A desestabilização asiática
Duzentos e oitenta e cinco atos de pirataria — dos quais, dois terços em águas marítimas asiáticas — foram oficialmente registrados no mundo em 1999. Essas impressionantes estatísticas, divulgadas pelo Departamento Marítimo Internacional revelam apenas a ponta emergente do icebergSalomon Kane
, Laurent Passicousset
Em 5 de janeiro de 2000, a companhia indonésia de transporte marítimo Pelni suspendeu os serviços para o porto de Ternate, capital da província das Molucas do Norte. Desde então, os passageiros que desejassem se dirigir a essa região, a Leste da Indonésia, deveriam utilizar navios militares. A suspensão ocorreu no dia seguinte ao ataque a um navio por refugiados que escapavam dos combates entre muçulmanos e cristãos.
Duzentos e oitenta e cinco atos de pirataria, de natureza criminal ou “política” — dos quais dois terços em águas marítimas asiáticas —, foram oficialmente registrados no mundo em 1999 (contra 192 um ano antes e 90 em 1994). As impressionantes estatísticas divulgadas pelo Departamento Marítimo Internacional (International Maritime Bureau – IMB) revelam apenas a ponta emergente do iceberg. Por exemplo, em 1998, a Marinha da República das Filipinas identificou 139 atos de pirataria e desvio de navios em suas águas territoriais; o IMB, entretanto, somente registrou seis casos. A mesma distorção se verifica no caso do Japão, onde vinte navios foram vítimas de abordagens em 1998 e, em seu relatório anual, o IMB só revela um caso. [1]
O “empecilho” das bases militares
“Declarar um ataque às autoridades marítimas exige um longo processo administrativo, o que, sem dúvida, explica por que muitos atos de pirataria — sobretudo aqueles com pequeno prejuízo material — não são relatados”, constata o sr. Noël Choong, diretor do posto avançado regional do Centro Anti-pirataria, em Kuala Lumpur. A Special Ops Maritime Security Agency vai mais longe: segundo essa agência norte-americana especializada em investigação marítima, apenas a metade dos atos de pirataria são oficialmente notificados.
O ataque aos navios não é um fenômeno recente na região, cuja geografia favorece a atividade dos piratas. A Indonésia e as Filipinas, respectivamente com 17.500 e 7.000 ilhas, estão entre os arquipélagos melhor dotados de esconderijos, a partir dos quais os criminosos organizam suas expedições. Nos anos 80, nesses lugares, multiplicaram-se os ataques a pequenas embarcações lotadas de refugiados dos países da Indochina — que vagavam em barcos em busca de asilo — em sua maioria vietnamitas. Essas embarcações, presas fáceis, eram violentamente interceptadas por piratas indonésios, malaios, filipinos ou tailandeses. Esse fenômeno, extremamente brutal, extinguiu-se, praticamente no início dos anos 90. Depois do fim da Guerra Fria cresceu novamente. A redução ou retração das forças marítimas das superpotências deixou o campo livre aos criminosos do mar, sem o “empecilho” das bases norte-americana de Subic Bay (Filipinas) e soviética de Cam Ranh (Vietnã).
Petroleiros, cargueiros e containers
A nova pirataria pós-Guerra Fria não se assemelha ao “grande banditismo” da década de 80. Se a maioria dos casos registrados eram de ataques a barcos de recreação, pesqueiros e barcos salva-vidas de refugiados, nos últimos dez anos a presa preferida pelos criminosos foi a marinha mercante. Pescadores vietnamitas, filipinos ou indonésios são sempre vítimas da pequena pirataria (que não consta das estatísticas do IMB), ainda que os agressores visem, antes de tudo, os navios comerciais de grande tonelagem, retomando a tradição dos famosos piratas javaneses do primeiro milênio (do século II ao século VIII), que aterrorizavam o litoral do reino Khmer (hoje Camboja) agindo no mar da
China Meridional.
Em seu relatório de 1997, a Wordwide Maritime Piracy nota, efetivamente, que “oito em cada dez ataques visam os petroleiros, os cargueiros e os navios containers”. Da mesma forma, para o sr. Lua Cheng Eng, presidente da Singapore Shipping Association, “a pirataria é, hoje, indubitavelmente, a maior ameaça ao transporte marítimo”. As perdas diretas anuais, em termos de navios e cargas, são estimadas em 180 milhões de dólares pelo Departamento Marítimo Internacional.
Indonésia, campeã absoluta
A Indonésia, com 113 casos registrados em suas águas territoriais no ano de 1999, detém o recorde mundial dessa forma de criminalidade. A proximidade de Cingapura — principal porto mundial em tonelagem, (descarga de 15,1 milhões de toneladas de fretes em 1998) e pólo centralizador de 90% do escoamento regional de mercadorias com destino a portos secundários do Sudeste asiático — explica parcialmente essa atividade intensa. Mas esse país deve o seu primeiro lugar no ranking ao Estreito de Malaca.
