A esquerda “não socialista”…
Mesmo entre os amigos de Lionel Jospin, raros pensam que ele agiu certo ao fazer uma campanha eleitoral que anunciava “A França está melhor” e propunha – para que esse “melhor” se prolongasse – um programa “que é não socialista”Serge Halimi
Dois meses de eleições fizeram reaparecer um grupo social de cuja existência os dirigentes políticos e os comentaristas não mais suspeitavam: “os operários”. Simultaneamente, essas votações parecem ter selado o desaparecimento da questão da propriedade dos meios de produção, naquilo que faz as vezes de debate político.
Tal paradoxo põe em questão, em primeiro lugar, a esquerda, que deveria enxergar a existência de uma correlação entre o destino, cada vez mais difícil, de uma França de baixos salários e da precariedade, e a expansão contínua dos setores da vida comum entregues às finanças e às rendas. De tanto se preocupar com a propriedade coletiva apenas para examinar a arte de melhor se livrar dela, como não ser “obrigado” a incentivar a “criação de valor” para os acionistas? Uma opção que obriga a fazer do salário a principal variável de ajuste, já que o “atrativo” do “site França” impõe que o “custo do trabalho” seja tão competitivo aqui como em qualquer outro lugar.
Direita preparara a receita de Jospin
A opção “socialista” faz do salário a principal variável de ajuste, pois o “atrativo” do “site França” impõe que o “custo do trabalho” seja competitivo
É em período eleitoral que se descobre que a França não é um site, mas um país habitado por um povo; que o custo do trabalho de uns é o nível de vida dos outros – mais numerosos, ainda que menos privilegiados. Dizer isto, no entanto, expõe ao perigo de lhe ser atribuído um certo atraso intelectual. Desta forma, um cientista político, mais notável por sua atuação editorial do que pela originalidade de suas análises, acaba de declarar: “Os políticos devem dizer adeus à política revolucionária, a essa religião secular que grassou até o início da década de 80, aquela que dizia aos cidadãos: ?Nós vamos mudar sua vida?1.”
Na Faculdade de Ciências Políticas, onde a vida é tranqüila, esse “adeus” deve custar menos do que em outros lugares. Mas, mesmo entre os amigos de Lionel Jospin, raros são aqueles que ainda acham que ele agiu certo ao fazer uma campanha eleitoral tão em conformidade com as prescrições do cientista político já citado, ou seja, uma campanha pouco “revolucionária”. Ela anunciava com ênfase “A França está melhor” e propunha, para que esse “melhor” se prolongasse, um programa “que é não socialista”. De volta ao poder com seus amuletos habituais (“O que é bom para a empresa é bom para os assalariados”), a direita se prepara para aplicar uma política totalmente “não socialista”.
“Não há mais o que privatizar…”
É nas eleições que se descobre que a França não é um site, mas um país habitado por um povo e que o custo do trabalho de uns é o nível de vida de outros
Em outras épocas, consciente de que os ricos utilizam sua fortuna para adquirir mais influência política, e depois utilizam a influência política para aumentar a fortuna, a esquerda tentava reduzir as desigualdades e combater “o dinheiro forte2“. Este ano, se o programa do candidato socialista foi “não socialista”, é porque sua política como primeiro-ministro também o fora. Na oposição, semelhante balanço poderia se mostrar embaraçoso.
A prova disso foi dada desde a noite do primeiro turno das eleições legislativas. Sem interrupção, Laurent Fabius no canal TF1 e Dominique Strauss-Kahan no France 2, ambos ex-ministros das Finanças dos governos de Jospin, censuraram François Fillon, que ia e vinha entre os dois canais, por não querer aumentar o SMIC (Salário Mínimo Interprofissional de Crescimento) acima do mínimo legal. A resposta do novo ministro dos Assuntos Sociais não tardou: “Em 1999, vocês não aumentaram o salário mínimo. Em 2000, vocês não aumentaram o salário mínimo. E, em 2001, vocês deram um incentivo ao salário mínimo de 0,29%…”
Algumas semanas antes, a secretária nacional do Partido Comunista, Marie-George Buffet, passara pela mesma situação. Também questionando Fillon, desta vez no canal France 3, ela lhe perguntou, meio desconfiada e meio entristecida: “O senhor vai fazer privatizações?” Também aqui a resposta veio rápida: “Vão ser feitas privatizações. Certamente vão ser feitas menos privatizações do que no governo a que a senhora pertenceu, porque não há muito mais o que privatizar…”
O caixa das “privatizáveis”
Nas eleições deste ano, se o programa do candidato socialista foi “não socialista”, é porque sua política como primeiro-ministro também o fora
Entre duas viagens a Porto Alegre, alguns dos ministros da esquerda plural não tinham provavelmente notado que o gigantesco programa de privatizações anunciado pela direita em julho de 1993 estava, na prática, quase concluído, mais graças à diligência deles do que à das equipes de Edouard Balladur e Alain Juppé. E o órgão teórico do Partido Socialista se gabava disso: “Em matéria de privatizações, a ?esquerda plural? realizou em três anos um programa mais importante do que qualquer outro governo francês3.” Em janeiro de 2002, Laurent Fabius até se manifestou a favor do “não comprometimento do Estado” no capital da EDF-GDT e da utilização de “margens de abertura maiores” no caso da France Telecom.
