A culpa é de Borges
Vargas Llosa é o único a conseguir a façanha de escrever um texto longo sobre a Argentina sem mencionar, uma só vez, o FMI, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio, e muito menos, é claro, o governo norte-americanoVladimir Caller
Como a Argentina – que, na década de 40, tinha um dos níveis de vida mais elevados do mundo – pôde chegar à situação atual? Numa das inúmeras crônicas que publica no jornal espanhol El País, o escritor (e ex-candidato à presidência do Peru) Mario Vargas Llosa apresenta sua explicação: “A verdadeira razão é (…) intimista, difusa, e tem mais a ver com uma determinada predisposição do espírito e da psicologia do que com doutrinas econômicas ou lutas pelo poder1
.”
Dentre as centenas, e até milhares, de artigos, comentários, notas e análises publicados a respeito da crise argentina, Vargas Llosa parece ser o único a conseguir a façanha de escrever um texto longo sem mencionar, uma só vez, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio e, ainda menos, é claro, o governo norte-americano, na gênese, maturação e desfecho do problema argentino. Da mesma maneira, no dicionário “varguista”, são proibidos termos como globalização, privatizações maciças, desmantelamento do setor público, presença crescente dos acionistas e do capital financeiro na evolução das economias dependentes.
A obscura lógica do avestruz
Quem não compreender a genial descoberta de Vargas ignora a lógica do avestruz que, como os argentinos, esconde a cabeça na areia quando chega o furacão
Para sustentar semelhante vontade de evasão, só lhe resta apelar para Jorge Luis Borges, esse bom Borges, capaz de prestar serviços post mortem graças à magia de Vargas Llosa. A Argentina, segundo ele, escapa de todos os “ismos”, com exceção de um. A Argentina é “borgista” e é esta a origem de seus males e a chave de seus mistérios. “Não é mero acaso o fato de o mais notável dos criadores evadidos do mundo real da literatura moderna ter nascido e ter escrito na Argentina, país que manifesta, há décadas, não só na vida literária, mas também na vida social, econômica e política, assim como Borges, uma notória preferência pela irrealidade e uma rejeição cheia de desprezo pela sordidez e mesquinharia do mundo real, da vida possível.”
Quem não tiver compreendido essa genial descoberta, ignora, então, a obscura lógica dos avestruzes que, como os argentinos – dixit Vargas – escondem a cabeça na areia quando chega o furacão. É uma abordagem ainda mais curiosa na medida em que, tratando-se de outros projetos ou situações políticas, tais como a revolução cubana ou sandinista, ou a de Hugo Chávez, na Venezuela, ou de Chiapas, ou de qualquer outro movimento que contesta os dogmas e liturgias da globalização, nosso ilustre pesquisador de fontes oníricas não encontra, nem procura encontrar “as motivações intimistas e difusas”, nem as “predisposições do espírito e da psicologia”, nem a herança explicativa de célebres romancistas desaparecidos. Nesses casos, encontra apenas a oportunidade de exercer seus anátemas contra as ideologias coletivistas, contra os resquícios marxistas e de outras demagogias revolucionárias.
(Trad.: Regina Salgado Ca