A doutrina militar das redes
Militares norte-americanos avaliam que o resultado das guerras modernas depende cada vez mais da informação e da comunicação, o que facilita a flexibilidade e tende a incentivar organizações em rede, no lugar das hierarquias dos exércitos tradicionaisFrancis Pisani
Segundo John Arquilla e David Ronfeldt, criadores e teóricos da nova doutrina militar que permitiu aos Estados Unidos vencerem de maneira impressionante o regime dos taliban no Afeganistão, Osama bin Laden e a organização Al-Qaida “poderiam ganhar a atual guerra se conseguissem obter armas biológicas ou nucleares”. Impedi-los tornou-se o objetivo prioritário dos Estados Unidos e de seus aliados. Também seria preciso, segundo esses dois teóricos, conduzir a guerra de maneira muito diferente. É preciso planejar uma Netwar, uma guerra de redes…
Todos sabem o papel decisivo desempenhado, no Afeganistão, pelas pequenas unidades das forças especiais norte-americanas ligadas por rádio a bombardeiros capazes, se solicitados, de lançar uma torrente de fogo sobre alvos móveis. São essas unidades móveis que fizeram a diferença. Mas, mais do que com os aparelhos sofisticados de que dispõem, é a uma doutrina militar recente que devem sua vitória. Batizada swarming, ela foi elaborada de maneira precisa por John Arquilla, professor da Escola Naval de Pós-Graduação de Monterey, na Califórnia, e por David Ronfeldt, pesquisador na Rand Corporation em Los Angeles1.
Aviões velhos e aparelhos sofisticados
Literalmente, swarm quer dizer “enxame”, mas no caso a palavra significa principalmente agitação e proliferação temporária. É possível pensar em gafanhotos ou, para retomar a metáfora de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em um “bando de ratos2“. Gafanhotos ou ratos ligados entre si pelos mais sofisticados meios de comunicação. Guerrilha elevada à milésima potência, a swarming “aproveita duas tendências que se desenvolveram durante cerca de um século”, explica John Arquilla: “a capacidade crescente de destruição de pequenos grupos e o aumento da precisão do armamento. Chegamos a talhar o alcance e a precisão. É o que nos permite ?swarmar? nossos adversários”.
A mistura vitoriosa é assim resumida: um punhado de soldados, velhos bombardeiros e instrumentos de comunicação e de teleguiagem ultra-sofisticados
Nada muito dispendioso nisso, admitindo-se que cerca de 60% das bombas lançadas sobre os taliban e as forças da Al-Qaida eram provenientes de B-52, que são “duas vezes mais velhos do que seus pilotos”. A mistura vitoriosa é assim resumida: um punhado de homens, velhos bombardeiros e instrumentos de comunicação e de teleguiagem ultra-sofisticados colocados em funcionamento em função de um conceito preciso. “Se as tecnologias mais modernas não são colocadas em funcionamento no âmbito de uma doutrina militar adequada ao tipo de organização correspondente, conduzem à catástrofe. Foi o que nos aconteceu no Vietnã.”
Redes no lugar da hierarquia
Ex-fuzileiro naval, professor em uma universidade militar, John Arquilla trabalha em ligação com certos dirigentes influentes no Pentágono3. Isso não o impede de se dizer “impressionado com o esforço de certos dirigentes em tirar más lições desse combate”. O que fazem, segundo ele, membros do Estado-Maior quando investem fortunas em equipamentos concebidos para enfrentar adversários de ontem: as divisões do exército soviético que invadiram a Europa, os mísseis transcontinentais com ogivas nucleares…
Na Netwar, “ganha quem tem a melhor informação, não quem tem a maior bomba”. O resultado dos conflitos depende cada vez mais da informação e da comunicação, o que facilita a flexibilidade e tende a “incentivar organizações em rede, no lugar das hierarquias” dos exércitos tradicionais. Arquilla calcula que no conflito atual, “90% de nossos esforços são constituídos de estratégias militares contra Estados (state actors)”. Isso reflete um pensamento militar arcaico, que data da ameaça soviética e “não permite responder às necessidades de uma guerra contra uma rede”. É também uma solução fácil, explica ele: “É um pouco como se, não sabendo o que fazer, se fizesse o que se sabe fazer. Sabemos como nos comportar diante dos Estados-nações, mas não sabemos bem que atitude adotar frente às redes.”
