A derrota anunciada dos sindicatos alemães
AA crise do sindicalismo alemão se reflete nos baixos índices de adesão e na dificuldade de mobilização, o que explica a aprovação da Agenda 2010. Mas as raízes dela são mais profundas – se assentam na ruptura com as bases do Estado social-democrataUdo Rehfeldt
No início de 2003,o sindicalismo alemão entrou numa crise sem precedentes, que diminuiu sua influência política. Ela define uma ruptura do consenso fundador do sistema social alemão ao qual aderiam tradicionalmente os sindicatos, o patronato e os grandes partidos políticos, seja o partido social-democrata (SPD) ou o partido democrata-cristão, ligado ao movimento operário católico. Este consenso repousava sobre três pilares. O primeiro é o Estado-Providência, fundado por Otto Von Bismarck no século XIX e depois consolidado pelos governos democrata-cristãos nos anos 50. O segundo, “a autonomia coletiva”, se constitui em um sistema de negociação coletiva no nível dos ramos profissionais, criado no início do século XX, cuja autonomia é plenamente reconhecida pelo Estado depois da Segunda Guerra Mundial. E, por fim, no sistema de “codeterminação”, nos estabelecimentos e empresas, conhecido na França pelo nome de “co-gestão”, concedido ao movimento sindical pelos governos democrata-cristãos no decorrer dos anos 50 e reforçado por um governo social-democrata nos anos 70. Estes direitos se exercem principalmente nos conselhos de empresa e também nos conselhos de controle das grandes empresas.
Atualmente, o primeiro pilar é submetido a fortes ataques, que vêm do patronato, dos partidos democrata-cristãos e liberais e também do SPD, com o anúncio, pelo chanceler Gerhard Schröder, de uma profunda remodelagem do sistema social. No entanto, por duas vezes, Schröder ganhou as eleições graças ao apoio das organizações sindicais. Em 1998, ele honrou suas promessas eleitorais, abolindo as leis que diminuíam o auxílio-doença e a aposentadoria – votadas pelo governo de Helmut Kohl, apesar da intensa oposição dos sindicatos. Schröder, entretanto, voltou atrás depois de um certo tempo, e implementou uma reforma no sistema das aposentadorias, que incorporaram um componente de capitalização. O movimento sindical acabou aceitando, com o argumento de que o princípio de repartição estava preservado e que os fundos de pensão complementares abririam um novo campo para a negociação coletiva.
Recuos e derrotas
A nova política de emprego exige mais sacrifício dos desempregados e impõe perdas salariais importantes
De uma forma implícita esta concordância era, também, a contrapartida de uma reforma da lei sobre os conselhos de empresas, que deveria facilitar a representação dos assalariados, principalmente nas pequenas empresas. Este compromisso, no entanto, não estava claro. No cenário tripartite do “Pacto pelo emprego” de 1988, as organizações sindicais aceitaram outras mudanças, com destaque para a fórmula de uma “política salarial moderada a médio prazo”, subscrita em janeiro de 2000. Esta se traduziu numa baixa real dos salários, sem concretizar a promessa de criação de novos empregos, apesar da IG Metal acabar decretando o “fim da modéstia salarial”, apresentando uma reivindicação de recuperação salarial substancial, só obtida de maneira parcial.
Encarregada pelo governo de elaborar uma reforma da política de emprego, a “comissão Hartz” propôs, em agosto de 2003, medidas para melhorar a eficácia do Escritório Federal do Trabalho, exigindo mais sacrifícios aos desempregados. Os solteiros deveriam aceitar as ofertas de emprego menos bem pagos e mais distantes de seu domicílio. Em caso de recusa não suficientemente motivada, o salário-desemprego seria suspenso. Estas opções foram arrancadas do movimento sindical em troca da promessa, renovada pelo chanceler na campanha eleitoral, que não se diminuiria nem a duração nem o nível do salário-desemprego.
Depois de ter conseguido o apoio sindical nas eleições de outubro de 2002,o chanceler apresentou ao Parlamento, no dia 14 de março de 2003, um amplo projeto de reforma do Estado-providência, chamado Agenda 2010 (ver Box). Este projeto está em contradição com suas promessas e prevê uma diminuição das prestações dos seguros-desemprego, doença e velhice, além da flexibilização dos direitos trabalhistas, principalmente para facilitar as dispensas nas pequenas empresas e para derrogar as convenções coletivas por ramo. Atende, desta forma, às reivindicações patronais recorrentes, diminuindo as taxas de cotizações sociais e ampliando a desregulamentação dos direitos trabalhistas1 .
