A difícil relação Igreja-Estado
O patriarca sempre se senta ao lado do prefeito nas cerimônias oficiais. O governo presta juramento sobre o evangelho. O Ministério da Educação responde pelos assuntos religiosos. Tantas realidades simbólicas explicam porque é difícil separar o Estado da IgrejaValia Kaimaki
O debate no Parlamento grego, no fim de setembro de 2002, sobre o projeto de lei que se refere à “assistência médica à reprodução humana” suscitou uma forte reação por parte da Igreja ortodoxa: o arcebispo Christodoulos pediu que o projeto fosse pura e simplesmente retirado. Não é a primeira vez que a Igreja se envolve nos assuntos do Estado, mas sua voz parece enfraquecida. E com bons motivos: ela perdeu a queda de braço sobre a menção da religião nas carteiras de identidade.
Tudo começou em 2000. Para aplicar as normas européias, o governo anunciou o desaparecimento da menção da religião na carteira de identidade, considerada, daí em diante, como um dado pessoal e não público. A réplica da Igreja foi imediata: o arcebispo exigiu um plebiscito e, diante da recusa do primeiro-ministro Kostas Simitis, empenhou-se em recolher um abaixo-assinado a fim de impor uma consulta popular.
O culto é onipresente
Quando o governo anunciou o desaparecimento da menção da religião na carteira de identidade, o arcebispo exigiu a realização de um plebiscito
Sem dúvida a Igreja apostava no partido conservador, assim como nos descontentes com o governo do Pasok (socialista). Mas enganou-se: os líderes da Nova Democracia colocaram suas assinaturas nas petições de suas paróquias, mas jamais apoiaram o movimento. E o partido no poder, longe de se dividir diante desse teste, unificou-se – vozes dissonantes se fizeram ouvir, mas permaneceram minoritárias.
No dia 28 de agosto de 2001, o arcebispo divulgou 3.008.901 assinaturas, um número certamente elevado, mas sem termo de comparação com a “revolução” anunciada. Além disso, cometeu um erro político: com as assinaturas na mão, exigiu do presidente da república, Kostis Stefanopoulos, que convocasse o plebiscito ou renunciasse. Com essa atitude, jogou a opinião pública contra a Igreja (52,1% dos gregos se declaram contra o plebiscito, e apenas 26% favoráveis1). O chefe de Estado se contentaria em lembrar ao arcebispo Christodoulos que as assinaturas recolhidas não tinham valor jurídico e o plebiscito pedido não obedecia à Constituição.
Vitória do Estado sobre a Igreja? Pensá-lo seria não entender nada da mentalidade de uma sociedade onde o culto é onipresente. Mesmo os agnósticos, na Grécia, seguem o ofício de Páscoa. Todas as manhãs, pode-se ver, em todas as escolas, a oração coletiva; o catecismo é matéria obrigatória e os alunos passam por provas. O patriarca sempre se senta ao lado do prefeito durante as cerimônias oficiais. O governo presta juramento sobre o evangelho. O Ministério da Educação nacional também é encarregado dos assuntos religiosos. Tantas realidades simbólicas explicam porque o Estado e a Igreja têm tamanha dificuldade em se separar.
Uma Igreja “submissa e mediadora”
Mesmo o Pasok (partido socialista) não gosta de falar de “separação”, preferindo mencionar os “papéis distintos definidos pela Constituição”
Mesmo o Pasok não gosta de falar de “separação”, preferindo mencionar os “papéis distintos definidos pela Constituição”, como explica o atual ministro da Cultura, Evangelos Venizelos, que nos explicou: “A liberdade religiosa é totalmente garantida. Ao contrário de outros países europeus, na Grécia, não há religião ?oficial?: o estatuto da Igreja ortodoxa é o de uma Igreja predominante, no sentido de que ela reúne a maioria dos fiéis. Os problemas que permanecem são resolvidos por tribunais e graças à mudança progressiva da legislatura.”
Em seu último livro2, o professor de direito constitucional Antonis Manitakis retoma a gênese do Estado grego moderno: nascido da revolução de 1821 contra o Império Otomano, ele criou, em seu ato fundador, uma Igreja ortodoxa da Grécia “nacional” e “independente”, que, em 1850, tornou-se oficialmente “autônoma” e mesmo “autocéfala”, em relação à Igreja de Constantinopla, onde fica a sede do patriarcado. Foram as leis do Estado que organizaram a Igreja, que lhe foi subordinada. Todas as Constituições, a partir de então, velaram por isso e a Igreja o aceitou. Mas, ao longo de toda a ocupação otomana, a crença geral era de que a Igreja preservou a língua e a civilização gregas, fornecendo assim uma unidade identitária ao novo Estado.
Essa nova Igreja ficou afastada da política, o que libertou o Estado de seu poder, exercido até então pelo patriarca. Mas o Estado pôde intervir na administração da Igreja, principalmente na nomeação de padres e arcebispos. Em 1975, a nova Constituição limitou, no entanto, esta intervenção, assim como proibiu a Igreja de se intrometer nos assuntos do Estado. “O Estado quis uma Igreja submissa que tem um papel determinante de mediação entre o poder político e os cidadãos. De fato, ao longo de toda a história da Grécia, ela serviu para legitimar as decisões do Estado”, escreve o professor Manitakis. Prova disso, como já foi dito, é o status privilegiado da Igreja nas cerimônias oficiais.
