A escola como uma empresa
A OCDE, o Banco Mundial e a Comissão Européia vêem o ensino como mero instrumento das políticas de emprego num contexto de competitividade e globalização econômica, abrindo espaço para uma “política mundial da educação”.Christian Laval , Louis Weber
No momento em que os estabelecimentos escolares franceses estão novamente em ebulição, é preciso questionar o sentido da política, além da comunicação anestesiante do ministro da educação nacional, Luc Ferry. Pois os atos não enganam: a implantação brutal de uma cadeia industrial nas regiões de “competências” importantes no campo educativo (pessoal, itinerário de formação1, formação profissional, etc.) é o que anuncia uma descentralização mais completa da educação; a instituição das cadeias de “descoberta das profissões de 14 a 22 anos” que põem realmente fim a 25 anos de construção do ginásio único; eliminação de 5.600 postos de inspetores de alunos e de 20 mil empregos de jovens; congelamento da contratação de novos professores. É preciso enfatizar o caráter aberrante de uma política que esvazia os estabelecimentos do pessoal de carreira (adultos) e denunciar o recuo pedagógico que implica eliminar das escolas os empregos de jovens. Mas não se compreende o que move essa reforma sem relacioná-la a tendências mais longas e gerais.
Até então, na França, por razões culturais e políticas profundas, o neoliberalismo em matéria escolar não era admitido com franqueza. O medo da rejeição da opinião pública era forte. Contudo, pode-se perguntar se Ferry não está rompendo com essa relativa contenção, praticando, ainda mais do que seus predecessores, a arte da linguagem dupla. Se ele lamenta desse modo “que ao longo dos últimos anos o modelo mantido para orientar a ação dos quadros da escola” 2 tenha se tornado o da administração da empresa, é para preconizar imediatamente um ” novo equilíbrio entre a função do Estado, seus escalões descentralizados e seus parceiros locais (…) a responsabilização dos atores locais mostrou sua eficácia”. Mais recentemente, no colóquio anual da Conferência dos reitores de universidade, ele apontou que para “fazer frente ao desafio da competitividade” é preciso, conseqüentemente, “organizar nossa oferta de formação”. O que é exatamente retomar não apenas a linguagem, mas os modos de pensamento da globalização da educação.
Uma política educacional mundial
Ainda que cada país guarde aparentemente o domínio de sua própria organização escolar, a política mundial “invisível” é elaborada na OCDE
No seu recente relatório sobre o ano 2002, a Inspeção geral da educação nacional e da pesquisa, que até então privilegiava as apreciações técnicas sobre o funcionamento do sistema educativo, muda o registro. Para ela, “a educação nacional deve tomar consciência que ela é apenas, em muitos campos, um ator entre outros no mundo da formação” e, portanto, deve preparar-se “ao lado de seus próprios diplomas para os diplomas, quando for o caso, concedidos por outros, particularmente nos setores de atividades de real acesso profissional”. O serviço público prestador de serviços para oficinas, obrigatoriamente patronais, impõe seus próprios objetivos de formação, ao definir seus próprios diplomas e constituindo suas próprias bancas: nunca se foi tão longe!
Ainda que cada país guarde aparentemente o domínio de sua própria organização escolar, a política mundial “invisível” é elaborada nas comissões e reuniões da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), nas relações da Comissão Européia e do Banco Mundial3. Com algumas variantes formula-se uma mesma linha estratégica e uma mesma vulgata que se aplicam, aos poucos, na maioria dos países, como os mesmos argumentos, os mesmos esquemas de pensamento, as mesmas “evidências” e o tudo isso com a participação ativa dos governos nacionais.
