florestas e das águas e outros grupos da sociedade civil organizada, lançou uma Carta-Compromisso dirigida a candidatas e candidatos aos poderes Executivo e Legislativo federal e estaduais de todo o país apresentando um conjunto de demandas e recomendações consideradas centrais para o enfrentamento da fome e a reconstrução do país em bases justas e sustentáveis.
O lançamento da Carta-Compromisso inaugurou um conjunto de ações que se seguiram ao longo de 2022 no contexto da campanha de mobilização Agroecologia nas Eleições, que buscou engajar organizações e grupos de todo o país para o diálogo com candidaturas, pautando o tema da agroecologia no debate eleitoral e dando visibilidade às propostas do movimento agroecológico. Essas ações incluíram a realização de um levantamento nacional de políticas e normativas estaduais que apoiam a agroecologia e a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e também o desenvolvimento de uma pesquisa sobre políticas federais para esse campo.
Tanto a Carta-Compromisso da ANA como as pesquisas desenvolvidas foram subsídio para a realização de um amplo conjunto de atividades de debate e incidência política em todas as regiões do país, buscando dialogar com candidaturas do campo popular e democrático e também contribuir para que cada vez mais amplos setores da sociedade tenham conhecimento e apoiem as propostas do movimento agroecológico. Nesse conjunto, teve destaque a realização articulada de atos públicos para debate com candidaturas em 22 estados brasileiros. Os debates foram promovidos por redes estaduais e/ou organizações da sociedade civil que se reúnem na ANA.
Como resultado de todos esses esforços, a ANA conquistou a adesão de 694 candidaturas para sua Carta-Compromisso. Dessas, 156 foram eleitas, incluindo uma senadora e 64 deputadas/os federais, além de 5 governadoras/es e 86 deputadas/os estaduais. Os números indicam que, para os cerca de 1.500 cargos legislativos disputados este ano no país, mais de 10% das/os eleitas/os estão comprometidas/os com o fortalecimento da agroecologia e da agricultura familiar. Na Câmara dos Deputados, as candidaturas eleitas representam 12% dos cargos.
Trata-se de uma conquista histórica. Nunca antes em processos eleitorais de níveis estadual e federal a agenda de propostas defendida pelo movimento agroecológico havia sido debatida de forma tão ampla nacionalmente e o número de parlamentares e gestoras/es eleitas/os comprometidas/os com essa agenda sinaliza no horizonte a possibilidade de fortalecimento desse campo. Intensificando as iniciativas de enfrentamento às ameaças e retrocessos liderados pela bancada ruralista, que ainda terá grande vantagem numérica na nova legislatura, começa-se agora a constituir a ideia da formação de uma bancada agroecológica, alinhada aos interesses das classes populares e comprometida com a defesa da vida e da redução de desigualdades.
As demandas apresentadas na Carta-Compromisso da ANA, resultantes de debates e convergências políticas consolidadas ao longo dos vinte anos de existência da Articulação, foram organizadas em cinco eixos estruturantes:
1- Questão agrária e urbana e direitos territoriais – que destaca a reforma agrária como condição inadiável para a superação estrutural do quadro de pobreza e exclusão social no meio rural, a defesa dos direitos territoriais dos povos indígenas e comunidades tradicionais e a reforma urbana com a garantia do direito à cidade à população periférica.
2- Enfrentamento da fome e promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional – cobrando medidas imediatas e emergenciais para a superação da tragédia humanitária que voltou a assolar o país, bem como ações para eliminar as raízes estruturantes responsáveis pela reprodução da pobreza e da fome, incluindo o fortalecimento da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais como produtores de alimentos saudáveis e diversificados e o desenvolvimento de sistemas descentralizados de produção e abastecimento alimentar a preços acessíveis.
3- Ciência crítica e cidadã, educação pública de qualidade e democratização da comunicação e da cultura – demandando, entre outras políticas, a estruturação, ampliação e fortalecimento de Escolas do e no Campo, Escolas da Família Agrícola e de educação contextualizada, do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), dos Núcleos de Estudos em Agroecologia (NEAs) nas universidades públicas e institutos federais, e dos institutos e empresas públicas de pesquisa, institucionalizando a agroecologia como enfoque para o desenvolvimento científico e tecnológico, além da democratização dos meios de comunicação.
4- Participação democrática e controle social na construção de políticas públicas – exigindo a existência e o pleno funcionamento de instâncias de participação e controle social, como conselhos, conferências e audiências públicas.
5- Promoção da igualdade de gênero e racial e superação do colonialismo – afirmando que a estruturação de sistemas alimentares justos e sustentáveis é incompatível com o machismo, o racismo, a LGBTQIA+fobia e com os métodos colonialistas negadores de saberes e práticas populares, denunciando as práticas de violência no campo e nas cidades e cobrando a garantia dos direitos previstos na Constituição Federal e a implementação de políticas estruturantes e afirmativas por igualdade, inclusão e justiça social.