Via comercial estratégica entre o Ocidente e o Oriente, esse corredor de 800 quilômetros liga o Oceano Índico ao Oceano Pacífico através do mar de Andamã e do mar da China Meridional. Utilizado todos os dias por mais de 600 navios mercantes, o estreito separa a Península malásia da ilha de Sumatra. Passagem difícil, cuja largura varia entre 17,5 e 320 quilômetros, tornou-se, com a emergência das economias asiáticas, o corredor marítimo mais movimentado do planeta, destronando até o Estreito de Dover, na Europa. “A presença de recifes já torna a navegação perigosa, e os navios, obrigados a avançar a baixa velocidade, tornam-se dessa maneira uma presa ideal para os piratas que utilizam embarcações pequenas, porém rápidas”, explica, em Cingapura, um capitão da Marinha mercante. Diretor-geral do Transporte Marítimo Indonésio, o sr. Agus Ridhyanto declara que “não menos de 1.455 atos de pirataria foram registrados no Estreito entre 1984 e 1999, provocando a morte de 51 marinheiros”.
Reivindicações separatistas
A instabilidade política da Indonésia reforça a precariedade do lugar. Alguns grupos de piratas — que operam a partir Sumatra e estão ligados às tríades de Kowloon (Hong Kong) — abordam navios mercantes e os desviam para as zonas portuárias do Sul da China.
“Independentes”, seus concorrentes estão instalados especialmente em Aceh, província, situada na ponta do extremo Oeste da ilha de Sumatra, palco de uma violenta rebelião independentista dirigida contra o poder central indonésio pelo movimento fundamentalista muçulmano Aceh Merdeka (Aceh livre). O Aceh Merdeka está entre os principais destinatários do tráfico de armas originário do Camboja e impõe, na terra e no mar, uma insegurança crescente num arquipélago onde as reivindicações separatistas se multiplicam.
A espiral do crime, conjugada às perturbações políticas que ameaçam igualmente a vizinha Malásia, não cessa de se ampliar por toda a Indonésia, exacerbada pelos efeitos da crise econômica regional. Nesses últimos meses um bom número de zonas portuárias foram objeto de atividades criminais cada vez mais numerosas. Face à multiplicação de ataques de caminhões de transporte ou roubos de cargas nos porões dos navios, a polícia de Java e Sumatra decidiu, no ano passado, empregar a força: os criminosos são simplesmente abatidos.
Uma lista de “países de risco”
O crescimento de riscos acarreta o aumento das apólices de seguros e, portanto, os custos do transporte. No final da cadeia está o consumidor asiático que paga a conta do encarecimento das mercadorias importadas. Por isso, em maio de 1998, quando a Indonésia caiu por dois meses num marasmo que iria custar ao general-presidente Suharto o poder, o Institute of London Underwriters e seguradora londrina Lloyd decidiram colocar esse país na lista dos “países de risco” Os prêmios de seguro dos navios que cruzavam águas territoriais indonésias sofreram uma alta de 10% a 20%, aumento que contribuiu para a alta de preço de certos produtos de consumo, na Indonésia e em toda a região.
Em 1997, as companhias marítimas asiáticas — que possuíam 40 % da frota mercante mundial — gastaram entre 1,6 e 2,3 bilhões de euros (aproximadamente entre 1,5 e 2,1 bilhões de dólares) em apólices de seguros, segundo a Federação das Associações de Armadores Asiáticos. A maioria desses fundos foram transferidos para a Europa ou para os Estados Unidos, que abrigam as sedes dos gigantes do seguro marítimo. Segundo uma companhia pesquisada em Cingapura, um conflito aberto entre os separatistas do Aceh Merdeka e o exército indonésio poderia provocar uma alta nos custos do seguros em torno de 50%.
Bandeiras de conveniência
A corrupção representa um obstáculo real no próprio interior da polícia ou dos organismos portuários encarregados de lutar contra a pirataria. Se um pequeno cargueiro abordado não tem qualquer dificuldade em encontrar, sem ajuda externa, um discreto ponto de ancoragem para desembarcar sua carga, o mesmo não ocorre com os navios de grande tonelagem. O esvaziamento dos tanques e o descarregamento dos containers só são possíveis utilizando as infraestruturas instaladas nas grandes zonas portuárias.
A propina paga aos funcionários encarregados da vigilância e administração dos portos permanece, dessa forma, o meio mais prático para os piratas em conluio com os grupos mafiosos instalados nas Filipinas, na Indonésia, em Hong Kong ou na província costeira chinesa de Guangdong. [2] A revenda dos navios roubados representa, paradoxalmente, a fase mais fácil da operação. Graças às bandeiras de conveniência, [3] que temporariamente registram qualquer navio sem muitas exigências, os piratas não têm qualquer dificuldade em encontrar um comprador ou em reutilizar, sob outro nome, o navio que lhes caiu nas mãos.
