A dupla cegueira para lidar com a pandemia nas favelas
Dupla cegueira impede que se enxergue a face que o vírus assume em territórios favelados. A primeira cegueira diz respeito ao não reconhecimento das especificidades desses territórios, o que se revela na insistência com que as autoridades governamentais defendem o alcance universal das medidas de confinamento; a outra tem a ver com a dificuldade de se enxergar as favelas como territórios dotados da presença de agentes públicos e de capital social
Se o novo coronavírus pudesse falar diria: “eu sou eu e o que cada sociedade faz de mim”. É que por sua rápida e fácil contaminação, ele persegue os circuitos da sociabilidade de cada sociedade, bem como o intercurso entre elas. Nesse sentido, sua natureza é também social, moldando-se às características do perfil de estratificação social de cada país. E como vírus eminentemente urbano, molda-se especialmente à cada configuração de cidade e de metrópole.
Nesse sentido, já está em curso uma customização do vírus à realidade brasileira, menos ao seu clima do que à sua situação social, e mais do que tudo à forma como estão organizadas suas cidades e metrópoles. Atravessada por uma desigualdade que se manifesta de forma gritante na qualidade da habitação, a vida urbana no país se caracteriza por privar de direito à cidade parcela significativa de sua população. Para boa parte dos pobres que conta com um teto, suas habitações estão em áreas sem saneamento, com acesso limitado à água potável, e coleta de lixo incipiente. Costumam estar situadas em espaços muito adensados, com residências, comércios e serviços se entrelaçando em ambientes com aeração e iluminação natural precárias ou ausentes.
O biólogo Atila Iamarino, em entrevista recente, se valeu da comparação entre os efeitos de terremotos de mesma intensidade que atingiram o Chile e o Haiti para melhor caracterizar o quanto pode fazer diferença a resposta que cada país tem dado à pandemia. Como se sabe, no Chile, os efeitos do terremoto foram relativamente modestos, mas no Haiti, arrasadores. A se considerar o padrão de desigualdade brasileiro, e valendo-se da imagem de Iamarino, talvez venhamos a assistir, em uma mesma metrópole, bairros de classe média e alta com números chilenos, e favelas e periferias com números haitianos.
Na cidade do Rio de Janeiro, estima-se que 1,5 milhão de pessoas vivem em favelas; em São Paulo, passa de 2 milhões. A situação se torna especialmente dramática nas grandes favelas, geralmente localizadas em áreas onde a procura por habitação é mais intensa, em função das oportunidades de trabalho em seu entorno. Tais favelas têm sido adensadas por um mercado imobiliário superaquecido e com quase nenhuma regulação pública. Um dos segmentos mais valorizados desse mercado é o da produção de prédios de quitinete, para aluguéis. Sob esse aspecto, talvez nenhuma outra favela no país se equipare à Rocinha, com seus cerca de 130 mil habitantes, população superior a 92% dos municípios do país. Com mais de duas vezes a densidade de Copacabana (um dos bairros mais verticalizados do país), boa parte da sua vida cotidiana se desenrola no ir e vir em becos de no máximo 2 m2, já que nada menos que 70% de suas habitações somente são acessíveis por escadarias e vielas.
Complexidade territorial
Com base nos dados produzidos pelo censo realizado no contexto das obras do PAC, em 2009, é possível obter um quadro geral da complexidade do território da Rocinha. Apesar da distância de dez anos em relação a essa fonte, de lá para cá se alguma coisa mudou foi para pior. Em 2009, cerca de 35% de seus moradores viviam em apartamentos, a maior parte deles quitinete; outras 36% das habitações partilhavam laje ou parede com o vizinho. Muitas das unidades habitacionais na Rocinha são coabitadas por duas ou mais famílias, que compartilham dependências e até quartos de dormir. Em todas as subáreas da favela habitação e atividades comerciais dividem o espaço quase em igual proporção. Essa trama construtiva chega a formar túneis com mais de 20 metros de comprimento. Não espanta que a Rocinha tenha se tornado uma das campeãs mundiais em casos de tuberculose. Quando indagados pelo censo do PAC, seus moradores apontavam como os principais problemas de sua habitação o “pouco espaço”, a “pouca iluminação e ventilação” e o “barulho das ruas”, além de problemas de umidade.
O que vale para a Rocinha, vale para todos os grandes aglomerados habitacionais do país, de Paraisópolis, em São Paulo, ao Sol Nascente, em Ceilândia, entre tantos outros. Mesmo com alguma variação, o que se constata em todos os casos é uma configuração afeita à rápida difusão do novo coronavírus. O problema é que a entrada do vírus nas áreas populares surpreende um país que ainda tem enorme dificuldade para lidar com o trágico efeito de sua desigualdade, preferindo não vê-lo, ou quando muito enxergá-lo sob o véu do estigma e do estereótipo. Por isso, a mutação social do vírus, com sua entrada maciça nas grandes favelas, ainda não foi compreendida em sua real especificidade, daí a insistência no discurso de que o “vírus não conhece fronteiras de classe” etc.