Reviravolta política e ideológica
A imprensa aponta o poder dos sindicatos como impeditivo para as reformas que permitam a recuperação econômica e a criação de empregos
Esta reviravolta política é o resultado de uma mudança profunda no ambiente ideológico na Alemanha. Após a vitória da coalizão vermelho-verde de Schröder o neoliberalismo voltou a ganhar, rapidamente, sua hegemonia cultural na imprensa e na televisão. Em uma campanha de difamação sem precedente nos últimos anos, a imprensa, incluindo aquela habitualmente considerada de centro-esquerda, denunciou cotidianamente o poder político excessivo do “lobby sindical” – fator apontado como impeditivo para as reformas do Estado-providência consideradas necessárias para que se recupere a competitividade da economia alemã e condição prévia para a volta ao crescimento e à criação de emprego.
Mais do que nunca os sindicatos se encontravam quase totalmente isolados no debate público para se contrapor às teses da cartilha neoliberal, que sustentavam que o mau desempenho da economia alemã seria conseqüência de um custo muito alto do trabalho e de uma legislação do trabalho muito rígida (leia o artigo de Heiner Ganssmann, nesta edição). As teses não são novas, mas acabaram sendo incorporadas aos discursos dos dirigentes do SPD e dos Verdes e estabeleceram um novo patamar de justiça social: é considerado justo o que cria emprego. A criação de empregos necessitaria da moderação salarial e a diminuição de encargos sociais, daí os cortes no Estado-providência.
Estes ataques feriram um sindicalismo já mergulhado em uma crise estrutural profunda, e cuja base vinha diminuindo há cerca de dez anos. Partindo de uma cifra de 12 milhões de filiados em 1991, em razão da reunificação política e sindical, os sindicatos filiados à confederação sindical DGB não representavam mais que 7,7 milhões de filiados em fins de 2002 – e isso apesar da absorção do sindicato dos empregados DAG no ano anterior. Mantendo-se por muito tempo acima de 30%, a taxa de sindicalização da DGB hoje caiu para 20%.
As raízes da crise
A crise sindical é determinada por certa perda de rumo dos assalariados, com a ausência de novas filiações, principalmente entre os jovens
É verdade que estas perdas são o resultado, principalmente, das crises e das mudanças econômicas, como a queda do emprego na Alemanha do Leste e o crescimento do setor terciário. Mas elas revelam, também, uma certa perda de rumo dos assalariados, que se traduz por uma ausência de novas filiações, principalmente entre os jovens, e por uma perda de audiência. Quando das eleições dos comitês de empresa de 1988, dois terços dos eleitos eram membros de um sindicato da DGB. Na votação de 2002, eram somente 585. Mais dramático ainda: esta base sindical reduzida não parece mais compartilhar as convicções de seus líderes. Segundo uma pesquisa encomendada pela DGB, 48% dos filiados estimam que os cortes nos orçamentos sociais preconizados pelo governo Schröder são justos; somente 37% consideram estes cortes excessivos.
Esta divisão interna explica o pouco sucesso da mobilização contra a Agenda 2010 iniciada pela IG Metal e o sindicato dos serviços Verdi, que representam mais de dois terços dos filiados da DGB. Na jornada de ação nacional de 24 de maio de 2003, somente 90 mil trabalhadores participaram das doze manifestações públicas. É um número modesto, comparado às manifestações de 1º de novembro de 2003, organizadas sobre o mesmo tema pelo Attac, o Partido do Socialismo Democrático(PDS, ex-comunista), organizações sociais e alguns sindicatos, que reuniram 100 mil pessoas, somente em Berlim. Ainda é muito cedo para saber se isto representa uma erupção efêmera ou se marca o início de uma política comum da mobilização dos sindicatos e organizações sociais, atualmente divididas2 .
Alguns dias antes da manifestação do dia 24 de maio, os dirigentes do sindicato químico IGBCE e de dois outros pequenos sindicatos fazem uma declaração comum reconhecendo a “necessidade de reformas” de Schröder e afirmando sua disponibilidade para dela participar. Este ponto de vista, minoritário no movimento, é, certamente, compartilhado por muitos sindicalizados, daí sua débil participação na manifestação. Como conseqüência desses desacertos internos sobre a estratégia a ser aplicada, as direções sindicais decidiram “suspender” a mobilização dos filiados e de dar prioridade à negociação com o governo, na esperança de poder modificar certos detalhes do projeto.
