A epidemia de cólera nos países do Chifre da África
Região tem sido afetada por secas e inundações severas, complicando as condições de vida nesses países. O cenário facilita a expansão da cólera, doença facilmente prevenível, mas que encontra condições favoráveis de transmissão em meio à escassez de água potável e falta de saneamento básico entre populações forçadas a se deslocar
Em Ilíada, poema épico de Homero, que narra a guerra de Tróia, já se encontram referências explícitas à cólera, no sentido de ira: “O filho de Peleu hesitou se mataria o Átrida ou se acalmaria a sua bile e conteria a sua cólera”. Já no livro Um copo de cólera, do escritor Raduan Nassar, um ex-ativista, mesmo após uma noite intensa de amor, tem um ataque de cólera quando percebe que saúvas estragaram a cerca viva que havia feito em seu quintal. Ainda, O amor nos tempos de cólera, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, narra a paixão de um poeta no contexto da epidemia de cólera que assolou a cidade fictícia inspirada em Cartagena de Las Índias no final do século XIX.
A literatura, há séculos, tem construído grandes narrativas no entorno da cólera, utilizando as mais diferentes conceituações do termo para tratar de conflitos éticos que permeiam a humanidade. A palavra cólera, do grego kholás, ácfos, significa intestinos, e do hebraico choli-ra, quer dizer doença terrível. Em português, exprime tanto o sentimento de raiva e fúria quanto designa a doença produzida pelo vibrião colérico. Ambas, de um modo ou outro, simbolizam os tempos atuais de sociedades permeadas por conflitos e epidemias.
Desde o século XIX, a cólera tem se constituído como um importante problema de saúde pública em diversas partes do mundo. A doença originou-se na Ásia, mais propriamente no Rio Ganges, e se espalhou para os diferentes países pelas rotas comerciais. É causada pela bactéria Vibrio cholerae, identificada por Robert Koch em 1883, e trata-se de uma infecção diarreica aguda causada pela ingestão de alimentos ou água contaminada. Tem um curto período de incubação, que pode durar até cinco dias, e é muitas vezes assintomática, embora seja grave em 20% dos casos e afeta tanto crianças quanto adultos. Nos casos graves, a cólera pode provocar rapidamente a morte por desidratação [1].
A cólera atinge, sobretudo, comunidades pobres. As populações vulneráveis são as que vivem em zonas sobrepovoadas, com acesso limitado a serviços de abastecimento de água potável e saneamento, incluindo aglomerados urbanos desordenados. Em todo o mundo, há 663 milhões de pessoas sem acesso a água potável e milhões bebem água de fontes que contêm contaminação fecal. Por outro lado, os deslocamentos populacionais provocados por conflitos, catástrofes naturais e alterações climáticas extremas criam condições favoráveis a surtos de cólera em muitas regiões do planeta [2].
No mundo, são notificados anualmente cerca de 4 milhões de casos de cólera e mais de 140 mil mortes. Desde 2015, têm sido notificadas epidemias de cólera em dezessete países africanos. Nesse continente, só em 2017 foram mais de 150 mil casos e 3 mil mortes, representando uma taxa de letalidade de 2,3%. Mais de 90% desses casos concentraram-se em seis países considerados de alto risco [3].
Nos países que compõem a região do Chifre da África – Etiópia, Quênia, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Uganda, Djibouti e Eritreia – a situação é alarmante, pois eventos climáticos extremos têm agravado ainda mais a situação de saúde nos últimos anos. A região tem sido afetada por secas e inundações severas, complicando as condições de vida nesses países. O cenário facilita a expansão da cólera, doença facilmente prevenível, mas que encontra condições favoráveis de transmissão em meio à escassez de água potável e falta de saneamento básico entre populações forçadas a se deslocar.
Dana Krause, representante de Médicos Sem Fronteiras na Somália, enfatiza que embora a cólera seja uma doença endêmica na região, nos últimos dois anos houve aumento dos casos nas áreas onde a organização humanitária atua. A Somália foi atingida pela maior seca em três décadas, e a reação das pessoas foi migrar para conseguir comida, já que haviam perdido seus meios de subsistência, buscando acesso a serviços básicos para sobreviver e alimentar suas famílias. As mudanças climáticas têm causado movimentos populacionais, e muita gente acabou se espalhando para lugares que antes eram inabitados e não tinham, por exemplo, água potável e latrinas, além de receber muita gente ao mesmo tempo. Essas condições contribuem para a transmissão de doenças e para a expansão rápida da cólera. Só até a metade de 2023, 11.704 casos suspeitos de cólera e 30 mortes foram relatadas em 28 distritos da Somália [4].
Para Krause, a mudança climática está por trás de muitos problemas no país. O fato de os imigrantes precisarem compartilhar um espaço pequeno, sem água potável suficiente, sabão ou comida gera um círculo vicioso. Uma criança nesse contexto, por exemplo, pode ficar desnutrida, e uma vez desnutrida, seu sistema imunológico piora. Dessa forma, ela fica suscetível a qualquer doença infecciosa, inclusive à cólera. Por isso o ciclo vicioso, que é extremamente preocupante, especialmente para crianças e outros grupos vulneráveis, como gestantes e lactantes, que levam mais tempo para se recuperar. Seria fácil prevenir a cólera e outras doenças se as pessoas tivessem acesso a uma quantidade mínima de água limpa por dia e suas necessidades básicas fossem atendidas.
Kelly Khabala, vice-coordenadora médica de Médicos Sem Fronteiras no Quênia, aponta situação semelhante no país em que atua, já que a crise climática tem causado secas prolongadas, especialmente nas regiões áridas e semiáridas. Isso provoca a ocorrência de desnutrição e diminui a disponibilidade de água no Quênia, deixando a população exposta ao cólera e outras doenças. Outro problema é a situação precária de saneamento nos campos de refugiados.
A atuação de Médicos Sem Fronteiras na região do Chifre da África tem sido marcada por desafios, como as necessidades imensas dos locais e a complexidade dos contextos. A situação de insegurança que os pacientes e as equipes de saúde enfrentam em diversos locais dificultam, muitas vezes, o acesso a cuidados médicos, além do sistema de saúde ser permeado por lacunas, que afetam o acesso e a prestação dos serviços. O financiamento às ações de saúde na Somália é insuficiente e, por isso, é necessário redefinir continuamente as prioridades. Além disso, problemas como pobreza, fome, conflitos prolongados, sistemas frágeis de vigilância, notificação e investigação, insuficientes intervenções de base comunitária, má comunicação dos riscos e ineficientes compromissos políticos contribuem para a situação da cólera e outras mazelas.
A cólera não é apenas um artefato literário que retrata a fúria e as pragas de uma humanidade fictícia. Em pleno século de revolução tecnológica e inclusão digital dos países do norte, ela segue sua escalada de devastação e mortes em países pobres, especialmente no continente africano. É o retrato fiel das desigualdades que repartem o mundo entre aqueles que possuem dignidade e os que padecem da seca. Semelhante à Ilíada, muitos não possuem o mínimo para conter a sua cólera.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina
*Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.
[1] Almeida MAP de. A epidemia de cólera de 1853-1856 na imprensa portuguesa. Hist cienc saude-Manguinhos [Internet]. 2011Oct;18(4):1057–71.
[2] OMS. Quadro regional para a implementação da estratégia renovada da OMS para a prevenção e luta contra a cólera, 2018-2030. 2018.
[3] Ibidem.
[4] OMS. Relatório Semanal da Situação do Cólera/AWD – Somália, Semana Epidemiológica 30 (24 a 30 de julho de 2023). 2023.