A demonização forçada dos xiitas
Na onda do ataque ao islamismo, afirma-se que os xiitas iraquianos agem a serviço do Irã e ameçam governos do Oriente Médio. Uma análise menos superficial revela que não formam um bloco único e só acentuaram sua identidade religiosa com a destruição de seu paísPeter Harling, Hamid Yasin
A cada dia, no Iraque, ataques de natureza sectária, opondo sunitas e xiitas, provocam dezenas de mortos e centenas de feridos. Este tipo de violência tornou-se muito mais relevante que as próprias ações contra o exército de ocupação. Na capital, Bagdá, o rio Tigre transformou-se numa linha divisória entre a margem esquerda, majoritariamente xiita (Al-Rusafa) e a direita, de maioria sunita (Al-Karkh). Há grandes enclaves em ambas as margens, principalmente nos bairros de forte conotação religiosa, como os de Kadhimiya (xiita) e Adhamiya (sunita). Mas o processo de polarização, que forma verdadeiras linhas de front, “anuncia combates mais violentos e mais estruturados”, como ressalta um representante do grupo armado sunita Jaysh Ansar al-Sunna [1].
Segundo as interpretações dominantes no Iraque e no exterior, duas “comunidades” estariam em confronto pelo poder: de um lado, uma “comunidade” árabe sunita, supostamente fiel ao antigo regime e que teria perdido o monopólio secular sobre as instituições centrais; do outro, uma “comunidade” árabe xiita, tradicionalmente marginalizada no plano político, para quem a invasão norte-americana teria constituído uma ocasião histórica de se fazer ouvir enquanto maioria demográfica. Esta interpretação tem a vantagem da simplicidade, mas não reflete a multiplicidade dos objetivos que os atores da cena política iraquiana propõem para si próprios. Na verdade, ao atribuir a mesma essência às comunidades que constituem na realidade entidades bem diversas [2], ela anima um processo que seria preciso conter, ao invés de alimentar.
Por trás da tentação de conceber os xiitas como um grupo homogêneo há segundas intenções. O rei Abdallah da Jordânia lançou, em dezembro de 2004, a fórmula do “crescente xiita”. Ela apresenta esta etnia como uma quinta-coluna, instalada no Golfo Pérsico, Iraque, Síria e Líbano, ameaçadora para os interesses sunitas, e comandada por Teerã. O presidente egípcio, Hosni Moubarak, vai mais longe, ao afirmar que os xiitas do mundo árabe se mostraram, historicamente, mais fiéis ao Irã que a seu país de origem. Pesquisadores em voga erigem essa generalização em conceito. É o caso de uma estrela em ascensão, o norte-americano Vali Nasr, que vê na vitória eleitoral dos xiitas iraquianos, nas eleições de 2005, um fator de nova mobilização de todos os xiitas da região em torno de uma identidade comum e de reivindicações que serviriam automaticamente às ambições iranianas. [3]
Uma outra escola denuncia esta tese, a qual ela opõe a do “nacionalismo iraquiano” inquebrantável. Tal qual aquele observador iraniano prudente que nos confia: “A solidariedade intra-xiitas não ultrapassará a linha de divisão fundamental que separa os árabes dos persas. Todo mundo parece ter esquecido que os xiitas iraquianos combateram os xiitas iranianos durante os longos oito anos da guerra Irã-Iraque, o conflito mais sangrento da segunda metade do século 20. As informações que nos chegam do Iraque indicam que os iraquianos, inclusive aqueles que viveram no exílio no Irã, não apreciam a influência iraniana em seu país”.
Do alinhamento com o regime à busca de identidade própria
Este debate é importante. A percepção de um avanço xiita tende a influenciar as políticas adotadas pelos Estados Unidos, pelos regimes árabes e principalmente pelas monarquias do Golfo, que consideram qualquer ambição iraniana como necessariamente hostil. Ela mantém, sobretudo o ódio ao xiita cada vez mais difundido entre os sunitas, conservadores ou não. No Iraque, agora são raros os pregadores sunitas a não qualificar os xiitas de rawafidh (apóstatas), expressão pejorativa há muito tempo característica dos jihadistas do tipo Abu Mussab Al?Zarkaui (chefe da Al Qaeda no Iraque).
