A Europa necessária
As reações dos atuais dirigentes europeus não estão à altura da ocasião histórica que se apresenta, traindo as esperanças de povos que, através do mundo, gostariam que a arrogância norte-americana encontrasse um mínimo de resistênciaRobin Blackburn
A Europa tem pela frente três choques que ameaçam suas instituições sociais e sua aspiração a desempenhar um papel independente no mundo: uma potência norte-americana desenfreada, opções econômicas do tipo anglo-saxônico e a ampliação da União Européia. Embora se insiram num contexto de longo prazo, essas três dinâmicas concentram força suficiente para paralisar, desde já, as instituições européias, para submeter as políticas internas dos países europeus às exigências da globalização neoliberal e suas políticas externas à liderança dos Estados Unidos – fórmula utilizada pela Casa Branca para definir sua ambição imperial. Não é dessa Europa que seus cidadãos e o resto do mundo necessitam.
Na medida em que, até o momento, a União Européia é a única entidade global que dispõe de um peso econômico e de um potencial político capazes de se contraporem aos dos Estados Unidos, ela teria, pelo menos em princípio, meios de desafiar a pretensão de potência hegemônica destes últimos. Não seria o caso de ela se americanizar ainda mais – processo que já foi além dos limites toleráveis – e, sim, de oferecer um modelo diferente, baseado na justiça social, e, no plano internacional, parar de se sujeitar a ficar atrelada às aventuras bélicas de George Bush.
Ocasião histórica
É possível para a Europa dar respostas criativas aos desafios que enfrenta. Porque a própria liderança dos Estados Unidos vem passando por sérias dificuldades – no Iraque, em primeiro lugar, e no Oriente Médio; e porque os dois países com maior cacife da União Européia – a Alemanha e a França – acabam de fazer voar em estilhaços a fórmula estéril do pacto europeu, grotescamente intitulada “Pacto de estabilidade e de crescimento”, questionando, dessa forma, o poder nefasto do Banco Central Europeu (BCE) e seus desastroso dogmas monetaristas.
A própria liderança dos Estados Unidos vem passando por sérias dificuldades – no Iraque, em primeiro lugar, e no Oriente Médio
As atuais reações dos dirigentes europeus ao impasse em que se atolaram os Estados Unidos no Iraque, assim como à crise da gestão monetária da União Européia não estão à altura da presente ocasião histórica. Muito pelo contrário, elas enfraquecem a Europa e traem as esperanças dos povos que, através do mundo, gostariam que a arrogância norte-americana encontrasse um mínimo de resistência. É verdade que os aliados dos Estados Unidos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) protestam contra o “unilateralismo” de Washington, publicamente ou em particular; porém, apenas para melhor endossar, em seguida, as conseqüências. Votaram nas Nações Unidas, por exemplo, uma resolução conferindo uma legitimidade injustificável post-facto à ocupação do Iraque.
Espantosa aliança
Quanto mais os Estados Unidos se atolarem, mais contarão com seus aliados, reticentes mas submissos, para enviar tropas para o local – ou seja, colocar seus cidadãos em risco de vida – para tentar conter uma situação perigosa e contribuir para a reeleição de Bush em novembro de 2004.
Na frente interna européia, o poder do BCE será restaurado e reciclado pelo crescimento ampliado do programa que se poderia qualificar de “privatização implícita”: a degradação dos serviços públicos e da proteção social, com o objetivo de obrigar a massa de cidadãos a se transformarem em clientes dos vorazes usurários que são os estabelecimentos financeiros e as companhias de seguros.
No entanto, a oposição pode ganhar novo espaço. O movimento pacifista, que atingiu seu apogeu por ocasião das manifestações de 15 de fevereiro de 2003, deverá conseguir fôlego à medida que a natureza da ocupação do Iraque não deixe mais margem para dúvidas. Da mesma forma, a mobilização em defesa do ensino público e da previdência social irá proporcionar um novo momento de contestar as políticas adotadas pelos líderes que tão mal dirigem a Europa, abrindo brechas e provocando conflitos nessa espantosa aliança que une Gerhard Schroeder e Jean-Pierre Raffarin, Romano Prodi e Jacques Chirac, Silvio Berlusconi e Anthony Blair.
