A democracia do amor
Nos ajustamos à solidão contemporânea e deixamos o universo fluir, à deriva, como se não fizéssemos parte dele. Concordamos que amor é necessário para nos fazer pessoas melhores, no entanto, estamos quase impotentes frente aos desafios de andar sobre essa navalha lírico-passional
Li em algum lugar que o amor é o teatro dos ricos e o circo dos pobres. Em verdade, não sei se eu li, ou se vi em uma dessas séries de TV por assinatura. Certo é que tenho pensado nisso e me intriga o fato do amor da classe média não ter sido inscrito nesse provérbio.
Provavelmente, a classe média não dispõe de tempo nem para o teatro e nem para o circo. Ou não dispõe de energia, a classe média tem se ocupado em pensar o mundo e mover os seus ponteiros, em pleitear direitos, protestar para não perdê-los, defender a natureza, velar diuturnamente a balança da deusa Têmis… e não tem atingido a catarse de chorar ou rir os seus amores.
É possível que a classe média não saiba o que fazer com o amor e o vai postergando para tempos vindouros, para plasmá-lo com a realização de uma longa viagem, como fazem os ricos, e criar seu próprio teatro, idealizado com elementos sofisticados, glamoroso… mas, desiste ao pensar na conta vindoura, parcelada em vários meses, que poderá comprometer a educação dos filhos, o plano de saúde dos pais, a comida na mesa, a academia de ginástica, a prestação do carro, da casa… enfim, tantas coisas a pensar antes de se investir no amor que este fica pequeno, pequenino na escalada dos sonhos.
Sem muitas opções, o amor da classe média sobrevive com um vinho de segunda, comprado em supermercado, e um motel que não tenha baratas. Às vezes, um final de semana num hotel de turismo, em local estratégico, e depois fotos para que amigos em comum celebrem o acasalamento, atribuindo ao ato um pouco mais de magia. É preciso reconhecer que esta é a classe que mais sofre e é também a mais derrotada pelos designíos que motivam ou desmotivam o amor. Ninguém nos oferece uma viagem de presente, os bancos nos marginalizam, os governos nos enganam, não há leis para perdoar nossas dívidas, pagamos juros altíssimos, quando não é o caso de fazer novos empréstimos para quitar os anteriores.
Somos tão vilipendiados em nosso histórico amoroso que, às vezes, optamos por não amar. Nos ajustamos à solidão contemporânea e deixamos o universo fluir, à deriva, como se não fizéssemos parte dele. Concordamos que amor é necessário para nos fazer pessoas melhores, no entanto, estamos quase impotentes frente aos desafios de andar sobre essa navalha lírico-passional.
Já a classe baixa não tem medo, enfrenta o amor com valentia, imediatamente. São acrobatas no assunto. Atiram-se de trapézios altíssimos sem se darem conta do perigo que incorrem. São contorcionistas de um espaço que lhes é negado, mas não refutam os sentimentos. Amam, gozam, fazem filhos por toda a vida e entram no globo da morte, se preciso for, para defender uma paixão. A classe baixa tem pressa. Casa, descasa, volta a se casar como se o mundo terminasse no dia seguinte. Nem a psicologia dá conta de explicar a mágica que é viver o amor em condições tão adversas. A literatura realista venera personagens dessa estratificação social. São cheios de crença, de fé e dispostos a recomeçar sempre, seja onde for e como for. Não se importam em ser nômades, e se inscrevem na existência bruta, se esfregam, se arranham, se entorpecem, se cortam… fazem-se e desfazem-se diante dos nossos olhos como uma mágica circense. O amor da classe baixa desconstrói, sem pudores, os nossos padrões de relacionamentos.
No entanto, para os ricos o amor é o teatro. Idealizado desde Aristóteles, explorado por Homero, ocupa os palcos mais elegantes. É interpretado com graça e brilho sobre lençóis egípcios combinados com tapetes persas. Requer quarto de vestir, prótese de silicone, óvulos congelados e iogurte sem lactose. É o amor com serviço de quarto e massagista para retirar do corpo a tensão. Resguarda um helenismo tardio de perfeição para manter a metáfora heroica de príncipe e princesa.
O amor da classe alta não precisa ser real, tampouco recíproco. Ele se sustenta sem palavras sedutoras, sem jogo de inteligência, sem ética e, nem sempre, segue ideais democráticos, bastam as máscaras definidas pela estratificação da classe milionária e os códigos vigentes que compõem o teatro, muitas vezes, amador, protagonizado por Barbie e Ken.
Talvez a ideia que o provérbio inicial queira difundir é a de que na riqueza ou na pobreza o amor é sempre um espetáculo, porém não profere que é na classe média que ele se expõe ao sol causticante da realidade, que tem os sonhos cortados em nacos para subsistir. Na classe média não temos papéis determinados, temos que assumir muitos deles, fazer experimentos, enfrentar o mais fino dos medos antidemocráticos a escorrer pelos nossos corpos tão carentes e, paradoxalmente, tão cansados.
Lucilene Machado é Doutora em Teoria Literária/ Professora UFMS