Na verdade, a referência ao nacionalismo não basta para explicar o comportamento dos xiitas iraquianos durante o conflito contra o Irã, embora trate-se de um dos elementos a levar em conta. Na época, o processo de construção nacional empenhado na primeira metade do século 20 não tinha ainda abortado. Nos anos 70, o regime iraquiano ainda redistribuía ativamente recursos para o Sul. É por isso que cidades como Diwaniya ou Nassiriya ofereceram grandes contingentes de recrutas para a polícia e para o exército.
Os camponeses não esquecem a vigorosa reforma agrária lançada no dia seguinte do golpe de Estado baathista. Os políticos “progressistas” garantiam ao regime o apoio de numerosos xiitas pobres. Ao mesmo tempo, o caráter totalitário do regime levou à liquidação dos círculos religiosos de Najaf e à erradicação dos projetos políticos concorrentes do baathismo, a saber, o comunismo e o islamismo. Enfim, a coerção para a qual contribuía um exército popular de mais de 500 mil homens também teve um papel chave na mobilização dos xiitas contra o Irã.
Uma reviravolta começa com a guerra de 1991 e as revoltas que a seguiram, abrindo uma fase de diferenciação crescente das identidades coletivas. No Curdistão, há a reivindicação de autonomia, guerra civil e em seguida um certo desenvolvimento econômico. Em outras partes, abandono do modelo de Estado clientelista e provedor em proveito de uma economia predatória e de privilégios, baseada nas relações familiares e uma cega submissão ao regime. Essa reviravolta prejudicou particularmente os meios xiitas, que tinham se aproveitado das possibilidades de ascensão social oferecidas pelo regime. Entre eles, funcionários, soldados e pequenos comerciantes. Mas não poupou os árabes sunitas e os cristãos, embora estes dispusessem, em geral, de melhor acesso aos recursos, através de contatos familiares no Iraque ou no exterior. No sul, à pauperização somou-se também uma política de represálias econômicas em relação às localidades xiitas que tinham se revoltado em 1991: uma cidade como Hilla só dispunha de uma ou duas horas de eletricidade por dia antes de 2003. Isso provoca o deslocamento de oficinas e fábricas para outras regiões e êxodo da força de trabalho.
“Um golpe mortal no ’nacionalismo’ iraquiano”
Entretanto, a noção de uma “comunidade xiita” martirizada só se impôs, verdadeiramente, depois da queda do regime em 2003, descrita como a derrubada da ordem sunita. A natureza sectária da repartição de cargos no processo político concebido pelo governo norte-americano pode ser vista como uma forma de “concorrência entre vítimas”. Cada ator fundamentava no grau de sofrimento que suportou sua pretensão a ter uma parte do poder. Os partidários da Assembléia Suprema pela Revolução Islâmica no Iraque (ASRII), dirigida por Abdul Aziz Al-Hakim, valorizam os inúmeros mártires da família do líder e seu papel chave nas insurreições de 1991. Os militantes fiéis a Moqtada al-Sadr, ao contrário, criticam o primeiro por ter escolhido o exílio, por ter torturado prisioneiros de guerra iraquianos em nome do Irã e por ter abandonado os insurgentes em 1991, ao determinar uma retirada prematura para o Irã. Por sua vez, eles são acusados de ter servido aos interesses do regime e recrutado para suas fileiras numerosos dos seus agentes.
Na verdade, a interpretação da história iraquiana em função de uma dicotomia sunita?xiita significa um golpe mortal no “nacionalismo iraquiano”. Os iraquianos de diferentes origens não têm mais referências em comum. As marcas de sua história coletiva, tais como o fim da monarquia (1958), a tomada do poder pelo partido Baath (1968), a guerra do Golfo (1991) ou a intervenção pelos EUA e Reino Unido (2003), são objeto de disputas amargas refletindo as rupturas sectárias. Os recursos nacionais não são mais distribuídos, mas pilhados e privatizados sem nenhum pudor. As instituições são decepadas e transformadas em feudos partidários. É claro que ainda permanece, nos discursos, uma vaga referência a um Iraque que transcendia as divisões, mas cuja definição está cruelmente ausente. Na prática, os reflexos eleitorais, a violência arbitrária, o nepotismo e uma corrupção sem precedentes revelam a importância das pressões não-nacionais.
