A crise vem de tão longe…
Nos últimos 20 anos, depois de um “círculo virtuoso” de felicidade geral, multiplicaram-se as crises – crise de crescimento, crise cambial, crise da chamada “nova economia” etc… Mas a crise não é conjuntural: é do próprio sistemaRené Passet
Tudo começara tão bem! Estávamos no limiar da década de 80 e nascia um outro mundo. Aplicando os dez mandamentos do “Consenso de Washington1“, Ronald Reagan e Margaret Thatcher haviam conduzido seus povos até as margens da terra prometida. Os profetas rejubilavam: para o velho Friedrich Hayek, a derrota do Estado permitiria superar de vez A Rota da Servidão2; segundo Milton Friedman, a livre circulação de capitais associada à flutuação cambial seria a garantia de estabilidade das economias. E Francis Fukuyama via o fim da história da humanidade, que daria lugar ao “reino do cálculo econômico e da busca infinita por soluções técnicas3“. Em uma palavra, era a felicidade.
Fechava-se um novo “círculo virtuoso”: as pessoas detinham em mãos um patrimônio de ações cujo valor no mercado de capitais subia no mesmo ritmo em que subiam as esperanças depositadas num futuro de novas tecnologias, provocando um “efeito de riqueza” que estimularia o consumo doméstico que, por sua vez, incentivaria a atividade econômica, que faria subir a cotação das ações, que estimularia a demanda etc. E, antes mesmo que registrassem seu primeiro dólar de lucro, empresas como a Amazon.com ou a AOL viram a cotação de suas ações na Bolsa superar as da Texaco e da General Motors…
Uma capacidade de reação espantosa
Os primeiros abalos no mercado de capitais ocorreram no setor de novas tecnologias: de março de 2000 a março de 2001, a Nasdaq perdeu 62% de seu valor
No entanto, à força de serem sopradas, essas bexigas acabam estourando e revelando seu conteúdo de vento. Os primeiros abalos no mercado de capitais produziram-se no setor de novas tecnologias: de março de 2000 a março de 2001, a Nasdaq perdeu 62% de seu valor. Em seguida, o processo de ruptura estendeu-se aos valores tradicionais: em dois anos (de março de 2000 a março de 2002), o SP500 – índice das 500 empresas norte-americanas de maior valor na Bolsa, em Wall Street – caiu 50%, enquanto o CAC 40 – índice das 40 maiores empresas na Bolsa de Paris – e o Eurostoxx – as 50 principais empresas européias – registravam ambos uma queda de 30%.
Mas a economia real parecia resistir. Apesar da queda do patrimônio na Bolsa, o consumo e os investimentos vinham se mantendo. De maneira muito rápida, após os atentados de 11 de setembro, o aparelho produtivo norte-americano demonstrou uma capacidade de reação espantosa: para surpresa geral, o último trimestre de 2001 registrou uma alta de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) em ritmo anual; a partir de janeiro de 2002, o desemprego recomeçou a recuar e os salários a aumentar. No dia 7 de março de 2002, menos de três meses após a estrondosa falência da prestadora de serviços de energia Enron, o presidente do Banco Central (Federal Reserve), Alan Greenspan, demonstrava otimismo: “O crescimento foi retomado”, disse. Mais tarde, soube-se que a realidade não era tão brilhante. Segundo o Departamento do Comércio, o PIB norte-americano cresceu apenas 0,3% em 2001, ao invés do 1,2% previsto. Também para 2002, espera-se um ritmo lento.
Confiança no mercado foi abalada
O sistema está bem longe das regras de transparência e integridade que deveriam garantir a credibilidade dos mercados financeiros
Isso porque a onda de choque se propagou a outras empresas, como, por exemplo, o escritório de consultoria Andersen -cúmplice da Enron -, o grupo Xerox, o conglomerado Tycon, o gigante de telecomunicações WorldCom, o Merryl Lynch – principal banco de investimentos do mundo e também comprometido com a Enron -, a Vivendi Universal, na França… Esses casos revelaram práticas sinistras: contabilidade fraudulenta, cumplicidade, fusões delirantes, remunerações desproporcionais dos diretores, stock options4 concedidas imediatamente antes que o desmoronamento da empresa engolisse a poupança salarial dos empregados, relações dúbias com o poder – que teve sua campanha eleitoral financiada por firmas como a Enron. Bem longe, portanto, das regras de transparência e integridade que deveriam garantir a credibilidade dos mercados financeiros. Quando o presidente George W. Bush e seu vice-presidente Richard Cheney tentaram tranqüilizar a opinião pública, os amigos da onça disseram que, agora, eles condenavam práticas que eles próprios adotavam na época da Harken Energy Corporation e da Halliburton5.
