A decadência do fotojornalismo
Nos anos 60 e início dos 70, a simples divulgação de fotografias teve o poder de mudar o curso da história. Em contraste com essa época de ouro, o jornalismo visual contemporâneo inunda o mundo com cartões-postaisEdgar Roskis
No final dos anos 60 e início dos anos 70, apenas algumas dezenas de repórteres fotográficos que trabalhavam nas agências Gamma, Magnum, UPI e Associated Press ou nas grandes revistas como Life e Paris Match eram responsáveis pela produção das imagens sobre a atualidade mundial. 1 Esta época é freqüentemente descrita como uma idade de ouro. Um pequeno grupo de operadores de prestígio e onipresentes, sendo que cada um se encontrava no lugar certo no momento certo ( “the right man, at the right time, at the right place”) , tiveram o poder de influenciar o curso da história pela simples divulgação de fotografias – ainda gravadas nas nossas memórias – cuja força e perfeição resultavam da concretização de duas regras quase científicas definindo um ideal espaço-temporal: “o instante decisivo”, teorizado por Henri Cartier-Bresson e o adágio de Robert Capa segundo o qual “se sua foto não é boa, é que você não estava suficientemente perto”2
É obvio que estes anos de opulência tomam tal dimensão pelo contraste com a miséria atual do foto-jornalismo. Existia, na realidade, correntes que preferiam a pose ao instantâneo, a estética ao documento, a comoção à narração, o arranjo sobre a história, mas estas correntes, que hoje dominam, eram então dominadas. A maioria das “grandes” fotografias de atualidades daquele período são puros instantâneos, sem concessões nem floreios, realizados por operadores excepcionalmente sóbrios e precisos. Realizada por Don McCullin, em 1969, a foto de uma criança albina de Biafra, mal se mantendo em pé sobre pernas filiformes com uma caixa de corned-beef entre suas mãos frágeis, mostrou à consciência do mundo o estado de fome ao qual estava reduzido um povo cuja própria existência era ignorada antes dessa reportagem.
O combatente da Frente Nacional de Libertação (FNL) executado com uma bala na têmpora pelo chefe da polícia de Saigon e depois, quatro anos mais tarde, a menina correndo nua pela estrada depois de ter tirado as roupas queimadas pelo napalm, dois documentos publicados nas primeiras páginas de toda a imprensa internacional3, revoltaram a opinião contra a guerra do Vietnã. A de Larry Burrows, que apareceu em página dupla no Life , ao mostrar um fuzileiro ferido recebendo socorro de um dos seus camaradas no meio da lama no Extremo Oriente, termina, além das derrotas sofridas por seu exército, por convencer os próprios norte-americanos que daquela guerra eles só poderiam esperar perdas catastróficas e um afogamento total. Se por si só não mudaram a face do mundo, estas imagens e congêneres, pelo rigor de suas constatações, no mínimo desencadearam a resistência contra a ação dos poderosos.
Indivíduos são escolhidos por sua conformidade com um modelo de alteridade aceitável pelos cânones da visão ocidental e publicitária do mundo
Até o niilismo dos anos oitenta, quando as sereias do liberalismo começaram a cantar nos ouvidos dos mais passíveis de se encaminharem por “desvios”, quando as classes médias aumentam de importância enquanto as classes inferiores eram abandonadas à sua sorte, quando só se espera a salvação individual, interessar-se pelos mais desfavorecidos equivalia a tomar partido em uma lógica claramente anti-capitalista. Enviados às frentes onde se afogavam os avanços e retrocessos do Progresso, derrotas e vitórias do Império, confrontados com os desequilíbrios do espetáculo assim oferecidos aos seus olhos, os jornalistas, quaisquer que fossem suas especialidades e seu grau de consciência política, se colocavam moralmente no campo antiimperialista pelo simples fato de se projetar fisicamente do lado dos sitiados. Eles aí descobriam não só a miséria quanto a injustiça.
A partir daí tudo é confuso. A “ética” dos direitos do homem que substitui a análise política, ou simplesmente a observação honesta e completa, embaralha a visão dos operadores, sua percepção delineia as linhas de demarcação entre opressores e oprimidos, frustra sua atitude de localizar os eixos de responsabilidades. Eles se dizem sempre mais ou menos “de esquerda” 4, como demonstram regularmente as pesquisas sociológicas , mas são de esquerda como se é nos nossos dias, isto é, vagamente do lados das “vítimas”, sem saber muito bem o que eles são e principalmente do quê ou de quem elas são vítimas5.
