A cura da hepatite C em risco
O enfraquecido governo brasileiro de Michel Temer está abrindo mão de tratar todos os pacientes de hepatite C apenas para beneficiar uma megacorporação norte-americana. Nem conceder a patente nem importar o remédio com desconto resolveria o problema para os milhares de cidadãos que dependem desses medicamentos para sobreviver
Recentemente, a grande mídia brasileira, diversas ONGs e inclusive os candidatos à sucessão presidencial colocaram no centro do debate sobre saúde pública a concessão da patente de um dos principais remédios utilizados no tratamento da hepatite C a uma empresa privada norte-americana. O ponto central do debate foi o fato de que o governo brasileiro deixaria de economizar mais de R$ 1 bilhão por ano caso o país não autorizasse a produção do medicamento genérico.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, hoje o vírus da hepatite mata mais que o da aids, tendo sido responsável pela trágica marca de 1,34 milhão de óbitos em 2015. O Ministério da Saúde do Brasil calcula que cerca de 1,4 milhão de pessoas já tiveram contato com o vírus do tipo C no país. Por conta desses números, o próprio ministério lançou um plano para eliminar a hepatite C até 2030. A meta nacional é tratar 19 mil pessoas em 2018 e, a partir de 2019, 50 mil pacientes por ano até 2024. A partir de 2025, esse número passaria a 32 mil novos tratamentos ao ano. Assim, espera-se reduzir em 65% a mortalidade por hepatite C até 2030 e tratar cerca de 511 mil pessoas.
Para lançar o plano, o governo brasileiro vai adquirir inicialmente 50 mil novos tratamentos que serão disponibilizados pelo SUS. O tratamento mais eficaz hoje, que leva à cura em mais de 95% dos casos, depende da combinação de antivirais de ação direta (AADs), como o sofosbuvir (SOF), fabricado pela empresa norte-americana Gilead, e o daclatasvir (DCV), feito pela também norte-americana Bristol-Myers Squibb.
Apesar dos AADs terem revolucionado o tratamento da hepatite C, contribuindo para a cura de muitos pacientes e reduzindo a demanda pelo transplante de fígado, o problema hoje são os altos preços pagos para obter os medicamentos de marca.
Atualmente, o Ministério da Saúde paga US$ 6.905 (aproximadamente R$ 27.620) por cada tratamento que utiliza a combinação SOF e DCV de marca. No entanto, um convênio formado entre o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fiocruz, e o consórcio nacional BMK (que reúne a farmacêutica Blanver, a Microbiológica Química e Farmacêutica e a KB Consultoria) obteve um registro da Anvisa para fabricar o sofosbuvir (SOF) genérico.
Em tomada de preços no início de julho no Ministério da Saúde, a Gilead ofereceu o medicamento a US$ 34,32 por comprimido, e o consórcio nacional liderado pela Farmanguinhos ofertou o genérico a US$ 8,50. Com a nova proposta, o governo passaria a pagar menos de um quarto do preço anterior (US$ 1.506, ou cerca de R$ 6.024) para obter o tratamento de doze semanas com os dois medicamentos, mas agora utilizando o SOF genérico nacional fabricado pela Fiocruz (o DCV continuaria sendo ofertado pela Bristol-Myers).
Diante de uma possível perda do mercado brasileiro a reação da Gilead foi dupla. De um lado, a empresa conseguiu obter do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), em setembro de 2018, a patente de uma molécula intermediária utilizada no processo de síntese do sofosbuvir. De outro, a própria empresa norte-americana ofereceu em seguida um desconto para a compra governamental, o que reduziria o preço de cada tratamento fornecido pelo SUS para US$ 1.483,06 (R$ 6.039,32), ou seja, US$ 19 a menos por tratamento que a proposta da Fiocruz.
Embora a concessão da patente tenha apenas uma relação indireta com o desconto oferecido pela Gilead ao governo, neste artigo advogamos que nenhuma das duas alternativas (conceder a patente ou importar o remédio com desconto) resolveria o problema para os milhares de cidadãos e cidadãs que dependem desses medicamentos para sobreviver.
Reconhecer ou não a patente?
A cessão da patente do SOF pelo Inpi para a empresa Gilead é um caso complexo e bastante controverso. A história oficial alega que a fórmula principal do remédio teria sido descoberta em 2007 pela empresa Pharmasset, que foi adquirida pela Gilead em novembro de 2011 por cerca de US$ 11 bilhões.
Após a aquisição, a Gilead apresentou o pedido de patente para o SOF em combinação com a ribavirina em abril de 2013 e, em outubro de 2013, recebeu a liberação para o desenvolvimento da droga pela Federal Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos.
A história não oficial, porém, relatada pela organização Doctors of the World, questiona essa narrativa ao afirmar que a verdadeira descoberta da molécula que torna o remédio possível foi feita por pesquisadores da School of Pharmacy and Pharmaceutical Sciences, da Universidade de Cardiff, Escócia, em 1996. Esse fato, inclusive, é base para os processos de quebra da patente do SOF em países como a China, a Argentina, a Índia e o Egito.
As duas histórias são importantes, pois afetaram diretamente o comportamento do preço das ações da Gilead ao longo do tempo. Após a compra da Pharmasset em 2011 até meados de 2015, as ações da empresa valorizaram mais de 500%, descolando bastante da variação do índice Nasdaq no período (que teve uma valorização de 100%). Segundo a própria Gilead, o pico dos preços de suas ações coincide também com a obtenção da última patente referente à utilização do remédio em conjunto com ledipasvir em meados de 2014.