Inspirando-se na experiência
Ex-fuzileiro naval e professor em uma escola militar, Arquilla se diz “impressionado com o esforço de certos dirigentes em tirar más lições do combate”
O que leva ao questionamento se os Estados Unidos não estão enganados com a vitória sobre o Afeganistão, Estado-nação dos taliban, e não sobre a rede Al-Qaida. Seria ainda mais grave para Washington, porque mesmo o fato de ter destruído um dos principais santuários da organização de Osama bin Laden pode se revelar problemático. “Quando descubro uma rede multidirecional operando a partir de um santuário, não a toco”, afirma Arquilla, senão “ela se dispersará para outros lugares e corro o risco de nunca mais a encontrar em qualquer parte do mundo inteiro”. Alguns membros da Al-Qaida conseguiram se refugiar, por exemplo, na África ocidental (Guiné, Mali, Senegal), onde ninguém parece encontrá-los.
Felizmente, vários aliados dos Estados Unidos já combateram redes: os militares de Cingapura contra os piratas dos mares no Sudeste asiático, os britânicos contra o Exército Republicano Irlandês (IRA), os italianos contra a Máfia, os franceses contra os islamitas argelinos e a Espanha contra a organização basca ETA. “Há um grande número de experiências em que os Estados Unidos podem e devem inspirar-se.”
Como paralisar uma rede?
Mas a Al-Qaida é uma organização particularmente complexa, entre uma seita e a ordem militar medieval. Na verdade, é uma “rede de redes”. E é aí que David Ronfeldt, especialista em redes, intervém. “A Al-Qaida aperfeiçoou muito a arte de estabelecer contatos com outros grupos e ajudá-los a estabelecer ligações entre si para realizar algumas operações pontuais”, avalia ele. Ela fornece a todos “orientações técnicas e doutrinárias, assim como fundos.”
A destruição da Al-Qaida reduziria o terrorismo internacional? A curto prazo é provável que sim, avalia Ronfeldt “e é um objetivo que merece ser perseguido. Mas quando for atingido, muitos desses outros grupos aliados estarão acostumados a trabalhar juntos, e alguma outra coisa será reconstituída. O desmantelamento dos maiores cartéis colombianos da droga não acabou com a exportação da droga proveniente daquele país, o que incentivou a proliferação de outros grupos menores e muito mais difíceis de serem controlados4.”
Na Netwar, “ganha quem tem a melhor informação, não quem tem a maior bomba”, o que reflete um pensamento arcaico, do tempo da ameaça soviética
Resta a questão que apaixona os matemáticos e tira o sono dos dirigentes da luta contra o terrorismo: quantos nódulos (nodes) será preciso destruir para paralisar uma rede? De acordo com a análise militar clássica, explica Arquilla, “basta causar perdas materiais ou humanas de 30% a um inimigo; nesse estágio, ele cessa de funcionar com eficácia e a coesão militar é destruída”. Mas isso é insuficiente para uma rede à qual é preciso infligir perdas “pelo menos duas vezes superiores”, pois “alguns nódulos, alguns segmentos da rede, não sentem, não vêem as perdas submetidas por outros e, por isso, o efeito psicológico da destruição não é o mesmo.”
A tese da chantagem nuclear
Para combater essas redes que alimentam a miséria do mundo, não existem apenas meios militares. David Ronfeldt avalia que é preciso cortar o problema pela raiz e intervir também com uma ajuda econômica importante, “que combata o problema da pobreza e de outras formas de infortúnio”. Segundo ele, no entanto, a onda islamita atual não tem muito a ver com a miséria. Osama bin Laden e seus amigos são motivados por um sentimento de “desastre absoluto” (utter disaster). “E esse desastre não é somente econômico e social. É também político, militar, estratégico. Eles vêem seu universo desprezado por forças externas, como os Estados Unidos, e por alguns setores de sua própria sociedade.” Os Estados Unidos poderiam, sem dúvida, ajudar a resolver os problemas da pobreza, diz Ronfeldt, “mas não sei se podem dissipar esse sentimento de desastre absoluto”.
A dificuldade de destruir essa “rede de redes” é ainda mais preocupante aos olhos de Arquilla porque “se a Al-Qaida adquirir armas nucleares, poderá ganhar a guerra. Uma única explosão acabaria com qualquer sentimento de hiperpotência americana ou de hegemonia mundial, nos Estados Unidos e no resto do mundo”. A chantagem nuclear não pode ser descartada.