Sem respaldo europeu
A defesa do ensino público e da previdência social proporcionará um novo momento para contestar as políticas adotadas pelos líderes que tão mal dirigem a Europa
Os líderes do Velho Continente nem sequer notaram que seus colegas de Washington – a quem fizeram um juramento de fidelidade – estão em vias de perder terreno junto à própria opinião pública norte-americana. Antes da captura de Saddam Hussein, a popularidade de Bush despencara nas pesquisas. No Partido Democrata, o impulso militante que se vem observando em apoio à candidatura de Howard Dean demonstra que este tem boas chances de ser o candidato do partido. O trunfo de Dean é o de se ter manifestado contra a guerra, porém ele não pode explorar isso a fundo – não só porque a Europa não reivindica a retirada das tropas norte-americanas do Iraque, mas também porque vários países europeus aceitaram enviar reservistas para aquele país.
Se os europeus elaborassem um projeto de retirada das forças de ocupação – talvez sob a égide da Liga Árabe ou das Nações Unidas -, essa iniciativa encontraria respaldo no desejo de milhões de norte-americanos que querem ver seus soldados voltarem para casa.
Modelo questionável
A elite européia também se recusa a olhar de frente para outra realidade: o modelo econômico norte-americano, longe de merecer ser imitado, vem atualmente passando por sérias dificuldades. O colapso da Enron significou apenas o começo de uma onda de escândalos que vem envolvendo todas as instituições financeiras importantes de Wall Street. Durante os últimos dois meses, Eliot Spitzer, procurador do Estado de Nova York, abriu inquéritos e realizou auditorias que demonstram que os grandes bancos e os grandes fundos de investimentos permitiram a alguns fundos especulativos que “camuflassem” – ou seja, roubassem – a poupança em fundos de pensão de mais de 90 milhões de cidadãos. Outra conseqüência da desregulamentação e da “financeirização”…
Após a destruição de milhões de empregos durante os últimos anos, e apesar da tímida retomada do crescimento, a opinião pública norte-americana receia que, nas próximas duas décadas, os sistemas de previdência social privados – que já excluem mais de uma quinta parte da população – também venham a ruir. As aposentadorias e a assistência médica privadas passam por uma séria “doença de custos”. As campanhas de marketing aliciando clientes consomem quantias consideráveis, enquanto a prestação de serviços adequados sai pesada e onerosa para as pessoas.
Falta de coragem e imaginação
O trunfo de Dean, nos EUA, é o de se ter manifestado contra a guerra, porém ele não pode explorar isso a fundo porque países europeus enviam tropas para o Iraque
Na busca de alternativas, muitos setores da esquerda norte-americana se voltam para a Europa, mas ficam cada vez mais decepcionados. É verdade que as medidas de proteção social continuam muito superiores no Velho Continente, mas mesmo governos como o da coalizão de social-democratas e verdes, na Alemanha, não têm coragem nem imaginação: ao invés de procurarem melhores fontes de financiamento para o Estado social, preferem diminuir as prestações.
O evidente enfraquecimento da capacidade da Europa proteger seus próprios cidadãos diminui seu peso nos assuntos mundiais. Para impedir o colapso do que ainda resta do modelo social europeu, a União poderia, pelo menos, oferecer aos seus cidadãos uma outra forma de uma nova prestação social. Vale lembrar que foi essa a iniciativa do presidente Franklin Roosevelt na década de 30, quando os Estados Unidos enfrentaram sua pior crise social. A lei de 1935 criou uma previdência social com abrangência praticamente universal e, em pouco tempo, o cartão da previdência se tornou sinônimo de identidade civil.
