A economia política da austeridade na América Latina na crise de 2020
A ideologia que sustenta que a causa da “restrição fiscal” em nossos países deriva de um descontrole de gastos é uma demagogia para defender a austeridade, a qual possui uma racionalidade que passa longe do equilíbrio fiscal
A crise atual estabeleceu um aparente consenso entre os economistas de que é necessária uma atuação do Estado a fim de minimizar seus impactos. A tolerância com os gastos públicos é, todavia, globalmente heterogênea e possui um caráter muito restrito na América Latina. O FMI, por exemplo, apenas incentiva uma postura mais ativa do Estado na mesma medida em que enfatiza a necessidade de reestabelecer o equilíbrio fiscal na região como uma prioridade futura. A discussão acerca de um “espaço fiscal reduzido”[1] existente nesses países lança um debate sobre a existência e as origens dessa restrição.
O que hoje convencionalmente se compreende como restrição fiscal na região não é, como a teoria econômica dominante tenta convencer, consequência de governos irresponsáveis que gastaram demais no passado. A restrição fiscal imposta por governos e instituições deve ser analisada a luz dos interesses de classe, como consequência das particularidades da inserção capitalista latino-americana, marcada pela subordinação produtiva e financeira.
Nas relações globais de produção a América Latina ocupa uma posição subordinada, marcada por fornecer mão de obra barata e produtos de baixa intensidade tecnológica para os países centrais. Essa estrutura produtiva particular media a inserção dessas países nos mercados financeiros, ao mesmo tempo que é dominada por tais mercados.
O sistema financeiro internacional é composto de uma hierarquia onde o dólar está no topo, cumprindo todas as funções de moeda a nível internacional (Prates, 2005). De forma semelhante, os ativos financeiros denominados em dólar também estão em uma posição hierárquica mais elevada aos ativos denominados em outras moedas. Tais fatores dão um forte poder aos Estados Unidos, possibilitando muita autonomia na execução de suas políticas econômicas. No extremo oposto estão os países periféricos, dentre eles os latino-americanos, onde suas moedas são inválidas internacionalmente. Nestes países as entradas de capital geralmente são de curto-prazo e de caráter especulativo. Como resultado tem-se nestes últimos uma grande volatilidade, vulnerabilidade e subordinação financeira, o que gera uma limitação para as políticas econômicas na região (Bonizzi e outros, 2019).
A dependência produtiva é decisiva para compreender a estrutura fiscal na América Latina. A receita estatal é determinada por tributos que dependem fortemente da produção para exportação de recursos naturais não-renováveis. O gráfico 1 mostra o peso das receitas provenientes dos hidrocarbonetos e dos minerais para a receita total. A queda ocorrida na arrecadação de 18,4% do PIB em 2013 para 18,1% em 2019 está fortemente relacionada com o movimento dos preços internacionais de matérias primas, onde o setor agropecuário também tem movimento determinante, conforme expresso no gráfico 2. A estrutura produtiva regressiva fortalece uma volatilidade pró-cíclica das receitas, uma vez que o movimento dos preços das matérias-primas possui um caráter particularmente instável comparativamente às mercadorias mais intensivas em tecnologia.
Gráfico 1
Fonte: Cepal (2020a)
Gráfico 2
Fonte: Cepal (2020a)
Na última década houve uma elevação no total de gastos do governo central como proporção do PIB, conforme pode ser observado no gráfico 2. Ainda que a elevação dos gastos correntes primários tenha contribuído para esse cenário, a principal causa desta elevação foi o aumento dos gastos com o pagamento de juros, que passou de 1,7% em 2010 para 2,6% em 2019 (Cepal, 2020a). Esse fenômeno é uma manifestação da particularidade da inserção financeira da região, marcada pelas taxas de juros relativamente mais elevadas.
A fragilidade das moedas nacionais se expressa na sua incapacidade de preservar suas funções de moeda no âmbito internacional, implicando que esses países precisam atrair dólares para fechar seus balanços de pagamentos, para importar, frequentemente para se financiar e também para se proteger contra possíveis fugas de capitais. Essa particularidade conjuntamente aos déficits crônicos em transações correntes que são característicos da América Latina restringem a autonomia para a definição da taxa de juros, a qual deve estar em níveis suficientemente elevados para atrair divisas.
Como resultado, o cenário na América Latina no momento previamente anterior a incidência da crise é marcado por um déficit fiscal de -3,1% e de um déficit primário de 0,5% do PIB (Cepal, 2020a).