O “problema” Iraque
“Quando descubro uma rede multidirecional operando a partir de um santuário, não a toco”, diz Arquilla, “pois corro o risco de nunca mais a encontrar”
O elemento radicalmente novo é que não há dissuasão possível. Os milhares de ogivas atômicas que os russos possuem não impedem ninguém de dormir “porque podemos reagir contra eles”, lembra Arquilla. “Mas não é possível reagir com armas nucleares contra uma rede não-estatal que dispõe de células e de núcleos no mundo inteiro.” As impossíveis represálias tornam impossível a dissuasão. Ora, basta uma única bomba de pequenas dimensões, daquelas que cabem em uma “valise nuclear”. Essas armas não são enviadas por mísseis “que têm sempre o endereço do remetente”, mas podem penetrar no território dos Estados Unidos em um dos milhares de contêineres que chegam diariamente sem serem inspecionados.5
“Impedir que a proliferação de armas de destruição maciça seja útil aos terroristas ou às redes criminosas deve ser um dos primeiros objetivos de guerra”, insiste Arquilla, mas, de maneira diferente de seu governo, sugere simplesmente negociar com Saddam Hussein: “O Iraque deve assegurar ao mundo que não tem armas de destruição maciça, que não procura adquiri-las e que permitirá uma inspeção completa, detalhada e contínua.” Em troca disso, Washington e seus aliados se comprometeriam a não atacá-lo: “Reconheço que é uma opção difícil, mas acho que confundir a presença de Saddam no poder e a questão das armas de destruição maciça é um erro estratégico”. Permitir que Saddam Hussein continue como presidente seria uma concessão muito pequena, uma vez que ele já o é e que, se atacado, “os ocidentais deverão ocupar o Iraque por um tempo indeterminado, mas que será, sem dúvida alguma, de algumas décadas”. Tendo, enfim, algo a ganhar na negociação, Saddam Hussein aceitaria essa proposta “em um piscar de olhos”.
As ONGs na “luta contra o terrorismo”
A Al-Qaida, de Bin Laden, é uma organização particularmente complexa, entre uma seita e uma ordem militar medieval. Na verdade, é uma “rede de redes”
A questão de fundo que se coloca é a da saída do conflito. Os estrategistas têm sempre várias de reserva. Ora, quando apresenta a questão aos mais altos dirigentes dos Estados Unidos, Arquilla ouve como resposta: “O único fim do conflito é a morte de todos os terroristas”.
Esclarecendo que raciocina como estrategista, ou seja, de modo sistêmico, Arquilla admite três saídas possíveis: 1) a vitória total dos Estados Unidos, “altamente problemática após o que se passou no Afeganistão”, uma vez que Bin Laden escapou e a Al-Qaida se reúne em outros lugares; 2) a vitória da Al-Qaida, se seus membros conseguirem se dotar de armas de destruição maciça; e 3) um mundo em que haveria uma dezena de redes como a Al-Qaida, algumas delas ligadas a Estados-nações.
Para sair do impasse, ele propõe dedicar mais esforços para “colocar em ação estratégias não-militares em direção a atores não-estatais”, ou seja, redes associativas. Propõe recorrer às redes da sociedade civil: “As organizações não-governamentais (ONGs) estão em uma posição única que lhes permite respeitar os dois lados e agir como intermediário para facilitar a comunicação.”
“Rede cooperativa” x força militar
Para combater as redes que alimentam a miséria do mundo, não bastam meios militares. Ronfeldt diz que também é preciso uma ajuda econômica importante
Sem dúvida, é a parte menos convincente (mesmo que pareça a mais sedutora) de seu raciocínio. Pelo menos, apóia-se em toda uma teoria formulada por Arquilla e Ronfeldt em um de seus livros6, no qual apresentam o conceito de “noopolítico”, inspirado em Teilhard de Chardin e em sua “noosfera”, ou esfera dos conhecimentos. “Queremos nos distanciar da ciberesfera”, explica Ronfeldt, a dos cabos e dos computadores. Os dois escrevem: “A noopolítica é um comportamento em matéria de política externa e de estratégia adaptado à era da informação, que valoriza a colocação em forma e o ato de compartilhar idéias, valores, normas, leis e moral por meio do ?poder doce?”, que definem como “a capacidade de atingir seus objetivos no domínio internacional mais por meio da atração do que da coerção”.
Mas também é preciso ser coerente, e concluem: “Devemos estar conscientes de que quanto mais recorrermos à força militar de maneira cega, mais difícil será criar uma rede cooperativa para combater os atores não-estatais. Esse é o grande desafio estratégico dessa nova guerra planetária ?contra o terrorismo internacional?.”
(Trad.: Wanda Caldeira Brant)
1 – Ler especialmente seu último livro (com um comentário posterior aos acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001), Networks and Netwar, ed. Rand Corporation, Los Angeles, 2001.
2 – Ler Mille Plateaux, ed. Minuit, Paris, 1980.
3 – Sobre as diferentes tendências no Pentágono, ler “The Fighting Next Time”,