Apesar de a empresa já ter faturado US$ 55 bilhões (R$ 225 bilhões) com a venda de remédios contra a hepatite C desde 2014, é possível observar no Gráfico 1 que suas ações seguem uma tendência recente de desvalorização, contrária à trajetória positiva do índice Nasdaq. Essa queda se deu certamente por conta da redução dos preços de seu principal medicamento. Quando lançado, o tratamento de doze semanas com o SOF era vendido por US$ 84 mil (cerca de R$ 344 mil); hoje, graças à pressão competitiva gerada pelos medicamentos genéricos, a empresa se viu obrigada a ceder e vender o tratamento por preços cada vez menores.
Assim, apesar de o desconto ofertado supostamente economizar recursos do SUS e de haver um baixo risco de uma volta precoce ao preço antigo por conta da concorrência nacional, nada garante que a empresa não volte a praticar preços mais altos após a obtenção da patente, ainda mais sendo pressionada pelos acionistas por melhores resultados no desempenho de seus papéis na Bolsa da Nasdaq.
Importar mais barato ou produzir nacionalmente?
Mesmo que o Brasil não pudesse produzir o remédio, a importação do SOF com desconto fabricado pela Gilead também não seria a única opção no mercado externo. A ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), por exemplo, publicou que chega a pagar pelo mesmo tratamento cerca de US$ 120 para utilizá-lo em onze países, obtendo ambos os medicamentos de diversas fontes.
Além do preço divulgado pelos MSF, outros estudos (por exemplo, HILL et al., 2014, p.933) estimavam que, apesar do alto preço praticado em 2014, o custo de produção dos dois medicamentos para o tratamento de doze semanas variava entre US$ 78 e 166. Além disso, ainda segundo os MSF, por conta do aumento da concorrência entre as empresas e de economias de escala, os preços de produção caíram, em 2017, para US$ 76 (sendo o preço do DCV estimado em US$ 14 e do SOF, em US$ 62).
Fazendo uma conta básica, se o país comprasse o medicamento das mesmas fontes que ofertam as drogas aos MSF, seria possível, por exemplo, tratar todos os brasileiros que sofrem de hepatite C (em torno de 700 mil enfermos) com pouco mais de R$ 340 milhões. Já com a droga fornecida pela Gilead “com desconto” seria necessário praticamente o mesmo valor para atingir apenas a meta mínima anual de tratamentos (50 mil pessoas por R$ 300 milhões).
Ainda assim, tais números só se sustentam se a empresa Gilead mantiver o desconto oferecido para o governo em 2018. Caso a empresa decida retomar os preços antigos, seria necessário R$ 1,4 bilhão para cada 50 mil tratamentos ao ano, o que consumiria quase 8% de todos os recursos destinados à compra de medicamentos pelo SUS em 2016. (Segundo recente estudo publicado pelo Ipea, o SUS gastou R$ 18 bilhões em 2016 apenas com a compra de medicamentos.)
Além disso, apesar de a alternativa mais barata existir, nada garante que haja um fluxo contínuo da oferta dos medicamentos importados ao longo do tempo. Especialistas no assunto (SHADLEN; FONSECA, 2015) advertem para o risco de o programa se tornar insustentável na medida em que mais pessoas iniciam o tratamento; por isso, advogam a favor da produção nacional como garantidora da oferta a médio e longo prazo dos medicamentos genéricos. O Brasil sempre foi importador líquido de produtos farmacêuticos desde o início da série histórica, tendo registrado um déficit comercial crescente ao longo do tempo (vide Gráfico 2), o qual atingiu US$ 5,3 bilhões (ou cerca de R$ 21,2 bilhões) em 2017.
A saída via produção nacional pode reduzir a dependência do mercado brasileiro dos produtos farmacêuticos importados e promover o avanço tecnológico na produção desses medicamentos, até porque entre os principais desenvolvedores do sofosbuvir nos anos 2000 estava a empresa microbiológica brasileira liderada pelo cientista Jaime Rabi, justamente a mesma que agora integra o consórcio liderado pela Fiocruz para a produção do genérico.
Caso o país quebre novamente a patente, a concorrência nacional passará a ser imediatamente com os genéricos importados de valor mais baixo, o que pode levar a uma redução ainda maior dos preços no futuro. Esse desfecho é particularmente importante, já que a indisponibilidade de uma alternativa genérica aumentaria também os custos para quem tenta adquirir o tratamento por conta própria, pois o acordo com a Gilead, a princípio, é válido apenas para os medicamentos adquiridos pelo governo federal.
O Brasil é considerado um país de renda média alta segundo o Banco Mundial, mas ainda assim figura no grupo dos subdesenvolvidos segundo a classificação das Nações Unidas. Apesar de termos um sistema único de saúde, nosso gasto per capita com o Estado é ainda relativamente modesto se comparado com outros países mais desenvolvidos, incluindo países latino-americanos como o Chile (GUEDES, 2008).
Pelos motivos expostos, afirmamos que o enfraquecido governo brasileiro poderá estar abrindo mão de tratar todos os pacientes de hepatite C apenas para beneficiar uma megacorporação norte-americana. Num cenário de crescente dívida pública e de limites orçamentários cada vez maiores, a única escolha compatível com a sustentabilidade de um programa público de aquisição dos medicamentos para o tratamento da hepatite C crônica é manter a quebra da patente e incentivar a produção nacional.
Gráfico 1 – Variação das ações Gilead Sciences × índice Nasdaq (2011-2017)
Fonte: Nasdaq. Elaboração própria.
Gráfico 2 – Balança comercial brasileira de produtos farmacêuticos (em US$ milhões)
Fonte: UM Comtrade. Elaboração própria.
*José Paulo Guedes Pinto é pós-doutor pela London School of Economics and Political Science e professor da UFABC; Alexandre Becker é graduado em Neurociências e mestrando em Economia Política Mundial pela UFABC. E-mails: [email protected] e [email protected].