A personalidade exuberante do arcebispo
Nascido da revolução de 1821 contra o Império Otomano, o moderno Estado grego criou uma Igreja ortodoxa da Grécia “nacional” e “independente”
Mas o Estado e os partidos também apostam na Igreja para ampliar seu acesso às camadas populares. Desde a década de 80, o Pasok até tentou reconciliar o progresso e ortodoxia, alertando para o papel – no mínimo, obscuro – da Igreja sob o fascismo, para barrar o avanço da direita, que tradicionalmente extrai sua força do eleitorado cristão. Esse esforço para atrair novos eleitores, até então distantes devido à hostilidade tradicional da esquerda em relação à Igreja, fez-se acompanhar pela definição de um novo nacionalismo.
Como nota Théoclitos, o mitropolitis (bispo) de Ioannina, que muitas vezes manifesta teses diferentes das de seus colegas, “atualmente, tudo está vinculado à existência de uma substância nacional. Eu coloco a nação em segundo plano, logo depois da religião. Creio que a Igreja deve fornecer aos gregos – como aos búlgaros ou aos russos – uma consciência nacional”. Não falta lógica nesta visão. Se a Igreja ortodoxa grega foi fundada sobre o Estado e fez seus os objetivos nacionais, é natural que, progressivamente, ela tenha igualmente se apropriado da idéia nacional. E que, como o Estado vem sendo cada vez menos “nacionalista”, a Igreja, sentindo-se ameaçada, lute para conservar uma identidade nacional.
Em 1998, a eleição de Christodoulos para o posto de arcebispo deu um novo alento à Igreja. Sua personalidade exuberante fez dele uma figura muito destacada. Dinâmico, gosta dos jovens e os convida à Igreja, não hesitando em se dirigir aos “rapazes que usam brinco na orelha”. Como tem sempre alguma coisa pertinente a dizer, a mídia o acompanha e divulga seus discursos. Seu modo de se expressar – “em nome do povo” e “em nome da nação” – subentende que ele fala também em nome da maioria dos gregos. Ele identifica assim, garante o professor Manitakis, “o cristão com o cidadão”, elevando-se a si próprio à estatura de um líder político.
Um espaço maior para a Igreja
Em 1975, a nova Constituição limitou a intervenção do Estado na Igreja, assim como proibiu a Igreja de se intrometer nos assuntos do Estado
A voz da Igreja ficou mais forte após a queda da junta militar em 1974. Na falta de números precisos, “é razoável supor que a utilização sistemática da ideologia ortodoxa pelo poder militar, conjugada com a submissão quase total da Igreja a este último, haja contribuído amplamente para a diminuição (do número de praticantes) ?assíduos? observada após a restauração da democracia3“. As pessoas se afastavam então da Igreja, coagida a manter a cabeça baixa. Este não é mais o caso atualmente.
Bispos, padres e burocratas da administração eclesiástica querem proteger suas conquistas, ameaçadas pela abertura da sociedade. E o arcebispo Christodoulos apazigua o mal-estar difuso suscitado por questões como a globalização ou a imigração. Em outros locais, ele se traduz pelo recrudescimento do neo-fascismo e da xenofobia, que a história – especialmente a resistência ao nazismo durante a II Guerra Mundial – poupou à Grécia. “Além do mais, a Igreja enquanto instituição goza entre nós de um respeito, de um poder e de uma influência muito maiores que as instituições civis, incluindo o Parlamento e os partidos políticos4.”
O arcebispo Christodoulos, que não o esconde, deseja para a Igreja um espaço maior, a fim de poder negociar diretamente com o Estado sobre as questões nacionais. Acredita ser um protagonista político importante, manifestando-se sobre tudo, influenciando a todos e transformando a Igreja em grupo de pressão. Mas essa exigência só pode levar a um impasse, já que a Igreja não tem os meios, como mostrou o caso das carteiras de identidade.
Relações difíceis dentro da Igreja
Se a Igreja ortodoxa grega foi fundada sobre o Estado e fez seus os objetivos nacionais, é natural que tenha igualmente se apropriado da idéia nacional
Por seu lado, o Estado não deseja romper seus laços com a Igreja. É por isso que preferiu aceitar um novo compromisso na última reforma constitucional, votada pelo Parlamento na primavera de 2001. Também foi esse o acordo feito pelo Pasok, com a Nova Democracia. Desde a primeira fase da reforma, um ano antes, ambos os partidos5 haviam decidido excluir as relações Estado-Igreja do debate político. E, de fato, a reforma não tocou em dois artigos: o artigo 3, que estipula que o cristianismo ortodoxo é a religião “dominante” na Grécia; e o artigo 13, que garante a liberdade religiosa – e determina que os direitos humanos e civis não dependem da religião em caso algum. Também não foram mudadas a introdução da Constituição “em nome da Santíssima Trindade” e uma alusão à Bíblia.