Com exceção de raros caçadores solitários6, os bravos infantes da reportagem atual se enredam em corpos expedicionários iconográficos, embarcam em grupos em um grande navio militar ou humanitário para margens de rios ou lagos cheios de desgraça, para uma travessia cheia de brumas onde transborda o humanismo e se afoga o discernimento. Uma vez desembarcados, precipitam-se em busca da Desgraça para que eles sintam o que Proust chamava “uma ternura de embriagado”, com esta lucidez particular que busca a intemperança7
O consenso sobre os modelos são a partir de agora tão amplos que de um mesmo evento diferentes operadores podem encaixar imagens absolutamente idênticas.
É alucinante a cena registrada, em agosto de 1994, no campo de Kabday8 onde vemos mais de três operadores filmarem ao redor de um refugiado de Ruanda, faminto e possivelmente doente de cólera, obrigado a arrastar-se diante deles até que eles estejam satisfeitos com a sua composição. Mesma sessão de pose, dois meses mais tarde no Iraque: desta vez o sujeito rastejante é um marinheiro, exemplar único, lote de consolação oferecido pela assessoria de imprensa do exército americano aos fotógrafos e produtores de vídeo desesperados com a proibição que lhes é imposta negando a ida até o fronte da guerra do Golfo9.
Afora qualquer julgamento moral, o que nos transmite este repórter fotográfico que, para conseguir seu objetivo, se apóia, aparentemente sem se dar conta, sobre o corpo morto ou moribundo de uma menina de Ruanda10, desqualificando-a, de uma certa forma, por uma segunda vez? Ao menos isto: que alguém pode se imergir em uma realidade sem, no entanto, ver nada.
Na maioria dos casos, trata-se de conseguir, negligenciando-se tudo que poderia complicar as coisas, a oposição dual a mais limpa possível, o símbolo puro
Sem necessariamente utilizar formas tão caricaturais, o casting, o manequim reto e pouco natural, mais ou menos deliberado tornou-se a regra da “reportagem” visual contemporânea. Os indivíduos não são colocados mais no quadro de uma imagem pela sua singularidade ou simplesmente porque eles aí estão – eles e ninguém mais – , eles são escolhidos por sua representatividade estatística, sua conformidade com um modelo de alteridade aceitável – portanto, assimilável- pelos cânones da visão ocidental, publicitária, do mundo: bastante “outros” para serem exóticos , suficientemente “mesmos” para merecer nosso interesse e suscitar nossa compaixão11. Apesar do ” profissionalismo”, do qual se prevalecem os atores da cadeia gráfica para decidir as imagens a serem produzidas, difundidas e publicadas, ele consiste mais em determinar o que “passa” nos jornais impressos ou televisivos do que em saber e compreender o que “se passa” no mundo.
O acordo, o consenso sobre os modelos (do que interessa, merece, emociona etc.) são a partir de agora tão amplos que de um mesmo evento diferentes operadores podem encaixar imagens absolutamente idênticas. Do aperto de mão trocado entre Rabin e Arafat, no dia 13 de setembro de 1993 em Washington, existem mais de duzentas versões do foto e do vídeo nos quais nada de substancial as diferencia, pura e simplesmente porque elas foram produzidas por mais de duzentos fotógrafos e produtores de vídeo que aceitaram serem acantonados numa mesma plataforma. Disso resulta a possibilidade de um só enfoque. É verdade que o constrangimento era imposto pelos serviços especiais da Casa Branca para os quais a representação não tem mais segredos, com a finalidade clara de fazer aparecer Clinton – isto é, a América – como Cristo12 pacificador. Mas estes serviços não fizeram nada mais que – de uma maneira coercitiva – integrar à sua própria cultura da comunicação princípios inicialmente praticados livremente em trabalhos pelos próprios fotógrafos, quando eles descobrem as virtudes maniqueístas da alegoria e do símbolo.
É sem terem combinado e nem mesmo terem marcado encontro que Marc Riboud, da agência Magnum, e Bernie Boston, da revista Life, registraram manifestações pacifistas diante do Pentágono, em 1967, dois clichês semelhantes, com minúsculos detalhes estéticos próximos: lado pátio, os fuzis, lado jardim, as flores, e o assunto estava resolvido. É sem se perguntar sobre a questão da duplicidade que três fotógrafos e um produtor de vídeo, reunidos pelas circunstâncias – ou pelo espírito de corpo- , no dia 5 de junho de 1989, em um escritório que avança sobre a avenida que leva à praça Tinanmen, conseguiram e puseram em circulação estritamente a mesma imagem, super conhecida, de um chinês interrompendo a marcha de uma coluna de tanques.