Um navio “fantasma” e um “usurpador”
O caso mais evidente de cumplicidade entre autoridades e “criminosos do mar” é o da China Popular. O caso do MV Tenyu, cargueiro da companhia japonesa Tonan Shipping portando bandeira panamenha, lançou uma luz implacável sobre a “administração ” da pirataria pelas autoridades chinesas. Na noite de 27 de setembro de 1998, algumas horas depois de ter deixado a ilha de Sumatra com destino à Coréia do Sul, o MV Tenyu desapareceu — a carcaça e os bens — no Estreito de Malaca, tendo em seus porões milhares de lingotes de alumínio que valiam perto de dois milhões de euros (aproximadamente 1,8 milhão de dólares). Depois de três meses de buscas por toda a região asiática do Pacífico, o “navio fantasma” foi localizado no porto chinês de Zhang Jiagang (ex-Porto Bayard): o MV Tenyu estava irreconhecível; repintado de popa à proa, agora com o nome fictício de Sanei 1, tomado de empréstimo a um outro navio japonês. Transportando 3 mil toneladas de óleo de palma, o navio “usurpador”, com documentos legais expedidos por Honduras, foi apreendido no final de 1998 pela polícia portuária da província chinesa de Guangzhu. A bordo, dezesseis marinheiros indonésios substituíam os 15 membros da tripulação original do MV Tenyu, hoje tidos como mortos.
Tendo violado a Convenção de Roma de 1988, da qual é signatária (a convenção diz respeito à “supressão de atos ilegais contra a segurança da navegação marítima” e permite, por exemplo, a extradição de piratas entre os países signatários; no Extremo Oriente, além da China, só o Japão é signatário), finalmente a China repatriou os marinheiros indonésios em julho de 1999 a seu país de origem, explicando que eles não cometeram nenhuma infração em seu território nacional.
Perda de autoridade
Outros casos puseram em evidência, nesses últimos anos, a responsabilidade de unidades pertencentes às forças navais chinesas nos atos de pirataria. Um dos exemplos mais divulgados pela mídia foi o do Alicia Star, em 1994. Esse navio, com bandeira panamenha, foi interceptado com uma carga de cigarros no Estreito de Luzon, na rota Cingapura-Coréia do Sul, por uma corveta militar. Observadores concordam com a tese de que o navio agressor pertencia ao exército chinês. Militares, fora do controle de Pequim, com a anuência das autoridades portuárias e alfandegárias, teriam capturado o Alicia Star para distribuir, em solo chinês, cigarros contrabandeados. Segundo um dirigente do Instituto Malaio de Assuntos Marítimos, esse caso é “sintoma de um problema maior na China: a perda da autoridade do centro para a periferia”. [4] Um fenômeno que também ocorre — de maneira mais ou menos constante — na Indonésia, no Vietnã, nas Filipinas e na Tailândia.
Além do mais, as dificuldades econômicas dos trinta últimos meses obrigaram os governos asiáticos a reduzir drasticamente os meios concedidos às unidades guarda-costeiras e da Marinha. Assim, na Tailândia, o orçamento anual da Marinha Real, que era alto até 1997, sofreu uma queda depois da desvalorização das moedas asiáticas. De 18,76 bilhões de bahts (em torno de 750 milhões de euros, ou 500 milhões de dólares) em 1995, passou para 21,34 bilhões de bahts em 1997 antes de cair para 15,34 bilhões de bahts em 1999.
Legitimidade jurídica de “policiar”
Para Richard Lim, vice-almirante da Marinha da República de Cingapura, “o único meio de lutar eficazmente contra esse tipo de criminalidade seria interpelar os piratas nos seus ’quartéis-generais’, o que suporia, sempre, uma coordenação séria entre a polícia e o serviços de informações dos países membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean)”. Ora, apesar de algumas ações menores, nos dois últimos anos o princípio de “não-ingerência” nos assuntos internos de outros países permaneceu o fundamento político da Asean, desde sua criação em 1967. À parte alguns casos de cooperação em matéria de segurança marítima ( Indonésia-Cingapura, Malásia-Cingapura, Tailândia-Vietnã), esse princípio bloqueia qualquer iniciativa de maior envergadura.
Atualmente, apenas Jacarta e Cingapura assinaram um acordo bilateral permitindo às forças marítimas dos dois países perseguirem os piratas em suas respectivas águas territoriais. De resto, as interceptações para além dos limites territoriais (19 quilômetros), são ilegais em uma Ásia que permanece sensível a essas ações em razão de conflitos de soberania. Os arquipélagos de Spratleys e das ilhas Paracels são, por exemplo, reivindicados em parte, ou na totalidade, por sete países (Brunei, China, Indonésia, Malásia, Filipinas, Taiwan e Vietnã). [5]
Donde, a inevitável impossibilidade de um entendimento sobre a seguinte questão: quem tem a legitimidade jurídica de “policiar” esses locais, além de tudo, ricos em minas de hidrocarburetos próximas da superfície? No Sudeste asiático, os profissionais do mar e os juristas pedem que os governos da Asean aceitem a Convenção de Roma.