A espantosa ascensão do PC checo
Frustrada com uma social-democrata mais austera que os conservadores, grande parte do eleitorado apóia os comunistas. Duas vezes mais populares que há um ano, eles já se unem aos anarquistas, nas manifestações de rua, e querem lembrar os períodos anti-autoritários de seu passadoAdam Novak
Um fantasma rondou as comemorações do décimo aniversário da “Revolução de Veludo”, no final de 1999. Depois de vários anos à margem da vida política, o Partido Comunista da Boêmia e da Morávia (KSCM) de repente dobrou sua marca nas pesquisas, para grande prejuízo do Partido Social-Democrata Checo (CSSD), [1] no poder desde 1998. O sucesso comunista, no entanto, não é expressão de uma crescente nostalgia do regime anterior a 1989. Segundo o presidente do PC, Miroslav Grebenicek, isso acontece simplesmente porque “o recém-inaugurado sistema capitalista não funciona. Ou melhor, funciona muito bem para os 10 mil indivíduos no topo da pirâmide social e muito mal para o resto”.
Aliás, quatro promessas garantiram a vitória do líder social-democrata Milos Zeman sobre seu adversário conservador Vaclav Klaus: reverter a queda da produtividade, estancar o rebaixamento do nível de vida, reduzir o desemprego e acabar com os “crimes do colarinho branco” ligados às privatizações. Os eleitores continuavam radicalmente avessos a qualquer nostalgia do totalitarismo de um Partido Comunista expurgado de suas alas reformistas depois da “Primavera de Praga” de 1968, e incapaz de propor novas soluções para os problemas de um país que se tornara capitalista.
Até 98, eleitores avessos à “nostalgia comunista”
Assim, o voto comunista parecia estacionado em 10%, metade dos quais era de funcionários do regime anterior insatisfeitos com as mudanças, e o resto, basicamente, de aposentados, operários não-especializados e romanis (ciganos), os “excluídos” do novo sistema. A grande mídia proclamava que a solução para o “fato comunista” era demográfica: um por um, os nostálgicos abandonariam o partido ou morreriam de velhice. Enquanto isso não acontecia, os demais partidos formaram um “bloco democrático”, negando-se terminantemente a colaborar com o PC nas administrações locais e no Parlamento. Uma profunda autocrítica, o abandono do nome “comunista” e a aceitação programática da economia mista e do pluralismo parlamentar como base do novo sistema político-econômico eram algumas das condições impostas pelos mais moderados dentro do Partido Socialista (PS) para aceitar o PC.
Na verdade, essa estratégia anticomunista conseguiu fazer do PC um gueto durante os anos de governo conservador. Mas com a eleição do governo social-democrata, em 1998, as regras do jogo mudaram. “Antes de ser eleito, eu era ingênuo”, admite o novo primeiro-ministro Milos Zeman. [2] “Agora que estou aqui, tudo parece bem mais complicado!”
Herança de dívidas e escândalos financeiros
Paradoxalmente, a vitória eleitoral marcou o fim da lua-de-mel do eleitorado com os social-democratas. Até então, estes pareciam ser a única corrente progressista de futuro. O governo anterior, porém, deixara como legado, por trás dos êxitos de fachada, uma situação crítica e muitos escândalos financeiros: uma vez vendidas as “jóias” da indústria, ao longo da década anterior, a privatização e o investimento estrangeiro mostraram-se insuficientes para cobrir as crescentes dívidas das empresas, na verdade muito pouco reestruturadas sob obscuras transferências de propriedade. A União Européia propusera ao governo anterior a privatização dos bancos, mas isso poderia trazer à tona a corrupção dos homens de negócios próximos ao poder e provocar a falência de 20 a 30% das empresas privadas e mistas. De repente, não apenas ficava para as calendas a elevação do nível de vida, já prometida pelo ex-primeiro ministro Klaus e pelo presidente Vaclav Havel, como também era cada vez mais difícil realizar as reformas liberais sem traumas. Até então, as multinacionais normalmente só podiam comprar comprometendo-se a desenvolver a produção local. O custo social da transição também tinha sido atenuado pelo crescimento do setor privado, que oferecia alguns empregos — principalmente no comércio, no turismo e na indústria metalúrgica — aos trabalhadores “excedentes” das empresas públicas.
Mas o social-democrata Milos Zeman resolveu vencer o desafio de aumentar a produtividade à custa de um grau de austeridade de fazer inveja aos conservadores que o antecederam: a sobrevivência de seu governo, minoritário, depende de um acordo com o maior partido conservador, o Partido Cívico e Democrático (ODS), de Klaus.
“Salvar” os bancos… vendendo-os a estrangeiros
Chegou mesmo a ameaçar congelar os salários do funcionalismo e começou a preparar o sistema de aposentadoria para sua privatização parcial. Além disso, o novo chefe de governo resolveu salvar os bancos… vendendo-os aos estrangeiros. Hoje, a falência de um grande número de empresas em dificuldades parece iminente. Para completar, pela primeira vez desde o início das reformas, a taxa de desemprego ultrapassou os 10%.
Conseqüentemente, são os comunistas que levam os votos dos frustrados com a distância entre as promessas dos social-democratas e sua política. Enquanto a popularidade dos social-democratas caiu de 26%, em meados de 1998, para 15%, em novembro de 1999, o apoio aos comunistas passou de 12 a 24,5%, no mesmo período.