Gráfico 3
Fonte: Cepal (2020a)
A dívida bruta do governo central também se elevou na América Latina, saindo de 30,1% do PIB em 2010 para 45,2% em 2019 (Cepal, 2020a). Na América Latina a razão dívida/PIB passou a se elevar principalmente a partir do ano de 2014, conforme demonstra o gráfico 3, período que coincide com o abrandamento da expansão monetária dos Estados Unidos. Tal política gerou uma reversão dos fluxos de capitais que se destinavam à região, uma consequente desvalorização das moedas locais e uma tendência ao aumento das taxas de juros nestes países.
A razão dívida/PIB é colocada pela teoria econômica dominante como um indicativo da capacidade de solvência que é resultante de déficits fiscais persistentes – vistos principalmente como consequência do gasto excessivo. Porém, de forma semelhante a evolução do déficit fiscal, a evolução da razão dívida/PIB está intimamente relacionada com a subordinação externa.
A evolução da razão dívida/PIB é afetada pela volatilidade da taxa de juros e de câmbio. Como parte da dívida bruta do governo é pós-fixada ou flutuante[2], uma variação da mesma pode por si só impactar no estoque da dívida bruta e também na relação dívida/PIB. De forma semelhante, uma parte da dívida está atrelada às variações cambiais, sendo sensíveis a desvalorizações.
Outro fator que impacta diretamente na dívida bruta, especificamente sobre a dívida interna, é o acúmulo de divisas. Quando os Bancos Centrais compram dólares para adquirir divisas há uma emissão de moeda doméstica que pode ser indesejável para as autoridades, o que as leva a emitir títulos, se endividando para retirar moeda de circulação. A contraparte doméstica da subordinação ao dólar é a elevação do endividamento interno nos países periféricos devido a demanda precaucional por reservas, o que resulta em uma pressão sobre as contas públicas e numa restrição da política fiscal (Lapavitsas, 2009; Palludeto e Abouchedid, 2015).
De acordo com a Cepal (2020a) 80%[3] dos serviços da dívida a serem pagos nos próximos 5 anos serão em moeda doméstica, o que evidencia a contradição de tomar esse parâmetro como capacidade de solvência. Como o Estado emite a própria moeda em que está endividado, o risco de insolvência é muito baixo. Porém, a hierarquia monetária existente implica que a preferência dos investidores nos momentos de crise não é o de manter a sua riqueza em moeda doméstica, mas sim em dólares. O que está em jogo é a capacidade das moedas nacionais em representarem riqueza abstrata a nível mundial. Nesse cenário o risco de fuga para o dólar combinado com a abertura da conta de capitais é limitante para a política fiscal.
A crise que incidiu sobre essa situação fiscal tornou necessário que os Estados gastem para manter a legitimidade do sistema em manejar a pandemia, o funcionamento dos sistemas financeiros, a salvaguarda da riqueza financeira e a lucratividade das empresas. Ao mesmo tempo o discurso da austeridade não deixou de se fazer presente porque o gasto público é colocado em contraposição a um equilíbrio fiscal que deve ser retomado o mais rápido possível.
Como consequência, as políticas fiscais e de estímulo a liquidez que estão sendo insuficientes para conter os graves impactos da crise. O esforço fiscal planejado representa em média 3,2% do PIB de 2019, distribuindo-se de forma bem heterogênea na região, variando entre 10% no caso de El Salvador para apenas 0,2% no Haiti (Cepal, 2020a). As medidas realizadas e planejadas buscam fortalecer o sistema sanitário e de saúde, implementar linhas de crédito e de subsídios para as empresas, transferências monetárias para trabalhadores e grupos vulneráveis mais atingidos, a entrega direta ou subsídio de bens e serviços essenciais (Cepal, 2020a).
A insuficiência de tais políticas para conter os efeitos da crise se expressa na situação da produção e do emprego na região. De acordo com a Cepal (2020b) haverá uma queda de 9,1% do PIB no ano de 2020, enquanto o desemprego deve aumentar em cerca de 5,4% com relação a 2019, atingindo o patamar de 13,5% na América Latina. O impacto produtivo será desigual e maior nas pequenas empresas, sendo projetada pela Cepal (2020c) uma redução da atividade por categoria de -20% no caso das microempresas, -7,1% nas pequenas empresas e apenas -0,2% nas grandes empresas. A crise tem ainda impactado com maior intensidade os setores industriais de maior dinamismo tecnológico, levando a uma acentuação da subordinação produtiva (Cepal, 2020c).