Negociação frustrada
Apesar da influência numérica no partido de Schröder, os sindicatos não o convenceram a rejeitar a Agenda 2010
Até o congresso extraordinário do SPD em junho de 2003, que acabou adotando a Agenda 2010 de forma quase unânime (90% dos votos), os sindicatos apostaram na sua influência indireta sobre o partido. Segundo cálculos efetuados pela imprensa e pelos sindicatos, três quartos dos deputados social-democratas são membros da DGB. Mesmo sem atingir este percentual, o grau de sindicalização dos membros do partido é, igualmente, considerável. Apesar desta influência numérica, os sindicatos não lograram forçar o partido a rejeitar o plano do governo Schröder. O máximo que conseguiram foram algumas melhoras parciais, que o governo negociou depois na troca de favores com a oposição democrata-cristã para conseguir um voto favorável no Bundesrat (segunda Câmara) para a adoção definitiva do conjunto do projeto da Agenda 2010 .
Como explicar este fracasso? Como tinham feito os sindicatos com as recomendações da Comissão Hartz, a ala esquerda do partido parece, como um reflexo de sobrevivência, ter escolhido o que ela pensa ser o mal menor: antes aceitar o projeto Schröder, melhorando em detalhes, do que favorecer a vitória dos democratas-cristãos e seu projeto de desregulamentação social – julgado mais radical e abertamente anti-sindical. 3
Os sindicatos, em parte, são responsáveis pela deterioração de sua imagem, pois sempre negligenciaram justificar teoricamente os acordos que fechavam nas negociações, quer seja em nível nacional, setorial ou por empresa. Contentando-se em mascarar estas práticas por uma retórica maximalista, os dirigentes sindicais sentem crescentes dificuldades em se comunicar com a massa dos assalariados e até mesmo com seus próprios filiados, majoritariamente mais moderados. O movimento sindical não tem um projeto alternativo confiável, uma nova síntese que seja capaz de superar as divergências internas. Os raros intelectuais que permaneceram próximos dos sindicatos não têm, também, receitas novas para lhes propor. 4 Alguns lhes recomendam abandonar a ação política e se concentrar no trabalho tradicional da negociação coletiva.
Política sem resultados
Os sindicatos são vulneráveis diante do corporativismo de empresa e da ameaça do desemprego
Desta forma, os sindicatos sentem atualmente dificuldade crescente para manter seu papel. Em junho de 2003, a IG Metal foi, pela primeira vez em cinqüenta anos, obrigada a suspender uma greve sem resultado positivo. É verdade que se tratava de uma situação particular: um movimento pela introdução das 35 horas na Alemanha do Leste. Mas isto, também, revelou uma fissura no seio dos filiados entre Leste e Oeste. São os conselhos de empresa das grandes empresas do Oeste que recusaram a solidariedade com seus colegas do Leste, com temor de colocar suas empresas em dificuldade e seus empregos em perigo. Isto coloca em evidência a vulnerabilidade dos sindicatos diante do corporativismo de empresa e da ameaça do desemprego.
Reivindicando uma maior descentralização da negociação coletiva, os empregadores esperam explorar ainda mais essa situação. Insatisfeitos com as cláusulas de abertura já introduzidas em um grande número de convenções coletivas por ramo, pediram uma lei tornando-as obrigatórias. Isso teria como resultado um questionamento do segundo pilar do sistema social alemão, a negociação por ramo, e um enfraquecimento suplementar dos sindicatos. O próprio Schröder abre a caixa de Pandora, incluindo na sua Agenda 2010 a ameaça de uma intervenção legislativa se os atores sociais não chegarem a um acordo sobre esta questão. A oposição democrata-cristã aproveitou a oportunidade, apresentando um projeto de lei ao Bundesrat para abolir parcialmente o “princípio do favor”, que dá prioridade à convenção por ramo e proíbe acordos derrogatórios negociados pelos conselhos de empresa.
Os democratas-cristãos esperavam conseguir o apoio dos sociais-democratas para este projeto de lei em troca de seu consentimento para a adoção final da Agenda 2010. No compromisso final de 15 de dezembro de 2003, os sociais-democratas fizeram um grande número de concessões, aceitando, principalmente, liberar a aplicação da lei sobre demissões, mas recusaram toda proposta que atingisse a prioridade da convenção de ramo. É, desta forma, o único ganho que os sindicatos alcançaram: um débil resultado que não consegue esconder a avaliação de uma importante derrota.
(Trad.: Celeste Marcondes)
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1 – Para uma análise detalhada da Agenda 2010 e de sua aplicação , ler Udo Rehfeldt, “Allemagne: porsuite de la reforme de L’Etat-providence”, em Chroniques internationale de IRES, nº 85, novembro de 2003, Noisy-le-grand.
2 – É difícil explicar as razões deste sucesso relativo. Aparentemente muitos aposentados espontaneamente se juntaram à manifestação para expressar sua cólera contra os projetos do governo. Para uma análise das divergências entre organizações sindicais e sociais, ler o artigo de Anne Allex “Wem gehört die Demo?”, na revista da esquerda sindical Express nº 11, de dezembro de 2003.
3 – Os