Nesta tarefa onde trata-se muito mais de pintar que descrever, o autor prima sobre o assunto, o estilo sobre o objeto, a composição sobre o documento.
O caso do produtor de vídeo, que trabalhava para o canal de televisão britânica ITN é interessante pois neste caso o assunto não é tão simples: a seqüência que ele rodou dura muitos minutos. Aí vemos o homem se interpor enquanto a coluna se impacienta, subir no primeiro tanque procurando um meio de entrar nele. O veículo, que agora tem a via livre e poderia, portanto, avançar, permanece imóvel. A escotilha da torre se abre, um escudeiro sai mas o homem, que parece ter renunciado, recua, fica de costas para ele e não percebe a sua presença , o que torna a situação cômica. O escudeiro, armado, poderia interpelá-lo. Ele se abstém. O homem desce para o asfalto, um grupo de civis o afasta. A ITN só montou e difundiu os primeiros segundos desse plano seqüencial, reduzindo-o a um videograma praticamente idêntico à imagem fixa das quais seus três confrades são, de certa forma, os co-autores.
Eliminando os rushes julgados impróprios ao consumo como tantas escórias que ameaçam poluir a nitidez da mensagem, o canal praticou o mesmo tipo de depuração em que se baseia a reportagem contemporânea, que atingiu seu paroxismo em Kosovo onde era preciso estabelecer definitivamente que os Sérvios eram certamente os únicos maus. Na maioria dos casos, trata-se de conseguir, negligenciando-se tudo que poderia complicar as coisas, a oposição dual a mais limpa possível, o símbolo puro como cristal, extraídas de contingências viscosas, brilhando tal qual a fonte de água clara, a única própria para estancar a sede, a estabelecer a luz, a suscitar adesão ; de um lado as baionetas, os fuzis, os tanques, os abutres, os terroristas, os islamitas; do outro lado os troncos nus, as flores, os olhares suplicantes, as populações excluídas, as vítimas aflitas, as distribuições de medicamentos e de comida. Ainda assim o uniforme tende a desaparecer atrás do véu da censura, pois hoje o soldado, humanitário, cirurgião, não mata mais: ele cura.
Um exército de operadores trabalha cotidianamente na construção de tais alegorias, extraindo sua inspiração em uma tradição pictural herdada de Eugene W. Smith, inventor do “fotógrafo engajado” (concerned photographer”) , segundo a qual toda cena é destinada a se tornar um quadro, como seu afresco lírico sobre a poluição do vilarejo japonês de Minamata. Para eles o mundo é um gigantesco workshop, uma oficina planetária propícia ao exercício de sua arte, ao desenvolvimento de seus “ensaios”, estes “photographic essays” tão caro aos repórteres ao longo do tempo. Nesta tarefa onde trata-se muito mais de pintar que descrever, o autor prima sobre o assunto, o estilo sobre o objeto, a composição sobre o documento. “Nestas fotografias, não é tanto o mundo que aprendemos a conhecer mas o estilo dos autores que buscamos reconhecer”, escreve Gilles Saussier13.
Superabundância de mensageiros, incontinência de signos, profusão de imagens, este novo estado da oferta visual tem muitas conseqüências irritantes. Primeiro a instauração de um regime deflacionista, característica de toda economia em superprodução: cada objeto produzido, no caso fotografias e reportagens visuais, nele perde em valor ( neste caso em utilidade, justeza, qualidade, em impacto), e inclusive – os fotógrafos e os produtores de vídeo se ressentem em primeiro lugar – em valor de mercado. O consumidor (leitor, telespectador, cidadão) exprime esta perda quando evoca “tudo o que se passa”, sugerindo que imagens e acontecimentos se perdem no meio da massa. Ele sente uma indiferença cada vez maior que é o contrário do objetivo fixado. Continuar a “vender” nestas condições necessita a criação de um valor agregado: é o papel do “estilo”- a exemplo do design quando ele reveste mecanismos de qualidade medíocre -, a pior das soluções em matéria de jornalismo é quando o estilo se exerce em detrimento de uma informação completa e comprovada.