Esta situação não transforma, “por falta” ou “por adoção”, o Irã em nação para os xiitas iraquianos. No sul do país, ainda há sentimentos divididos em relação ao vizinho persa. Moqtada Al-Sadr utiliza, por exemplo, as origens iranianas do aitolá Ali Al-Sistani para atacá-lo. Os moradores da cidade de al-Amara gostam de qualificar os habitantes de Kout de “persas” — do ponto de vista deles, um termo pejorativo.
Se as imagens do aitolá Ruhollah Khomeini e de seu sucessor Ali Khamenei estão por toda parte, só raros atores do cenário político xiita avalizam a concepção iraniana de velayat-e faqih (governo do erudito), pilar da Republica Islâmica. As posições do aitolá Sistani em relação aos seus pares iranianos sempre foram ao mesmo tempo diplomáticas ? evitando ultrapassar certas linhas vermelhas ? e muito independentes. Pareceria além disso, que, como fonte de interpretação das escrituras, Sistani seja muito mais considerado no Irã como “guia” do que o próprio aitolá Khamenei.
A ação sutil e cautelosa de Teerã
O Irã, entretanto, mostra suas cartas com grande sutileza no Iraque, estendendo sua influência através de uma multiplicidade de canais. Teerã favoreceu a participação de seus aliados no processo político, para melhor se orientar, esforçando-se para estabelecer laços com o conjunto dos seus atores políticos, inclusive Moqtada al-Sadr, inimigo jurado do seu aliado ASRII. No plano mais local, o Irã protege pequenos grupos a seu soldo (tais como Tha’r Allah, em Bassora) sem se expor. Não apóia maciçamente os ataques contra os invasores, abstendo-se, por exemplo, de fornecer aos insurgentes armamentos antitanque como os oferecidos ao Hezbollah libanês. Em Najaf, a instituição Khamenei multiplica as bolsas de estudo e a oferta gratuita de livros. Devido ao seu profissionalismo, o canal por satélite iraniano al-Alam conquistou grande audiência entre os xiitas iraquianos.
Outro meio de forjar uma imagem que valorize o Irã: as ações humanitárias e os investimentos econômicos. Enfim, ao contrário das monarquias do Golfo, a Republica Islâmica abriu amplamente suas fronteiras aos turistas e peregrinos. Sua tranqüilidade e relativa prosperidade os impressionou, deixando-lhes uma impressão acolhedora que não esperavam encontrar.
Paradoxalmente, a estratégia iraniana baseia-se na compreensão de uma população xiita da qual se admite a diversidade feita de identidades coletivas bem diferentes. Uma profunda diferença social opõe principalmente os xiitas conservadores (os religiosos de Najaf, os comerciantes das cidades santas, as classes médias urbanas, etc) às massas “revolucionárias” que seguem Moqtada Al-Sadr [4].
Além disso, cada cidade do sul tem suas especificidades e seus objetivos particulares. Kout é uma pequena cidade de província sem história, com tendência a contrariar as aspirações federais do sul. Controlada por Sistani e o ASRII, a cidade santa de Najaf continua a despertar a avidez de outros iranianos. Em Bassora, uma luta mortal pelo controle dos recursos, principalmente do contrabando de petróleo, envolve diversos partidos “islamitas” e suas respectivas milícias.
Em resumo, quanto mais nos afastamos da capital, onde os confrontos entre sunitas e xiitas favorecem uma unidade aparente em cada lado, mais o potencial de violência entre xiitas aparece. Enquanto a população do sul está decepcionada com esses partidos, por ter esperado muito deles em matéria de governo local, o parad