Para o jornalista Péricles Vassilopoulos, “há quem espere ver o papel da Igreja se estabilizar se o primeiro-ministro Simitis perder as próximas eleições e o partido da Nova Democracia chegar ao poder. Mas de qualquer maneira, mesmo se ocorresse uma crise terrível, a sociedade grega moderna jamais aprovaria o fortalecimento do poder da Igreja”. É verdade que a Igreja não consegue, apesar dos discursos sobre sua abertura e sua modernização, desfazer-se de sua imagem conservadora, que a identifica com o partido da Nova Democracia.
A queda de popularidade do arcebispo Christodoulos nas pesquisas foi interpretada como o sinal de que os partidos (exceto a direita) o abandonavam6. Para o arcebispo, é ainda mais preocupante que as relações dentro da Igreja estejam longe da placidez. Ele próprio se entende mal com o patriarca, mas também com vários dos metropolitis que compõem o consistório7. Tem, inclusive, más relações com o metropolitis do Pireu, a quem qualifica, no entanto, de “pai espiritual”.
Hesitações pragmáticas
Em 1998, a eleição de Christodoulos para o posto de arcebispo deu novo alento à Igreja. Sua personalidade exuberante fez dele uma figura muito destacada
Segundo Théoclitos, o maior erro da Igreja consiste em se identificar com a direita. “Se ela se comporta assim”, observa, “é porque se sente ameaçada, num país onde a fé recua. Mas, a longo prazo, isso será catastrófico para suas relações com o Estado. É preciso buscar nossas próprias responsabilidades, apagar o fogo destruidor da fé que nós mesmos acendemos, com nossas próprias mãos. Estou otimista, mas temo que a Igreja termine por oferecer apenas soluções materiais para os problemas espirituais, longe de toda forma de poder. É preciso não esquecer que somos voluntariamente cristãos, enquanto somos obrigatoriamente cidadãos”.
Apesar de ocorrer um certo retorno da população às paróquias8, a relação dos fiéis com a Igreja permanece tênue. A ortodoxia já não influencia os costumes dos gregos. Ao contrário: mesmo os praticantes que fazem fila durante várias horas para se prosternar diante de um ícone, dito miraculoso, seguem assiduamente as séries televisivas onde o sexo e a vulgaridade rivalizam.
Assim sendo, por que continuam os socialistas sentindo necessidade de apaziguar a crise, em vez de acabar com ela de uma vez por todas? Em 1981, a declaração de política governamental do Pasok previa uma separação total do Estado e da Igreja. Desde então, o próprio Estado – e os governos formados pelos socialistas – recuaram. O casamento civil, por exemplo, é finalmente uma opção, e não uma obrigação, embora apenas 10% dos casamentos sejam feitos na prefeitura. Do mesmo modo, a gestão do enorme patrimônio eclesiástico permanece entre as mãos da Igreja.
Uma chance desperdiçada
O arcebispo Christodoulos, que não o esconde, deseja para a Igreja um espaço maior, para poder negociar diretamente com o Estado as questões nacionais
A timidez do Pasok se explica por uma “política clientelista”, reconhece o professor de direito Michel Stathopoulos. Ministro da Justiça, na época, e detestado pelos partidários da não-separação, ele declarou que é preciso “parar de inscrever a religião nas carteiras de identidade e introduzir ainda o juramento e o enterro civis9“. Se não era competente em matéria de carteiras de identidade, era ele que, no governo, expressava as teses mais avançadas. Ele participou de quase todas as comissões que examinaram a reforma do casamento e teve papel de destaque na comissão formada na década de 80 para examinar a questão das relações Estado-Igreja. Seus esforços esbarraram numa pressão política exercida em nome do risco de”perder votos”?
Somente daqui a dez anos ocorrerá a revisão – eventual – da Constituição. Foi desperdiçada uma chance. Os socialistas não enfrentaram a crise criada pela Igreja. Teriam podido responder a ela avançando em direção à separação total da Igreja e do Estado. Mas tal salto parece sempre inspirar medo nos responsáveis políticos.
(Trad.: Fábio de Castro)
1 – Pesquisa feita pela Metron Analysis, setembro de 2002.
2 – Les relations de l?Eglise avec l?Etat-nation, ed. Nefeli, Atenas, 2000.
3 – Ler, de Georgiadou Vassiliki e Nikolakopoulos Ilias, “Le peuple de l?Eglise”, in L?Opinion publique en Grèce, études-sondages 2001, ed. Nea Sinora-A. A. Livani, Atenas 2000.
4 – Ler, de Georgiadou Vassiliki e Nikolakopoulos Ilias, “Le peuple de l?Eglise”, in L?Opinion publique en Grèce, études-sondages 2001, ed. Nea Sinora-A. A. Livani, Atenas 2000.
5 – Contra a opinião da coalizão “Esquerda e Progresso”, assim como do Partido Comunista.
6 – Na Grécia, os partidos políticos não seguem orientação religiosa. Só pela prática é possível verificar que quanto maior for a votação da direita, maiores as probabilidades de os eleito
Valia Kaimaki é jornalista em Atenas.