A confiança fora abalada. A etapa era decisiva: “A falsificação e a fraude”, disse Alan Greenspan6, “destroem o capitalismo e a liberdade do mercado e, de forma mais abrangente, as próprias bases da nossa sociedade.” De fato, o índice de confiança dos consumidores divulgado em julho pelo instituto Conference Board assinalava uma regressão de 9,2%; quanto aos investimentos – como destacou um especialista famoso -, “a confiança das pessoas no mercado de capitais foi abalada. Levará anos até que seja retomada7“. É o terremoto. Da economia real, a crise passa para o mercado de capitais para tornar a voltar, via a erosão do patrimônio e do mercado de ações, à mesma economia real cuja depressão já repica nos valores da Bolsa etc… Nos Estados Unidos, como na Europa, o crescimento tem seus índices reavaliados para baixo, as medidas de demissão multiplicam-se e, de sobressalto em sobressalto, prossegue o descalabro do mercado de capitais.
Algumas goteiras a vedar…
Não seriam, talvez, a corrupção e a fraude conseqüências normais de um sistema em que o dinheiro se tornou o valor supremo?
Como é necessário tranqüilizar todo mundo tranqüilizando-se a si próprias, as autoridades denunciam, inicialmente, aquilo que não questiona a lógica do sistema:
– as taxas de juros: muito baixas nos Estados Unidos, onde, após onze quedas consecutivas, o Federal Reserve perdeu qualquer possibilidade de margem de manobra suplementar; muito elevadas na Europa, onde o Banco Central, ofuscado por sua missão de lutar contra a inflação, negligenciou o crescimento;
– o comportamento incerto dos dirigentes empresariais, responsáveis pela corrupção: “Se contornarmos o problema dos dirigentes empresariais”, afirmou Greenspan, “os outros problemas irão desaparecer8.” E o presidente dos Estados Unidos anunciou “uma nova ética que aumentará a confiança dos investidores, tornará os empregados orgulhosos das empresas em que trabalham e devolverá a confiança ao povo norte-americano9“. Por que será que os céticos incorrigíveis ficam debochando?
– as disfunções do sistema: falta de transparência dos mercados financeiros, dependência dos membros dos conselhos administrativos em relação às atividades que supervisionam, multiplicidade de sistemas contábeis, sobreposição de interesses entre as empresas de auditoria e as empresas que supostamente fiscalizam, fragilidade das autoridades fiscalizadoras do mercado de capitais (a SEC, nos Estados Unidos, a COB, na França)…
Algumas ovelhas negras a eliminar, algumas goteiras a vedar… e a situação ficará sob controle.
Contradições do próprio crescimento
Não seria porque o refinanciamento das empresas está vinculado à evolução do valor de suas ações que a contabilidade é falsificada?
Contudo, a evolução dos acontecimentos convida-nos a um pouco mais de curiosidade. Primeiramente, nos leva a perguntar se a corrupção e a fraude – tão rapidamente denunciadas como disfunções – não seriam, talvez, a conseqüência normal de um sistema em que o dinheiro se tornou o valor supremo. Não seria a sede de resultados das instituições financeiras (os 15% de rendimento de capitais limpos) que incitaria as empresas a incentivar o “crescimento externo” por meio dessas fusões gigantescas que tantas vezes não dão certo? Não seria porque o refinanciamento das empresas está vinculado à evolução do valor de suas ações na Bolsa – que, por sua vez, está subordinado ao desempenho da empresa a curto prazo – que a contabilidade é falsificada? A importância desproporcional assumida pelas stock options na remuneração dos diretores não constituiria, em alguns casos, um motivo suplementar para ceder à tentação de falsificações que incham seus patrimônios pessoais?
Em segundo lugar, surgem contradições no próprio centro dos mecanismos do crescimento. Este baseia-se, sem dúvida alguma, na sólida base de um avanço considerável dos Estados Unidos na área das tecnologias do imaterial. Mas a repercussão delirante que vem sendo atribuída aos valores tecnológicos decorre, antes de tudo, de uma liberalização extrema que dá ampla liberdade aos movimentos de especulação. Quando a bolha incha, as empresas pegam empréstimos para investir; quando estoura, sobram as dívidas… que nada têm de virtual.
As exigências da mutação tecnológica
A repercussão delirante que é atribuída aos valores tecnológicos decorre de uma liberalização que dá ampla liberdade aos movimentos de especulação
Não é saudável que as empresas sejam levadas a readquirir suas próprias ações para segurar sua cotação. E o endividamento dos acionistas particulares – que sustenta o consumo – não pode persistir por tempo indefinido. André Gorz demonstra que mesmo que o índice de endividamento dos acionistas particulares norte-americanos caísse de 4% para 2,5% ao ano, o serviço dessa dívida absorveria, em 2004, 25% de seus rendimentos disponíveis10. Acrescente-se a isso a ameaça de uma crise dos fundos de aposentadoria norte-americanos, com prestações definidas, cujos ativos torraram com a crise da Bolsa.