Lógica de produção
O “saber” como combustível do capitalismo. Para a OCDE e o Banco Mundial, esta é a justificação social e individual do investimento educativo
A escola desejada por esta “reforma” mundial tem duas características principais: ela está submetida aos imperativos econômicos e é dependente das demandas dos diferentes componentes da sociedade, mais particularmente dos pais. Utilitarista, concebe o saber apenas na sua dimensão de ferramenta para agir, de um instrumento para vencer socialmente, do capital individual para aumentar suas rendas futuras. O “capital humano” é o termo-chave empregado na reorientação do conjunto de dispositivos educativos e, talvez mais ainda, do próprio espírito da educação. Liberal, esta última deve ser como uma empresa que responde a uma clientela que, por sua escolha, deve poder influenciar a oferta educativa. A própria noção de “serviço público” é objeto de um verdadeiro desvio: a escola é concebida como uma agência de serviços, encarregada de satisfazer “eficazmente” consumidores fazendo valer seus interesses particulares.
O capitalismo funcionaria “movido a saber”, principal matéria prima e fonte de competitividade na guerra econômica generalizada. Em todo caso, é assim para a OCDE, o Banco Mundial e a Comissão Européia, a única verdadeira justificação social e individual do investimento educativo. A escola se encontra, desse modo, privada de qualquer autonomia em relação à produção e a sua lógica. A “aprendizagem durante toda a vida”, noção que supostamente dá substância e realidade ao direito, à cultura universal de cada ser humano, quaisquer que sejam sua idade e sua condição profissional, torna-se uma simples estratégia de reforma da educação com a finalidade de articular, de forma estrita e contínua, formação e “empregabilidade”.
Os “técnicos da pedagogia”
A escola tende a privatizar-se, não nos planos jurídico e financeiro, mas através de sua transformação interna inserida na lógica da competitividade
Se essa subordinação do ensino aos imperativos econômicos é exigida de forma mais direta no ensino tecnológico e profissional, na realidade, ela se estende ao conjunto dos cursos. A OCDE, desse modo, inculcou o “espírito de empresa” em todos os níveis de seu cavalo de batalha4. Para ela, uma das condições de competitividade e de emprego é a “flexibilidade do mercado”, o que supõe uma transformação das mentalidades, para a qual a escola deve contribuir. Nessa concepção, e para responder às necessidades das empresas, o que pode ser melhor do que definir a própria escola com empresa encarregada, na divisão geral da produção, de uma função determinada, a da produção de competências ou da formação do capital-humano? O que explica a ênfase posta sobre os métodos empresariais, sua “cultura” gerencial, sua linguagem e suas práticas.
Na realidade, esse processo está operando há cerca de 20 anos. Foram formados prioritariamente diretores de estabelecimentos que se tornaram “gerentes”. As categorias que permitem pensar a especificidade do trabalho daqueles que ensinam são ofuscadas progressivamente pelas definições que as consideram “técnicos da pedagogia” ou “quadros”. A escola tende, assim, a privatizar-se, não necessariamente nos planos jurídico e financeiro, mas através de sua transformação interna, em um mercado em que a concorrência entre indivíduos e, cada vez mais, entre estabelecimentos, torna-se a regra.
Mero instrumento da política de empregos
No Conselho Europeu, 2000, a educação e a formação foram rebaixadas a instrumentos das políticas de emprego, sociais e macro-econômicas
Nesse contexto, a descentralização não é, de forma alguma, uma resposta a aspirações por mais democracia ou por algo que dela se aproxime. Ela é açambarcada por esses novos barões que tendem a se tornar os administradores das coletividades locais. E, acima de tudo, ela é fonte de importantes e novas desigualdades através dos financiamentos: os créditos pedagógicos por aluno e por ano podem variar de 100 a mil euros, ou seja de 1 para 10, de acordo com a municipalidade5. O que torna sem importância os poucos meios que beneficiam, ainda, por exemplo, as zonas de educação prioritária.
O papel das instituições européias no estabelecimento dessas orientações é considerável. Oficialmente, a União tem competências muito limitadas em matéria de educação6, mas nos últimos anos, a Comissão e os Conselhos europeus encorajaram bastante a convergência dos sistemas escolares. Desde os meados dos anos 1990, a Comissão estabeleceu como centro estratégico o papel do “capital humano”. Foi no Conselho Europeu de Lisboa, em março de 2000, que essa nova orientação foi mais claramente exposta: nas conclusões da presidência, a educação e a formação foram rebaixadas a instrumentos das políticas de emprego, das políticas sociais e das políticas macro-econômicas. Quanto aos sistemas educativos, eles devem “adaptar-se” à nova realidade tecnológica e às exigências de competências e de flexibilidade formuladas pelas entidades patronais européias.
