A dependência química é de uma minoria
A maior parte das internações por abuso de substâncias que alteram a consciência acontece pelo uso indevido de drogas lícitas. Ao que tudo indica, os usuários de maconha e de álcool, em geral, obedecem a um padrão ocasional, o qual não oferece grande risco à saúde
A dependência de substâncias é a experiência da ausência. Paradoxo do encontro entre o indivíduo e uma substância inerte; o casamento estabelecido entre essas partes se dá como desdobramento da angústia, onde a procura por um nome se torna imperativa. Amálgama quebradiço das partes do eu em busca de uma identidade, o consumo contumaz de drogas no mundo atual talvez seja sua mais eloquente expressão de anomia. Protagonista do teatro da procura, onde o passado se esvaiu em pó, fumaças, líquidos, gases ou pílulas, o dependente tem o futuro como fantasia inverossímil, pois a vivência da falta propõe o presente como única realidade estruturante. Porque delirante, alucinante, fabulatório…
Desde sempre consumidas em todas as culturas, como atestam incontáveis documentos1 que ilustram o caráter religioso, medicinal e recreativo dessa prática, ao que tudo indica, é no século XX que o consumo de substâncias psicoativas se torna definitivamente um assunto de domínio público, onde os mais diferentes grupos, com ímpares formações e intenções, emitem juízos de valor e criam sistemas de pensamento visando a compreensão dos motivos humanos que fomentam seu uso, abuso e eventual manutenção de um estado de dependência.
A procura pelas raízes arquetípicas do consumo de substâncias, seja em forma ritualizada ou desestruturante, encontra importantes ilustrações em documentos históricos. Desde quando é possível registrar a experiência humana, pode-se observar a existência de drogas que modificam a consciência. A psicofarmacologia divide-as – tomando como guia a manutenção da clareza da consciência – em depressoras, estimulantes e perturbadoras.
A substância mais consumida do grupo das depressoras é o álcool, havendo registro de seu consumo na Bíblia, como na passagem em que Noé, após o dilúvio, produz vinho e se embriaga. Os egípcios já conheciam o processo de fermentação das frutas desde 3000 anos a.C., assim como Hipócrates (406 a.C.) já descrevia a loucura induzida pelo seu consumo e os problemas decorrentes do seu uso pelos epilépticos. São também notórios os relatos de seu consumo nas festas dionisíacas, na Grécia Antiga. O ópio era utilizado pelos chineses há pelo menos 3000 anos a.C., extraído da papoula, com funções analgésicas e tranquilizantes.
Entre os estimulantes, a cocaína foi isolada em 1860, mas as civilizações pré-colombianas dos Andes já a conheciam e utilizavam suas folhas há, aproximadamente, 4.500 anos – tendo um valor religioso importante –, sendo posteriormente proibida pelos conquistadores espanhóis, que a consideravam um “talismã do diabo”. A nicotina e a cafeína são provavelmente autóctones das Américas, com finalidades religiosas e recreativas. O uso de “perturbadores” também é antigo. Tomando como exemplo o cânhamo, conhecido pelos hindus como ananda, sabe-se que os egípcios e os mesopotâmicos também o consumiam e, entre os chineses, há relatos desde 4000 a.C.
Porém, a perspectiva dos transtornos relacionados ao abuso e dependência de substâncias ganha lugar definido na nosografia psiquiátrica através das classificações que subsidiaram essa prática no século XX, especialmente em sua segunda metade. Com a esperança suscitada pela síntese dos primeiros antidepressivos na década de 50 e um maior detalhamento no diagnóstico em saúde mental, a problemática da dependência química instala uma constatação e um debate no campo científico de referência.
O consenso é fundamentado por estudos epidemiológicos2 que estimam entre 60 e 70% a prevalência de outro diagnóstico psiquiátrico no momento em que o dependente é avaliado, e de 70 a 90% de algum outro diagnóstico daquele que busca ajuda nessa condição. O debate se constela entre os que consideram a dependência de substâncias uma entidade nosológica autônoma, em oposição aos que a compreendem como um sintoma de outras formas de sofrimento da alma como depressão, ansiedade, fobias, transtornos psicóticos (ex: esquizofrenia), transtornos de personalidade e neurocognitivos etc. Se essa última hipótese se confirma, a substância química funcionaria mais como uma tentativa errática de automedicação para uma patologia não antes percebida ou referida.
Terminologia moralizante
A compreensão sobre a clínica das drogas tem avançado, principalmente quando o discurso médico oficial, subsidiado pela Organização Mundial de Saúde – Classificação Internacional de Doenças (CID) e American Psychiatric Association (APA) –, retirou a terminologia moralizante de “viciado” ou “adicto”, a qual colabora incisivamente com um movimento excludente, e adotou o termo “dependente” como forma de tratamento ao paciente. Se por um lado o indivíduo ganha o status de doente, por outro, oculta em tal condição o que lhe é singular, muitas vezes vitimizando-se numa postura de acomodação que tem como desdobramento as incontáveis recaídas, momentos de intensa frustração para aqueles que o tratam. Até porque a maioria dos programas de tratamento registra que apenas 35% dos pacientes mantêm o estado de abstinência após dois anos de acompanhamento.3
Porém, a grande maioria das internações por abuso ou dependência de substâncias acontece pelo uso indevido de drogas lícitas. As internações em hospitais psiquiátricos devido aos transtornos relacionados ao consumo de álcool são majoritárias, em comparação com as outras substâncias passíveis de abuso. Seja nas intoxicações agudas, seja no consumo crônico, onde o risco se estabelece pelos agravos à própria integridade física (gastrites, pancreatites, esteatose e cirrose hepáticas, cardiopatias, demência alcoólica etc.) ou com a participação de outros (acidentes de trânsito, violência doméstica), o álcool é a droga mais consumida em nosso meio, e gravíssimo problema de saúde pública, onerando de forma exorbitante o orçamento. Também a nicotina é uma droga lícita consumida em larga escala, a despeito dos programas que tentam regulamentá-la, ao alertar para seus riscos como doenças pulmonares, cardiovasculares, cerebrovasculares e cânceres, principalmente nos sistemas respiratório, digestivo e reprodutivo.
