A demonização a Síria
Por que a Casa Branca está decidida a desestabilizar o regime de Damasco, com quem aliou-se durante toda a década de 90Eric Rouleau
Mais de quarenta anos após a ascensão do partido Baath ao poder em Damasco, a Síria continua um enigma, não somente para os não-iniciados. Quem, na realidade, governa o país? O presidente da República, o partido, o Parlamento, o exército? Trata-se de um regime pan-árabe e socialista, tal como se apresenta, ou militar e oportunista? Ele é capaz de se reformar democratizando-se? Diversas facções do Baath sucederam-se, não sem derramamento de sangue, na cúpula do poder desde o golpe de Estado de fevereiro de 1963, sem que essas questões perdessem sua atualidade.
Várias hipóteses poderiam explicar a opacidade relativa do sistema. O culto do segredo é uma das características de um partido que se constituiu na clandestinidade, sem nunca abdicar de seu gosto pela conspiração. A natureza autocrática do poder não o incita à transparência, pelo menos, não mais que a utilização da língua de pau [1] pelos seus detentores que desconfiam tanto de seus concidadãos como da opinião estrangeira.
Alvo freqüente particularmente das potências ocidentais, que manipulam habilmente os meios de informação (e de desinformação), Damasco é incapaz de se defender por falta de competência ou de credibilidade.
Origens revolucionárias e pan-árabes
As origens do partido Baath se inscrevem na história do movimento de libertação nacional. Seus fundadores, nos anos de 1940, identificam-se com os dirigentes da rebelião de Jebel Druzo contra o colonizador francês, que durou de 1925 a 1927, que foi descrita e analisada por Michael Provence, professor da Universidade de Chicago, especialista do período colonial e pós-colonial [2]. Uns e outros são oriundos da pequena burguesia rural e pertencem a comunidades minoritáias (druzos, alauítas, ismaelianos, cristãos etc.), tradicionalmente hostis às elites sunitas urbanas e conservadoras — o que explica o fato de elas terem colaborado, primeiramente, com as autoridades otomanas, até o final da Primeira Guerra Mundial e, depois, com as do mandato francês [3].
Ambos são nacionalistas, mas de forma diferente, “unionistas”: os rebeldes dos anos 1920 procuram reconstituir a “Grande Síria”, reunindo seus componentes da época otomana, a saber: a Síria do mandato, o Líbano, a Palestina, a Transjordânia, divididos pelos vencedores da guerra de 1914-1918. Já os fundadores do Baath, mais ambiciosos, militam para unificar a totalidade do mundo árabe em face do imperialismo ocidental. E foi apenas em 1954, mais de dez anos depois de sua fundação, que o Baath acrescentou ao seu nome original (Partido do Renascimento Árabe) o qualificativo “socialista”. Este foi “árabe” ou “científico”, segundo a facção de “direita” ou de “esquerda” que estava no poder, sem que jamais as palavras conseguissem abranger um conteúdo coerente.
O principal fundador e secretário-geral do partido, Michel Aflak, cujas convicções socialistas eram consideradas duvidosas, relatou, durante uma entrevista realizada em 1963, que nunca fora influenciado por nenhum dos pensadores ocidentais. Aliás, ele deixara de ler suas obras desde a Segunda Guerra Mundial. O mesmo homem que defendia enfaticamente “a ação das massas” justificava tanto os golpes de Estado militares que haviam alçado os Baathistas ao poder algumas semanas antes em Damasco e em Bagdá, como o massacre sistemático dos comunistas na capital iraquiana [4]. Para ele, nos dois países, o exército não tinha sido nada mais do que o dócil instrumento das forças populares [5]
De bem com a URSS… e os EUA
O Baath da Síria contava, na época, com cerca de 400 membros, dentre os quais 60 militares que apoiaram o golpe de Estado de 8 de março de 1963. Quarenta anos mais tarde, “o exército ideológico”, “al jaych al akaedi”, continua nas mãos de oficiais oriundos, na sua grande maioria, das comunidades minoritárias, enquanto os alauítas mulçumanos heterodoxos detêm os postos-chaves.