O perfil do eleitorado do PC também mudou. Os novos simpatizantes não têm vínculo histórico com o partido. Operários não-especializados ou de baixa qualificação, com idade superior a 40 anos, gostam do discurso combativo do PC sobre a questão do desemprego, da privatização e da proteção dos direitos dos demitidos. Entre eles há um número duas vezes maior de homens que de mulheres. Além disso, somente 15% dos que votaram no PC em 1998 desejam uma volta ao regime anterior a 1989. Com o rápido aumento de popularidade do partido, os nostálgicos stalinistas deixaram de ser a única base social desse partido em mutação.
A situação é quase ideal para o PC. As manifestações dos operários demitidos exigindo seus últimos salários são um sério embaraço para os social-democratas e seus amigos dirigentes sindicais. Excluídos do “bloco democrático” e ignorados pelos social-democratas, os comunistas, por seu lado, não hesitam em fazer coro à raiva e à frustração e a propor uma política de criação de empregos e até mesmo de reestatização, reforçando seu novo perfil de “partido dos trabalhadores”. “Queremos devolver ao Estado as empresas de que necessita para cumprir seu papel”, diz Vojtech Filip, líder do grupo parlamentar comunista. “Pensamos fazê-lo principalmente com a criação de novas empresas. Mas isto também pode ser feito pela recompra obrigatória. A nacionalização, se você preferir.” [3]
Também entre a população o anticomunismo já não é mais o mesmo. Os partidos de direita, em pânico, redobram os apelos para fortalecer o “cordão sanitário” ao redor do PC, mas 43% dos eleitores se dizem, agora, dispostos a aceitar a participação dos comunistas no governo. [4] Apesar de constantemente excluído do universo parlamentar, o PC superou seu isolamento e não se preocupa mais com sua imagem.
O líder comunista Miroslav Grebenicek prepara seus fiéis para uma eventual “revisão” dos crimes do passado. No entanto, uma mudança muito rápida provocaria a fuga dos nostálgicos para a seita neo-stalinista de Miroslav Stepan, antigo secretário-geral do partido de Praga e depois do Partido Comunista Checoslovaco, expulso em 1990 por sua participação na repressão das manifestações de agosto de 1989.Além disso, o aumento da influência do PC não resulta apenas da nostalgia do regime anterior à “Revolução de Veludo”. A idéia de que os alemães possam comprar casas na zona de fronteira, que, no final da Segunda Guerra Mundial, passou por uma “limpeza” da população alemã que ali vivia, não agrada a muitos checos. Da mesma forma, o estilo ocidental dos novos ricos fere os brios de muitos eleitores em potencial. “Você pode achar que essas preocupações não passam de ’nostalgia’, mas para mim são expressão de um sentimento patriótico”, comentou a esse respeito Grebenicek, numa entrevista à Rádio Praga durante o congresso do PC.
Anarquistas unem-se ao PC em protestos populares
Por último, o anticomunismo não está enraizado nos jovens com menos de 25 anos, que não viveram propriamente no regime anterior. Embora minoria, um número cada vez maior deles é atraído pelo ideário, a ética e o engajamento comunistas. É cada vez mais freqüente ver os meios anarquistas de Praga unirem-se aos militantes do PC nas mobilizações contra o aumento do aluguel e nos protestos contra a deficiência dos serviços para os habitantes, num centro histórico reservado, cada vez mais, apenas para os turistas.
“Na verdade, há muitos passados comunistas”, declara Grebenicek. “Da independência (com a queda do império austro-húngaro em 1919) à invasão nazista (em 1938), os partidos comunistas e social-democratas das nações que formavam a Checoslováquia estavam entre os mais importantes da Europa. Depois, nos anos 60, forjamos uma tradição comunista pluralista, rica, transformadora e profundamente democrática. Vinte anos antes de Gorbatchev! Então, quando falamos do ’passado comunista’, estamos falando também dessas experiências.”
Paradoxalmente, a subida do partido nas pesquisas torna menos provável a renovação do programa e dos símbolos comunistas que impedem uma colaboração com os social-democratas. A impressão de isolamento que dominou o partido desde 1990 estava ausente no congresso de dezembro de 1999, [5] mas a urgência de “fazer alguma coisa” para sair dele também. Mais democracia dentro do partido, além de mais atenção ao feminismo e à ecologia, ajudariam o PC a sair do isolamento e poderiam até atrair correntes de esquerda do Partido Social-Democrata. A cúpula comunista, no entanto, não está convencida disso.
Social-democratas não querem bloco de esquerda
“De qualquer modo, os social-democratas não querem nem ouvir falar de um bloco de esquerda”, afirma Grebenicek. “Mas isso deve mudar quando somarmos 51% nas pesquisas.” Na realidade, os social-democratas não têm a menor intenção de romper com o “bloco democrático” para aliar-se a um PC mais forte que eles. O primeiro-ministro Milos Zeman sabe que qualquer sinal de abertura para os comunistas poria em risco seu frágil acordo com Klaus e o ODS. Desde 1996, ambos tentam tornar-se o alicerce de um sistema político bipartidário. Essa colaboração utilitária irrita grandes correntes da direita ultra-liberal e anti-socialista. Assim, em dezembro de 1999, 70 mil pessoas reuniram-se na praça Venceslau para exigir a renúncia de Zeman e Klaus e novas eleições que permitissem a formação de um governo de direita e “verdadeiras” reformas econômicas. E mais de 200 mil checos subscreveram um abaixo-assinado nesse sentido.
Mas essa aliança desagrada também os democratas, que vêem nela uma apropriação nociva da vida política. E ela acaba contribuindo para tornar atraente um Partido Comunista herdeiro da normalização pós-68, que se traduziu na repressão das forças vivas ligadas à “Primavera de Praga.” Por enquanto isolado, o peso do PC no grande debate sobre a manutenção ou o abandono da estratégia de reformas graduais é mínimo. Mas, a persistir a intransigência