Em contraposição ao setor produtivo, as políticas monetárias expansionistas do FED permitiram uma retomada dos fluxos de capitais para a periferia, gerando uma rápida melhora dos mercados financeiros. Esse fato conjuntamente às injeções monetárias feitas por parte dos bancos nacionais periféricos permitiram manter a liquidez do sistema financeiro local. A riqueza permanece se valorizando na esfera financeira, às expensas do emprego e da produção.
Frente a sua subordinação monetária, os países latino-americanos recorreram a emissão de bônus em dólares, ao acesso de linhas de swaps com o FED (nos casos do Brasil e do México) e atuaram vendendo suas reservas cambiais. Tais medidas são uma reação à fragilidade proporcionada pela subordinação monetária, mas contraditoriamente também a reforça. A liberalização financeira implica que essas medidas não conseguem fazer frente à fragilidade monetária destes países, e contraditoriamente a reforçam. Em um contexto de abertura da conta de capitais essas medidas significam um fortalecimento da manutenção do poder do dólar e de sua internacionalização frente às demais moedas.
As crises econômicas possuem uma funcionalidade para o sistema capitalista. Elas contribuem para a centralização do capital, para a elevação do desemprego, queda dos salários e redução dos direitos, contribuindo para a elevação da taxa de lucro. Somado a isso tem-se que o setor financeiro e as grandes empresas a ele associadas, com o auxílio das políticas monetárias expansionistas, estão preservando suas rentabilidades. Isso faz com que os impactos na produção e no emprego não sejam um problema para a classe dominante. O problema maior para a classe dominante e que deve ser afastado constantemente é a instauração de um Estado que restrinja a exploração dos trabalhadores ou que ocupe setores que o setor privado possa se expandir – como é o caso da saúde, da educação, das pensões, dentro outros.
A ideologia que sustenta que a causa da “restrição fiscal” em nossos países deriva de um descontrole de gastos é uma demagogia para defender a austeridade, a qual possui uma racionalidade que passa longe do equilíbrio fiscal. Um gasto fiscal restrito agora contribuirá apenas para um crescimento ainda mais lento, uma menor arrecadação e, portanto, uma restrição fiscal futura ainda maior, dando origem a um processo danoso cumulativo. A verdadeira racionalidade que a austeridade esconde consiste em permitir, por um lado, o aumento do domínio do capital sobre o trabalho; e por outro, a manutenção da posição subordinada da América Latina no capitalismo mundial.
O verdadeiro fator que limita a política fiscal é a subordinação produtiva e financeira das economias latino-americanas. Uma política fiscal robusta é necessária tanto para minimizar os efeitos da crise como para enfrentar os problemas estruturais das nossas economias, buscando superar estes entraves através de uma reestruturação produtiva e financeira. A execução desse projeto depende fundamentalmente da luta de classes e do engajamento dos setores mais atingidos pela crise na disputa pelos rumos da política econômica da região.
Cinthia de Souza é mestranda em Teoria Econômica na Unicamp
Bibliografia
Abouchedid, Saulo Cabello, and Alex Wilhans Antonio Palludeto. “A hierarquia de moedas e a relação centro-periferia revisitada.” (2015).
Bonizzi, Bruno, and Jeff Powell. “Subordinate Financialization in Emerging Capitalist Economies.” (2019).
Cepal (2020a) Panorama fiscal de America Latina y el Caribe.
Cepal (2020c) Sectores y empresas frente al COVID-19: emergencia y reactivación.
Cepal (2020b) Informe Especial COVID-19 No 5: Enfrentar los efectos cada vez mayores del COVID-19 para una reactivación con igualdad: nuevas proyecciones.
Lapavitsas, Costas. “Financialisation embroils developing countries.” Papeles de Europa 19 (2009): 108-139.
Prates, Daniela Magalhães. “As assimetrias do sistema monetário e financeiro internacional.” Revista de economia contemporânea (2005).
[1] Cepal (2020a)
[2] De acordo com a Cepal (2020a) 31% dos serviços da dívida nos próximos 5 anos serão sobre taxas de juros flutuantes ou variáveis.
[3] A heterogeneidade entre os países é relevante neste ponto. Por exemplo, retirando o Brasil da análise a porcentagem dos serviços da dívida pagos em moeda doméstica nos próximos 5 anos desce para 65% (Cepal, 2020a).