Diversas facções do Baath se sucederam na cúpula do Estado à força de sedições militares e isso ocorreu até novembro de 1970, quando o então ministro da defesa, general Hafez Al-Assad, tomou o poder. Sempre mantendo estreitas relações com a União Soviética, ele dá garantias de boa vontade aos Estados Unidos. Dissolve as milícias populares que seus predecessores tinham constituído para “libertar a Palestina”; adere à resolução 242 do Conselho de Segurança, reconhecendo implicitamente o Estado de Israel. Após a guerra de 1973, que desencadeou em colaboração com o egípcio Anuar Al-Sadat, ele declara que atacara Israel unicamente para incitá-lo a negociar uma “paz justa”. Pouco depois, acolhe favoravelmente a convocação para uma conferência de paz em Genebra e, depois do fracasso da mesma, declara a um jornalista norte-americano: “A principal crítica que faço a respeito da política de Henry Kissinger [então secretário de Estado dos EUA], chamada de política passo a passo, é que se trata de um passo de tartaruga enquanto eu desejo avançar a passo de gigante.”
Nem a anexação formal do Golan sírio pelo Estado judeu, em 1981, nem a campanha de demonização de que Al-Assad é objeto, desencorajaram este último. Em 1990 ele declarou que, doravante, a paz é “o objetivo estratégico” do seu governo. Em outubro de 1991, no dia seguinte da guerra do Kuwait, foi um dos promotores da conferência de Madri organizada pelos Estados Unidos, com todos os beligerantes do conflito árabe-israelense. Logo depois do fracasso dessa conferência, ele encetou e concluiu, com o então primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, um acordo de princípio destinado a converter-se em um tratado de paz. Em troca de uma total normalização entre os dois países, Rabin (pouco antes do seu assassinato), empenhou-se em restituir integralmente à Síria as Colinas de Golan, conquistadas em 1967 por Israel. Os sucessores de Rabin rebateram essa iniciativa e Hafez Al-Assad morreu sem ter conseguido realizar seu último juramento: legar a seu filho um país em paz.
Docilidade sem resultado
Indiscutivelmente, Bachar Al-Assad não tem a envergadura de seu pai, a quem Kissinger qualificava como”um temível negociador, discreto, enigmático, astuto até os limites do maquiavelismo”, mas que, não obstante, era “moderado e prudente”. Para o governo norte- americano, escreveu Flynt Leverett em um livro sobre a sucessão [6], o presidente Bachar Al-Assad, oftalmologista de formação, pouco politizado, a quem faltavam experiência e carisma, era, de um certo modo, tranqüilizador. Tal como o chefão Don Corleone, Hafez Al-Assad transmitira-lhe uma estrutura de poder que demonstrara sua eficácia. Um primeiro círculo restrito de caciques, no qual figuravam membros da família do presidente, controlava o exército, o partido Baath, o Parlamento e o governo. Era um poder inconteste após o desmantelamento das facções rivais no seio do Baath e das organizações de oposição, em particular o movimento dos Irmãos Muçulmanos (vítimas de um terrível massacre na cidade de Hama, em 1982). Enfim, um poder que contava com o apoio dos camponeses beneficiários da reforma agrária e de uma burguesia em plena expansão, graças a uma relativa flexibilização da economia, mas também o nepotismo e a corrupção praticados pela nomenklatura Baathista. Em suma, um poder com o qual os Estados Unidos podiam contar, estima Flynt Leverett ? que, aliás, deplora o modo, antes brutal, com o qual seu governo trata o de Damasco, que, na sua opinião, seria perfeitamente recuperável se a diplomacia levasse a melhor sobre a violência.
O autor está perfeitamente apto para julgar a política do presidente George W. Bush. Antes de se demitir do governo, em 2003, ele foi, sucessivamente, analista da CIA, encarregado do tema Síria; posteriormente, esteve a serviço das previsões do Departamento de Estado e, finalmente, diretor de negócios do Oriente Próximo no seio do influente Conselho Nacional de Segurança.