Os Estados Unidos só estão em condições de aumentar seus investimentos, sem arrochar o consumo, às custas de um considerável endividamento externo, da ordem de 400 bilhões de dólares por ano. Isso implica um “bombeamento” de capitais desastroso para o crescimento dos outros países e, mais adiante, torna o próprio país devedor vulnerável junto a seus credores.
Finalmente, e ao contrário do que vem sendo dito, não seria o capitalismo do mercado de capitais fundamentalmente inadequado às exigências da mutação tecnológica contemporânea? Os meios de comunicação fazem do mundo uma unidade organizada em redes, vivida em tempo real e dominada pela interdependência. As questões que se colocam implicam uma abertura para o prazo, muito longo, da biosfera (ritmos de reconstituição de bens renováveis, biodiversidade, efeito-estufa…); e uma abertura para os valores humanos, ao invés e no lugar do desempenho exclusivo do aparelho produtivo.
A necessidade de transformar o sistema
Os EUA só têm condições de aumentar seus investimentos sem arrochar o consumo às custas de um endividamento externo de 400 bilhões de dólares por ano
A todos esses desafios o sistema responde com um autismo mesquinho, baseado exclusivamente na lógica do instrumento financeiro. Dessa maneira, o prazo-muito-longo transforma-se nos “próximos dez minutos”, como declarou a James Tobin um financista que pensava estar sendo realista11. E o aparelho econômico passa, então, a se empenhar em disparar os rendimentos, ainda que pagando para isso o preço da desertificação das terras, da degradação da natureza, da destruição das riquezas e da desgraça dos homens.
Em seu livro, Joseph Stiglitz12 mostra como o FMI, um autêntico “bombeiro piromaníaco”, cria por si próprio – ao impor uma lógica exclusivamente financeira aos países mais pobres – os problemas que tem por missão combater. Em qualquer lugar do mundo onde exista uma ameaça de crise e a economia real necessite de liquidez, o Fundo impõe as restrições que mergulham as pessoas na desgraça… mas garantem o reembolso de seus credores. Dessa forma, sacrificando os investimentos básicos de rendimento diferenciado (infra-estruturas econômicas, educação, saúde etc.) indispensáveis ao crescimento econômico – e com o objetivo de garantir os excedentes orçamentários indispensáveis ao pagamento das dívidas, os planos de ajuste estrutural (PAS) asfixiam os países que dizem estar socorrendo… A Argentina sabe disso13.
Dessas contradições fundamentais resulta a incapacidade de o sistema regular as economias modernas. Se nem sempre se trata de uma “noite de gala”, nem por isso se trata de meros acidentes de percurso. Os próprios atentados do 11 de setembro serviram, ainda que marginalmente, para acelerar e revelar as contradições que já existiam no sistema. É o próprio sistema que está em crise.
De nada adiantarão rezas fortes, medidas de faz-de-conta ou quebra-galhos. Mas, não nos deixemos iludir: a principal característica do capitalismo – devido ao espaço que oferece a uma multiplicidade de iniciativas individuais – é sua capacidade de utilizar as crises para se regenerar e renovar. A verdadeira solução para o capitalismo do mercado de capitais não vai cair do céu. Ela pressupõe uma ação deliberada com o objetivo de arrancar o poder das mãos das potências financeiras e, dessa forma, transformar a lógica do sistema.
(Trad.: Jô Amado)
1 – As dez “recomendações” impostas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial aos países pobres. Ler, de Moisés Naim, “Avatars du consensus de Washington”, Le Monde diplomatique, março de 2000.
2 – Ler, de Friedrich Hayek, La route de la servitude, ed. Médicis, 1946.
3 – Ler, de Francis Fukuyama, La in de l?histoire et le dernier homme, ed. Flammarion, Paris, 1992.
4 – Um tipo de ações especial, concedido aos altos funcionários das empresas, que lhes permite realizarem operações de mais-valia significativas e sem fiscalização.
5 – Duas empresas suspeitas de falsificação contábil e venda fraudulenta de ações.
6 – Declaração perante a Comissão de bancos do Senado norte-americano, 16 de julho de 2002.
7 – Declaração de Jeff Knight, diretor de investimentos da Putnam Investment, Le Monde, 24 de julho de 2002.
8 – Discurso perante a Comissão de bancos do Senado norte-americano, 16 de julho de 2002.
9 – Discurso do dia 9 de julho de 2002, em Wall Street.
10 – Ler, de André Gorz, “Etats-Unis: chronique d?une crise annoncée”, Transversales nº 65,