O consumidor (leitor, telespectador, cidadão) quando sente uma indiferença cada vez maior que é o contrário do objetivo fixado
A segunda conseqüência é uma constatação: as dezenas de milhares de imagens produzidas a cada dia no mundo se agregam às dezenas de milhões de imagens conservadas nos estoques de arquivos para fins de reciclagem. A esperança de realizar fotos singulares se reduz, portanto, com o decorrer do tempo. Recorrendo-se a um sistema esgotado de modelos narrativos, de composições, enquadramentos, uso de efeitos, as reportagens tendem a se assemelhar, a se referir umas às outras muito mais que ao seu objeto, em um jogo de espelho iconográfico onde o desafio não é mais a realidade, a narração da história ou ao menos a história, mas o jogo em si mesmo.
Finalmente, o mais grave é a primazia da forma, do ritual assim instituído, como escreve Gilles Saussier, “conduzir diretamente ao revisionismo e à falsificação da história” 14. Saussier conta como o fotógrafo David Turnley ganhou o prêmio da World Press, uma das mais altas distinções da corporação, com um clichê “mostrando um soldado americano chorando a morte de um de seus camaradas vítima de um friendly fire, isto é, morto por engano de seu próprio campo”. “Graças a ele, escreve, um fato totalmente marginal tinha sido transformado em uma imagem símbolo, resumindo e mascarando um conflito que principalmente custo a vida de milhares de pobres diabos iraquianos.”
Por ocasião do último conflito afegão, como também no Iraque, os jornalistas não estiveram à altura de fotografar ou filmar em nenhum momento soldados americanos em ação. Na falta de imagens da verdadeira guerra, leitores e telespectadores tiveram direito durante meses a uma distribuição de verdadeiros cartões postais: graciosas danças de cargueiros militar -humanitários , mulheres liberadas de seu véu e livres para fazer fila diante da fachada azul vivo do World Food Programme (WFP) da ONU, paraquedismo de víveres condicionados em lindos sacos amarelos que normalmente servem para embalar minas anti-pessoas, “bons” milicianos afegães atravessando as dunas sob o sol que se recolhia, o raspar tranqüilizante de barbas muçulmanas, finalmente, em julho de 2002, visita amigável do secretário adjunto da defesa americana Paul Wolfowirz e formação sob a bandeira cheia de estrelas de um exército afegão “nacional”. Ninguém duvida que os estados maiores ainda comprarão, a partir da próxima ocasião, prospectos publicitários tão gentilmente confeccionados.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Resultado de uma intervenção no encontro organizado em Perpignan, em setembro de 2002, durante o Festival “Visa para a imagem”, esse artigo se restringe a seu tema inicial : a degradação do fotojornalismo. Entretanto, a análise concerne também às reportagens dos noticiários tal como são feitas pelas televisões.
2 – Robert Capa seguia seriamente esse princípio e por ele morreu: no dia 25 de maio de 1954, na estrada de Thai- Binh ( no Vietnã do Norte ) pisou numa mina ao saltar uma trincheira.
3 – Fotos feitas respectivamente em 1968 e 1972 por Eddie Adams e Nick Ut , os dois fotógrafos da Associated Press e ganhadores do prêmio Pulitzer.
4 – Sem entrar no debate sobre o quê significa exatamente « esquerda », ver por exemplo a pesquisa publicada na revista Marianne, de 23 de abril de 2001, segundo a qual apenas “6% dos jornalistas pensam em votar na direita”. Tratando-se especialmente dos reporteres fotógraficos, fundadores da agência Gamma ou da Viva, citando apenas essas duas agências, eles eram bastante comprometidos com as vanguardas progressistas dos anos 60 e 70. 5
5 – Sobre as devastações modernas da ideologia do sacrifício pelas vítimas e da ética dos direitos humanos, ler Alain Badiou, “L ? éthique, essai sur la consciência du Mal” , Hatier, Paris, outubro 1993.
6 – Entre eles James Nachtwey que expõe vinte anos de suas fotografias de guerra na Biblioteca Nacional da França até março de 2003. A obra de Nachtwey cujo a motivação explícita é a « compaixão », parece combinar a tradição do documentário e a estética da « vítima ».
7 – Sobre o efeito « caridade » e a pervesidade da promiscuidade entre fotógrafos e ação humanitária, leia, sobre Ruanda “Brancos filmam Negros”, Le Monde Diplomatique, 1994.
8 – Feita por S. Peterson (Gamma/ Liaison).
9 – Foto de Laurent Rebours ( AP) publicada no jornal Libération de 14 de outubro de 1994.
10 – Esta cena, porque depois de várias outras semelhantes ela provocara sua cólera, foi fotografada em agosto de 1994 entre Goma e Katalé por Jean Michel Turpin ( Gamma) e publicada no Le Monde Diplomatique de novembro de 1994 acompanhada do artigo citado.