É que uma dupla cegueira impede que se enxergue a face que o vírus assume em territórios favelados. A primeira cegueira diz respeito ao não reconhecimento das especificidades desses territórios, o que se revela na insistência com que as autoridades governamentais defendem o alcance universal das medidas de confinamento, quando tudo leva a crer que nos grandes aglomerados habitacionais ela é, na melhor das hipóteses, somente parcialmente possível, independentemente do grau de consciência de seus moradores. Ainda assim, admitindo-se que uma parte da sua população consiga se manter confinada, em territórios como o da Rocinha, como se pode supor com base nos dados expostos acima, os efeitos dessa medida dificilmente seriam suficientes para impedir a disseminação do vírus.
A segunda cegueira tem a ver com a dificuldade de se enxergar as favelas como territórios dotados da presença de agentes públicos e de capital social. Aliás, a presença dos primeiros tem tudo a ver com a existência do segundo. Pois é sempre como consequência de muita luta política que se consegue que o Estado nelas se faça presente. Nesse sentido, quando o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirma estar organizando um “plano de manejo para as favelas”, e que isso implica negociar com o tráfico e com a milícia, pois nas favelas o Estado estaria ausente e seriam as lideranças ligadas ao mundo do crime que mandariam, escancara a visão estereotipada com que se costuma ler as favelas.
Realidade social
Nesse momento de urgência, importa menos polemizar com o então ministro e mais chamar a atenção para o fato de que sua fala obscurece uma realidade social, cultural e política bem mais complexa do que ela levaria a crer. Não se nega a presença perversa do tráfico e da milícia subjugando a população das favelas e periferias, contudo, bem mais importante, é o reconhecimento de que desses territórios costumam contar com a presença do Estado nas áreas da saúde, educação e assistência social, e com diversos atores da sociedade civil como associações de bairro, ONGs, grupos ligados a instituições religiosas e lideranças comunitárias. Na Rocinha, por exemplo, funcionam três unidades públicas de atenção primária à saúde, uma de pronto atendimento, e mais três unidades de atendimento especializado. Conta-se ainda com agências de assistência social como CRAS e o CREAS, um Conselho Tutelar, seis escolas públicas de ensino básico, e inúmeras organizações sociais e lideranças associativas. E tudo isso funciona rotineiramente, mesmo com a presença de traficantes fortemente armados e violentos. A exemplo da Rocinha, e guardadas as especificidades de cada caso, as favelas costumam ter um tecido social bem mais rico do que visões reducionistas tendem a perceber, e saber tirar partido dessa potencialidade poderá ser decisivo nesse momento.
Diante da mutação social do vírus nas grandes metrópoles brasileiras, superar essa dupla cegueira é absolutamente crucial para que se defina o mais rápido possível um plano de ação para as favelas, em especial para as grandes, com populações superiores a 50 mil moradores. Reconhecer a dificuldade do confinamento não significa deixar de investir na conscientização da população, muito especialmente na necessidade de uso de máscaras e de outras formas de proteção individual. Mas isso não basta. É imperativo que se trabalhe com uma outra abordagem, mais realista, e que admita um cenário de disseminação rápida do vírus. E para isso, uma alternativa seria a organização, ao menos em cada grande favela, de um comitê gestor composto por uma multiplicidade de atores, do Estado e da sociedade. Trabalhando juntos, esses atores teriam maior capacidade de capilarizar esforços de apoio social (inclusive alimentar), e de socorro médico e psicológico. A partir desse centro de referência, e com ampla mobilização social, seria possível, por exemplo, alcançar maior agilidade e precisão na aplicação de ações preventivas de isolamento social de pessoas com sintoma da Covid-19. Igualmente importante seria seu papel na organização de donativos e de recursos oriundos de redes de solidariedade.
O mais importante, contudo, seria o efeito simbólico que esses comitês gestores desempenhariam diante de um provável quadro de colapso dos serviços públicos de saúde, e de um eventual descontrole da população das grandes favelas. Em face da possível difusão de sentimentos de insegurança, pânico ou revolta em face do medo de adoecer, de perder pessoas queridas, da fome iminente ou de outras privações, esses comitês teriam condições de desempenhar um precioso papel na produção de confiança – bem imaterial de primeira grandeza em momentos de profunda desestabilização de expectativas como o que estamos vivendo. Em um cenário mais pessimista, mas de modo algum improvável, um ambiente de confiança constituiria a última retaguarda antes da necessidade de mobilização de forças de segurança para o restabelecimento da ordem. E se chegarmos a isso, aí sim, as presenças da milícia e do tráfico nos territórios populares entrariam na equação, convertendo-se em parte do problema, nunca de sua solução.
Marcelo Baumann Burgos é sociólogo e professor da PUC-Rio. Marat Troina é urbanista do PROURB/UFRJ, Coordenador do PAC-Social da Rocinha