Até 1988, a esquerda francesa nem sempre nacionalizava, mas nunca privatizava. E a direita não muito mais, até 1986. Em contrapartida, nos últimos quinze anos, a parte das empresas públicas no emprego assalariado total foi dividida por dois, caindo a 5,3% do total4. Ora, a reivindicação social freqüentemente se apoiava em empresas públicas, mais sindicalizadas do que as outras, e cujas grandes greves marcaram a história do país (minas de carvão em 1963, a estatal Renault em 1968, a SNCF – estatal das estradas de ferro – e a RATP – estatal do transporte público de Paris – em 1995). A gestão míope do caixa das “privatizáveis” por parte do governo Jospin pode, portanto, ter bastante peso na perspectiva dos futuros combates progressistas.
Esquerda terá tempo para refletir
“Em 1999 e em 2000, vocês não aumentaram o salário mínimo. Em 2001, aumentaram o salário mínimo em 0,29%…”, ouviram dois ex-ministros “socialistas”
E com que vantagens? No momento em que a esquerda se recusava a aumentar os benefícios mínimos sociais mais baixos da Europa, seus bônus fiscais freqüentemente privilegiaram as camadas superiores da população (e certos dirigentes socialistas): diminuição do imposto de renda (progressivo), supressão do selo do automóvel (ao mesmo tempo progressivo e ecológico), transformação do site França em paraíso das stock-options no velho continente.
Em suma, como Strauss-Kahn teorizaria com um cinismo tranqüilizador5, o Partido Socialista parecia ter adotado a sociologia da ideologia dele. O deputado socialista Henri Emmanuelli observou isso, logo depois das eleições municipais do ano passado: “De agora em diante, a influência da esquerda plural teria tendência a seguir o preço do metro quadrado, ainda que ela lhe fosse inversamente proporcional6.” As eleições legislativas confirmaram essa análise: derrotada em Paris, a direita conquista Argenteuil. Socialmente, eleitoralmente, o resultado não deve ser bom, pois a esquerda está na oposição.
A esquerda terá tempo suficiente, por exemplo, para se colocar duas questões. A primeira refere-se ao meio que a cerca. Quem adere a ela, quem a incentiva, divulga seus temas? Os “líderes de opinião” – empresários, jornalistas importantes, ensaístas midiáticos e pesquisadores de opinião – estariam todos persuadidos de que o país vai bem quando eles vão melhor? E o povo, de que a esquerda parece desconfiar em razão das patologias que lhe atribui (medo da “abertura” e das “reformas”, extremismo, xenofobia, irracionalidade, incompreensão da “complexidade”)?
A conversão ideológica dos “socialistas”
Outra ex-ministra ouviu: “Vão ser feitas menos privatizações do que no governo a que a senhora pertenceu, porque não há muito mais o que privatizar…”
Dirigir-se aos dois segmentos exige, de fato, um senso de equilíbrio muito bom. Em 6 de junho de 2002, Le Nouvel Observateur dedicou um grande dossiê lamurioso a “Essa França que vai mal”. Dezenove páginas de texto, vinte e uma de publicidade: à esquerda, artigos sobre o horror econômico; à direita, a publicidade para o consumo de luxo (Hermès, BMW, Dunhill, Alfa Romeo). Mesmo durante uma semana, “a França que vai bem” não poderia ser deixada de lado…
Nesses meios de comunicação que descobrem as desigualdades com mais atraso do que o tempo que levaram para farejar as empresas start-up da nova economia, a conversão ideológica dos socialistas foi, aliás, ainda mais bem acompanhada e incentivada, na medida em que se associou à evolução econômica da informação: peso crescente dos anunciantes e dos administrados, papel da Bolsa de Valores, domínio dos grandes grupos capitalistas, enriquecimento vertiginoso dos jornalistas e ensaístas mais importantes7.
Reeducação está apenas começando
A gestão míope do caixa das “privatizáveis” por parte do governo Jospin pode ter um peso considerável na perspectiva dos futuros combates progressistas
A outra questão é a das “obrigações”. No mês passado, Francis Mer, ex-empregador e ministro de Jean-Pierre Raffarin, mal tinha sugerido que “o pacto de estabilidade não está gravado no mármore” e a socialista Elisabeth Guigou respondia, aparentemente indignada: “É a primeira vez que ouço um ministro da Economia e Finanças voltar atrás em compromissos assumidos pela França.”
Inicialmente confirmada por Jacques Chirac, essa restrição monetarista, no entanto, fora duramente criticada por Lionel Jospin quando era primeiro-secretário do Partido Socialista. É hoje uma de suas ex-ministras que reage, quando a direita a discute. A reeducação da esquerda está apenas começando. Mas, se ela terminar sem que a nova oposição vislumbre outro horizonte que não seja a globalização mercantil, a insegurança social dela decorrente e o “mármore” funerário do círculo da razão, nesse caso, a alternância pode ficar esperando.
(Trad.: Regina Salgado Campos
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).