Atenção e memória
Contrariamente, as drogas ilícitas desencadeiam debates mais acalorados e que, invariavelmente, dividem a opinião dos que optam quanto às estratégias de redução de danos ou às tentativas de implementar programas que objetivem a total abstinência.
São relatados problemas dos efeitos crônicos do consumo de maconha como tendo relação com alterações cognitivas reversíveis, particularmente relacionadas à atenção e memória, como, por exemplo, déficit de atenção e hiperatividade, transtornos psicóticos (se há fatores predisponentes), depressivos (falta de motivação, prazer), assim como bronquites, diminuição na contagem de espermatozóides e cânceres da orofaringe. Em situações agudas, observa-se a ocorrência de episódios de pânico, fóbicos ou reações psicóticas. Mas, ao que tudo indica, a grande maioria dos usuários de maconha e de álcool, no nosso meio, obedece a um padrão ocasional, o qual não oferece maior risco à saúde. Cabe também lembrar, num esforço comparativo, que a dependência de álcool se explicita com muito maior gravidade que a de maconha, e dados estatísticos indicam que a prevalência da instalação de dependência entre os que consomem ambas as drogas é de 10%.
Os dados descrevem uma situação de maior gravidade quando a cocaína é a droga que prevalece, especialmente em sua forma fumada: o “crack”. Euforizante e desinibidora num primeiro momento, ela funciona como um potente “antidepressivo” quando da primeira dose inalada, injetada ou fumada; porém, seus efeitos indesejáveis crescem (embora uma única dose possa desencadear muitos deles), à medida que o uso indiscriminado ou a cronicidade se instalam: excitação psicomotora, impulsividade, pânico, transtornos psicóticos e de humor, assim como complicações cardiopulmonares (infartos, arritmias) e neurológicas (convulsões, acidentes vasculares cerebrais). Sob a forma de “crack”, sua associação com vivências de natureza paranoide e desdobramentos como violência, constituem um flagelo dos grandes centros urbanos brasileiros.
Outras drogas de comercialização também ilícita como o ácido lisérgico, o ecstasy (metilenodioximetanfetamina), quetamina, GHB (gama-hidroxibutirato) estão, na maioria das vezes, associadas ao ritual da cena dos clubes de música eletrônica em todo o mundo, sendo passíveis de abuso.
A perda do controle no consumo de determinada substância, na tentativa de obter prazer ou evitar situações de desprazer, resulta na instalação do abuso ou dependência, denuncia um indivíduo que vive uma realidade objetiva/ subjetiva insuportável e enuncia que a intoxicação é sua única possibilidade de ser, de existir. Ao movimentar a matéria inerte, movimenta-se de forma errática, num desespero frente à diluição de si como um quase outro. Mas, devemos acrescentar que a imensa maioria dos indivíduos que experimenta uma droga não se tornará dependente, mas usuário ocasional, onde os problemas “dependem” das condições para sua obtenção (ou da sua licitude).
Portanto, estamos diante de uma questão clínica em que a disposição do paciente para se tratar é de fundamental importância para a formação da aliança terapêutica. Obviamente, esse aspecto é igualmente importante na abordagem de outros transtornos mentais, e para que seja possível empatizar com a angústia do paciente que procura tratamento é necessário que se desconstrua o estereótipo do sofrido, da vítima ou do esperto, do que consegue driblar quaisquer riscos inerentes ao consumo de substância tóxicas, na busca do específico, do singular em cada dependente. E nessa “vontade de se tratar”, a busca da singularidade do paciente é prima matéria numa clínica igualmente particular, onde a “cura” pode ser compreendida como uma mudança da relação do indivíduo com o produto, da motivação pessoal para o consumo.
Como a experiência terapêutica tem difícil reprodutibilidade, vem daí a dificuldade em criar modelos ou protocolos eficazes que se apliquem a todos que procuram ajuda. Um grande risco é o de substituição da dependência da droga pela dependência do tratamento ou do terapeuta, fato observado principalmente nas instituições de caráter religioso que utilizam estratégias normatizadoras e repressivas na base de sua abordagem. Desloca-se o foco da dependência. O trabalho é reencaminhar o dependente para próximo de si mesmo, propondo que navegar é preciso e possível, mas viver também é preciso.
Trata-se das idiossincrasias do humano que, entendo, são pertinentes ao manejo da saúde pública e não da justiça. Da ótica da justiça, as consequências muitas vezes inócuas da repressão resultam em fracasso e fomentam a multiplicidade das estratégias de tratamento numa lógica que privilegia algumas substâncias e criminaliza outras, com argumentações mais próximas de contextos ideológicos que médico-psicológicos. É uma lógica que privilegia mais o enclausuramento que as demandas singulares de quem sofre e faz sofrer, porque busca. Busca por um nome na cidade que o abandona.
*Victor Palomo é psiquiatra, analista junguiano, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e International Association for Analytical Psychology (IAAP).