Escola com “eficiência” e “parcerias”
O Conselho de 2002 estabeleceu indicadores de qualidade para avaliar os sistemas nacionais e compará-los – um postulado liberal de “eficiência”
No Conselho Europeu de Barcelona (março 2002) um “programa de trabalho detalhado sobre o acompanhamento dos objetivos dos sistemas de educação e de formação na União Européia” foi adotado7. Três objetivos estratégicos foram considerados dignos de interesse: “melhorar a qualidade e a eficácia dos sistemas de educação e de formação na União Européia”, “facilitar o acesso de todos aos sistemas de educação e de formação”, e acima de tudo, “abrir ao mundo exterior os sistemas de educação e de formação”. Um programa e um calendário precisos de trabalhos foram definidos até 2010. Balanços anuais serão feitos pela Comissão, o Conselho Europeu da primavera de 2004 deverá precisar o andamento da constituição efetiva do programa de trabalho.
Nessa perspectiva, 16 indicadores de qualidade foram elaborados e devem servir para avaliar os sistemas nacionais e compará-los. Como se trata, nesse caso, de campos que escapam às competências comunitárias, será utilizado o “método aberto de coordenação”. O conjunto dos objetivos e a combinação das relações e das avaliações permitirão a cada membro medir o caminho a ser percorrido e, através de planos nacionais, tomar medidas adequadas. As políticas educativas na Europa estão todas convidadas a se reorganizarem sobre os mesmos postulados fundamentais, de inspiração liberal: uma “escola eficiente”, totalmente aberta a “parcerias” com o mundo da empresa, e com o objetivo supremo de contribuir para a competição econômica.
Resistência da opinião pública
A opinião pública não vê o conhecimento como mercadoria comum – o que impediu, por enquanto, a abertura do setor à concorrência internacional
A Organização Mundial do Comércio (OMC) não se ocupa, diretamente, do conteúdo da educação. O que lhe interessa é o mercado potencial que o comércio dos serviços educativos representa: mais de um trilhão de euros são efetivamente gastos todos os anos no mundo com a educação. Para a OMC, o objetivo é conseguir, nesse campo como nos outros, a liberalização desse mercado para o maior benefício das empresas privadas de educação e dos capitais que são investidos nisso.
Tanto quanto em relação à saúde e à cultura, não é fácil convencer a opinião pública de que os conhecimentos são mercadorias como as outras – suscetíveis de serem compradas e vendidas – e, ainda mais, segundo as regras normais do comércio internacional. Essa resistência obrigou o arquiliberal comissário do comércio Pascal Lamy a retirar esses três setores de serviços da abertura à concorrência internacional nos quadros das negociações do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS) da OMC. O que não elimina a ameaça, mas a detém, pelo menos, no momento.
Como Luc Ferry diz sem o dizer, a mercantilização da educação não passa apenas pelos mecanismos da AGCS. Os países desenvolvidos, com mais força, tendem a exigir dos outros as aberturas de mercado que recusam para si mesmos. Os estabelecimentos de ensino franceses, por enquanto as universidades e o Centro nacional de ensino à distância (CNED), também público, são levados a mostrarem-se competitivos no mercado da educação e a vender suas formações. O que lhes permitirá, espera-se, autofinanciarem-se cada vez mais amplamente, uma vez que seus créditos públicos estão sendo reduzidos. O que – não se diz – vai conduzi-los a adaptar seu modo de funcionamento, até mesmo os conteúdos de suas formações, às necessidades do mercado internacional, em detrimento, se for o caso, de sua missão de interesse geral. Logo, o mercado pode ser vencedor em todos os casos!
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Trata-se das várias possibilidades de cursos e certificados que alguém pode ter e assim constituir sua carreira e criar perspectivas de trabalho.
2 – Entrevista coletiva , 2 de setembro de 2002.
3 – Ver Christian Laval e Louis Weber (org) Le Nouvel Ordr