Leverett considera que Bachar Al-Assad merecia mais consideração. Ele lembra que este, fiel ao seu pai, havia declarado, no momento de sua ascensão ao poder, que seu “objetivo estratégico” era concluir as negociações de paz com Israel, antes de oferecer, repetidas vezes, a retomada das negociações “sem condições prévias” com Jerusalém. O governo Sharon recusou-se a dialogar e exigiu, com o assentimento de Washington, que antes de tudo, a Síria, entre outras coisas, desmantelasse o Hezbollah libanês e expulsasse de seu território os representantes das organizações palestinas radicais. Para desencorajar definitivamente Al-Assad filho, Sharon declarava que não restituiria Golan à Síria e que tinha a intenção de lá dobrar o número de colonos judeus no espaço de três anos. Efetivamente, eles já são cerca de 20 mil.
Washington já não busca a paz
Seguramente, estima Leverett, a paz sírio-israelense não mais se encontra no centro das preocupações dos dirigentes norte-americanos. Estes não perdoam a Síria nem sua oposição pela ocupação da antiga Mesopotâmia, nem sua pretensa indulgência em relação aos “terroristas” que se infiltram no Iraque. Declarando publicamente sua boa-fé, Bachar Al-Assad propôs, em vão, que patrulhas mistas sírio-americanas vigiassem os 500 quilômetros de areias que separam os dois países.
Outras acusações sem fundamento se multiplicam: a Síria teria recebido as armas de destruição em massa que Saddam Hussein possuía; ela entregaria armas aos insurretos iraquianos; ela seria detentora de armamentos biológicos e químicos que “ameaçariam a segurança dos Estados Unidos”; ou melhor, ela “teria a intenção” de fabricar armas nucleares. Desmentidos, protestos e apelos a um “diálogo construtivo” lançados por Damasco de nada servem; o processo de demonização está em andamento.
O presidente Al-Assad talvez não tenha levado a sério as primeiras intimações francesas e americanas exigindo a retirada de suas tropas do Líbano. Ele sabia que tanto os ocidentais como Israel tinham aprovado a entrada das forças sírias no país do Cedro, em 1976, durante a guerra civil, como reforço aos grupos cristãos de direita contra as milícias “islâmico-progressistas” e palestinas. Na época, a “comunidade internacional” não tinha nenhuma objeção a fazer aos assassinatos cometidos pelos serviços sírios no Líbano (particularmente o assassinato do líder de esquerda, Kamal Joumblatt). O jovem presidente não compreendera que a situação tinha mudado radicalmente: a França e os Estados Unidos não mais tolerariam o embargo sírio contra o Líbano [7].
O poder Baathista foi certamente enfraquecido. Sua ruptura com o Líbano privou-o de importantes recursos e provocou queda dos investimentos, contrariamente ao que indicam os números oficiais. Além disso, o sistema econômico arcaico, que lembra aquele das democracias populares extintas, garante a perenidade da crise. No entanto, o regime não parece ameaçado, pelo menos num futuro previsível. A frente de oposição prega em seu Manifesto de Damasco (outubro de 2005) a instauração de um regime democrático “de uma maneira pacífica, gradual e consensual”, temendo que, de outra forma, o país naufrague numa anarquia à moda iraquiana. As potências estrangeiras temem, além disso, o crescimento do poder dos Irmãos Muçulmanos, a principal força no seio da oposição. Por outro lado, a aliança da Síria com o Irã, sua presença oculta no Líbano graças às suas ligações com o Hezbollah e certas facções cristãs, sua influência crescente nos territórios palestinos desde a vitória eleitoral do Hamas, lhe fornecem preciosos trunfos.
A questão se resume em saber se o regime é capaz, senão de se democratizar, ao menos de se reformar. Em um livro coletivo, Samir Aita relembra as tergiversações e os fracassos das tímidas tentativas de Bachar Al-Assad para introduzir reformas econômicas ou políticas, até as mais anódinas [
Eric Rouleau é jornalista, ex-embaixador da França na Tunísia e na Turquia.