Estado de bem-estar social europeu
A Europa deveria pesquisar programas desse tipo. É verdade que existem os chamados fundos estruturais e de coesão1, a política agrícola comum e os programas de auxílio aos países candidatos à União Européia. Essas ajudas, entretanto, destinam-se aos países, às regiões, aos agricultores, e não ao conjunto da população – o que poderia criar um vínculo entre os cidadãos dos países confederados.
O evidente enfraquecimento da capacidade da Europa proteger seus próprios cidadãos diminui seu peso nos assuntos mundiais
Três economistas – James Galbraith, Pedro Conceição e Pedro Ferreira2 – desenvolveram uma argumentação em defesa de um “Estado de bem-estar social realmente europeu, com um sistema de aposentadorias continental”, assim como da “criação de novas universidades de primeira grandeza nas regiões da periferia européia – onde a natureza é belíssima, mas a renda é a mais baixa – com isenção total de custos para os estudantes”. Um Estado de bem-estar social europeu deveria ter uma abrangência universal, de tal forma que qualquer cidadão, de qualquer país, recebesse alguma coisa. Deveria ser concebido como complemento – e não como substituto – dos sistemas de previdência social nacionais que, por sua vez, deveriam poder pedir ajuda, em caso de urgência, a um fundo europeu que dispusesse de recursos próprios.
Fundos sociais
A Europa deveria aspirar a um modelo muito mais igualitário e responsável, tanto para seus próprios cidadãos quanto para o resto do mundo
A Confederação Européia de Sindicatos (CES) vem reivindicando, há muito tempo, a criação de um Fundo Social Europeu concreto3, dotado de recursos que lhe permitam investir na criação de empregos produtivos e garantir as futuras despesas da proteção social. Em 1959, a Comunidade Econômica Européia (CEE4) criou o Banco Europeu de Investimentos (BEI) que, supostamente, iria servir de contrapeso aos bancos centrais. Agora que a Alemanha e a França mandaram o Pacto de Estabilidade e Crescimento para o espaço, o BEI teria, mais do que nunca, um papel a desempenhar. Três economistas de Cambridge defenderam que se aumente o poder do banco como forma de contrapeso ao Banco Central Europeu5.
Os fundos sociais não só teriam o objetivo de produzir riqueza, mas também o de distribuí-la. Num continente em que as Bolsas de Valores são quase sempre a lei, esses fundos poderiam proteger as empresas produtivas da “financeirização”, promover as que visem a objetivos de responsabilidade social e permitir um mínimo de controle popular sobre o processo de acumulação.
A Europa teria muito mais condições de se dedicar a recuperar e melhorar seus dispositivos de proteção social, assim como recusar a se deixar arrastar nas aventuras de conquistas militares dos Estados Unidos. Aliás, o belicismo de Washington explica-se pelo desejo de desviar a atenção dos cidadãos norte-americanos dos graves problemas sociais e da explosão de desigualdades por que passa o país. A Europa deveria aspirar a um modelo muito mais igualitário e responsável, tanto para seus próprios cidadãos quanto para o resto do mundo. A criação de um contrato social em escala continental contribuiria para a construção de uma cidadania comum, que seria a base de uma política externa européia mais independente.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Os fundos estruturais, que representam um terço do orçamento da União e beneficiam – embora de maneira desigual – todos os países, são os seguintes: Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola, Fundo Social Europeu, Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional e Instituto Financeiro de Orientação da Pesca. Na atual União Européia de quinze países, os fundos de coesão beneficiam apenas quatro deles: Espanha, Grécia, Irlanda e Portugal.
2 – Ler, de James K. Galbraith, Pedro Conceição e Pedro Ferreira, “Inequality and Employment in Europe”, New Left Review, setembro-outubro de 1999.
3 – Criado pelo Tratado de Roma de 1957, o atual Fundo Social Europeu (FSE) – um dos cinco fundos estruturais – existe há 40 anos. Em colaboração com os Estados membros, o FSE investe em programas cujos objetivos são a capacitação e a melhoria de perspectivas profissionais dos cidadãos europeus. No entanto, seu orçamento, que representa uma terça parte das verbas destinadas aos fundos estruturais (excetuando os fundos de coesão), ?