Esses cinco eixos temáticos da Carta-Compromisso foram também adotados para classificar as 487 políticas e normativas estaduais que apoiam a agricultura familiar, fortalecem a agroecologia e promovem a soberania e segurança alimentar e nutricional identificadas no trabalho de levantamento realizado nos meses de maio e junho, de forma descentralizada, com a participação de redes e organizações dos 26 estados e do Distrito Federal. A pesquisa deu origem à publicação intitulada Entre desmontes e resistências: uma análise de políticas públicas e normativas estaduais que fortalecem a agroecologia, que traz uma síntese geral das iniciativas. Têm destaque no documento as Políticas Estaduais de Agroecologia e Produção Orgânica (PEAPOs), presentes em dezenove estados. Outros exemplos importantes dizem respeito a políticas de regularização fundiária de comunidades quilombolas, de estoques comunitários de sementes crioulas, de compostagem de resíduos orgânicos, de incentivo a feiras e ao consumo de produtos orgânicos e de redução do uso de agrotóxicos. O documento ressalta, contudo, que o processo de implementação e efetivação de políticas públicas nos e pelos estados ainda é frágil: muitas das políticas identificadas não estão sendo executadas por falta de estrutura para sua realização ou de orçamento. Desse modo, ao mesmo tempo em que evidencia uma enorme riqueza e diversidade de iniciativas e de possibilidades de institucionalização e adoção de políticas e normativas, a pesquisa aponta para o enorme desafio da estruturação e da garantia de orçamento a cada ano, fundamentais para a consolidação dessas ações e para o alcance dos resultados esperados.
Essas 487 iniciativas estaduais foram também sistematizadas e publicadas em um mapa online, onde podem ser consultadas e servir de referência para a criação e o aprimoramento de ações pelos governos e mandatos estaduais que se iniciarão em janeiro de 2023.
A pesquisa que teve como objeto as políticas federais relacionadas à agroecologia também foi publicada e divulgada no contexto da campanha da ANA. O documento Brasil, do flagelo da fome ao futuro agroecológico – Uma análise do desmonte das políticas públicas federais e a agroecologia como alternativa foi elaborado por um grupo de pesquisadoras/es da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Livre de Berlim, analisando a criação das políticas federais de apoio à agroecologia e à soberania e segurança alimentar e nutricional desde a Constituição de 1988, bem como o abrupto desmonte observado desde o golpe jurídico-parlamentar-midiático que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. O documento remete à Constituição Cidadã, passa pela criação das condições jurídicas e pelo desenvolvimento de todo um conjunto de políticas e instrumentos voltados tanto para o desenvolvimento como para a proteção de diversos grupos sociais e de seus modos de vida, e aprofunda a análise sobre a reorientação nas prioridades do Estado assistida nos últimos anos, que afetou a capacidade de colocar em prática políticas públicas e de regular diferentes aspectos da vida social, econômica e cultural, aprofundando desigualdades e impondo duras restrições à participação cidadã. O texto mostra como o desmonte das políticas tem sido sistêmico na estrutura do Estado, envolvendo inclusive um movimento ativo de desconstrução de capacidades relacionadas à concretização e ao monitoramento de políticas públicas, acompanhado pelo avanço de novas agendas envolvendo a introdução de diferentes mecanismos de governança público-privada.
A segunda parte da pesquisa foi elaborada a partir de um amplo processo de escuta a lideranças de movimentos, redes e organizações integradas à ANA em todas as regiões do Brasil e resultou na organização de um conjunto de propostas dirigidas ao novo governo e mandatos legislativos para a reconstituição e o aprimoramento de políticas e instituições necessárias para o avanço da perspectiva agroecológica como enfoque para o desenvolvimento de sistemas alimentares socialmente justos, ecologicamente sustentáveis e culturalmente adequados.
O documento aponta que democratizar, ampliar e qualificar os espaços de participação da sociedade, contemplando sua diversidade, é um dos componentes principais do futuro desejado, sendo a reativação dos conselhos de participação da sociedade civil considerada urgente, e sendo garantido não apenas seu caráter consultivo, mas também deliberativo. São também demandados o restabelecimento imediato e a ampliação das políticas de produção, comercialização e acesso a alimentos de base agroecológica, incluindo desde políticas mais emergenciais, como os Programas Fome Zero e Brasil Sem Miséria, o Bolsa Família, os restaurantes populares, os bancos de alimentos, entre outros, até medidas mais estruturantes, como a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e a Política de Ater (Assistência Técnica e Extensão Rural).
O último movimento da campanha de mobilização da ANA, que em julho deliberou pelo apoio à candidatura Lula e em outubro publicou uma carta aberta reforçando o apoio à sua eleição, foi a apresentação, em 1º de dezembro, de um documento à equipe de transição contendo uma agenda propositiva com cem ações de curto, médio e longo prazos, agrupadas em treze eixos prioritários para o novo governo federal. O documento foi recebido pelos deputados federais Pedro Uczai (PT-SC) e Bira do Pindaré (PSB-MA), que integram a coordenação do GT de Desenvolvimento Agrário da transição, bem como pelo pesquisador Renato Maluf e a chef de cozinha Bela Gil, que compõem a coordenação do GT de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Além do GT de Desenvolvimento Agrário, a ANA participa do gabinete de transição nos grupos temáticos de Desenvolvimento Social e Combate à fome, contribuindo também nos GTs de Mulheres, Meio Ambiente e Agricultura.
Vale ainda destacar o papel que teve essa grande ação nacional de incidência no debate eleitoral no sentido de fortalecer o próprio movimento agroecológico. A iniciativa mobilizou movimentos, redes e organizações em todo o país em torno do processo democrático, promovendo o diálogo com suas próprias bases e fortalecendo a discussão qualificada da política junto à população.
O momento é de esperança. A retomada do ambiente democrático ilumina os caminhos do país e as organizações do campo agroecológico estão mobilizadas para contribuir para a reconstrução do Estado e de suas instituições e capacidades, bem como para a retomada e a construção de políticas de combate à fome e redução de desigualdades sociais e garantidoras de direitos da classe trabalhadora. Reafirmamos que somente com o diálogo e a participação popular será possível avançarmos rumo a um país mais justo.
Flavia Londres é engenheira agrônoma e integrante da Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).