A falsa retórica da classificação das armas
A distinção entre armas convencionais de destruição de massa é, do ponto de vista médico, odiosa e infundada. No atual contexto de conflitos assimétricos, armas de alta tecnologia matam como as convencionais, os embargos e as ações terroristasChantal Bismuth, Patrick Barriot
Qual é o embasamento da distinção entre armas convencionais e armas não-convencionais (nucleares, radiológicas, biológicas, químicas – NRBC – e armas especiais), oportunamente assimiladas a armas de destruição em massa? O critério de discriminação provém de um poder mortífero incomensurável ou de um mecanismo de ação letal bárbaro? Em outras palavras, trata-se de critérios quantitativos ou qualitativos?
O poder de fogo das armas convencionais é tão mortífero quanto os efeitos das chamadas armas especiais, mas elas não suscitam muita reprovação oficial
Para qualquer médico, a classificação mecanicista articulada sobre os efeitos ou sobre os mecanismos de ação dos sistemas de armamento é não só odiosa em relação ao sofrimento humano, mas também infundada. O poder de fogo das armas convencionais é tão mortífero quanto os efeitos das chamadas armas especiais. O tapete de bombas estendido pelas campanhas de bombardeio aéreo de grande altitude, parte integrante da doutrina oficial dos chamados países civilizados há mais de 50 anos, rivaliza em poder destrutivo com as atuais armas NRBC. No entanto, as armas convencionais mais atrozes não suscitam senão poucas reprovações oficiais. Os tratados e as declarações de intenção permanecem impotentes para erradicar, entre outras, as minas terrestres ou as bombas de fragmentação que arrancam os membros dos camponeses e das crianças que se aventuram pelo campo.
Por sua vez, os terroristas, tão pragmáticos quanto desumanos, recorrem facilmente a meios convencionais cuja eficácia já não precisa ser demonstrada: bombas artesanais, carros cheios de explosivos, lança-mísseis. Um kamikaze que implode num local público mata mais seres humanos do que os 39 Scud iraquianos lançados sobre Israel durante a primeira guerra do Golfo (1991). Um míssil Sam 7 lançado por um único indivíduo pode abater um avião na decolagem e provocar centenas de mortes; um avião desviado por um pequeno grupo de kamikazes pode derrubar um arranha-céu e fazer milhares de vítimas.
“Segredos de agressão”
Da mesma maneira, o atentado com gás Sarin da seita Aum no metrô de Tóquio, em 20 de março de 1995, causou a morte de 12 pessoas, e as cartas com vírus antraz provocaram a morte de cinco pessoas nos Estados Unidos no outono de 2001, enquanto os atentados com explosivos em Bali e em Grosny provocaram respectivamente 192 e mais de 80 mortos. Timothy Mc Veigh não precisou de “bomba suja” para desencadear o terror em Oklahoma City nos Estados Unidos; uma única carga rudimentar bastou para matar na estação de metrô de Port Royal, em Paris, e algumas facas permitiram ao comando suicida de 11 de setembro de 2001 realizar uma verdadeira chacina em Nova York.
As armas químicas contam com a porosidade das classificações. Depois da militarização dos agentes biológicos, chega a vez dos medicamentos
Na realidade, a única classificação válida seria a que levasse em conta o sofrimento infligido aos seres humanos. Ora, em que uma queimadura térmica clássica provocada por uma munição convencional seria menos preocupante do que uma queimadura química por agente vesicatório ou do que uma outra por arma de microondas? Em que uma bomba privativa de oxigênio como a “Fuel air explosive” (FAE), verdadeira câmara de gás ao ar livre, é mais tolerável do que uma bomba de cianeto que bloqueia a utilização celular do oxigênio? Para um médico, não há maneira convencional de destruir um ser humano.
Por outro lado, os mecanismos de ação das armas de última geração, saídas dos laboratórios de Estado, permanecem classificados de “segredo de defesa” (na realidade, “segredo de agressão”). As autoridades gostariam que tivessem uma “autorização convencional”. As armas nucleares e radiológicas de última geração nem mesmo são mencionadas nos tratados, quer se trate das armas miniaturizadas com efeitos seletivos, ou das de microondas de grande poder, ou das de feixes de partículas.
Medicamentos de hoje, armas químicas de amanhã
Jogando com a miniaturização e com a modulação de seus efeitos, é possível mantê-las numa penumbra classificatória propícia à violação de todas as convenções. Os criadores da mini-bomba nuclear B 61-11 (mini-nuke), por exemplo, apresentam a versão light (0,3 quiloton eqüivale ao TNT), mas permanecem discretos quanto à versão mais potente, comparável a várias vezes a bomba de Hiroshima. Quem pode dizer onde se situa o patamar crítico de proscrição legal, para além do qual uma arma “contra soldados” se torna uma arma “contra cidades”, uma arma tática se torna uma arma pré-estratégica, e depois uma arma estratégica?
O bombardeio de instalações industriais por bombas convencionais pode acarretar uma contaminação do meio ambiente de conseqüências catastróficas
Quanto às armas biológicas, os progressos da engenharia genética atualmente permitem o seqüenciamento e a manipulação do genoma dos agentes biológicos patogênicos para o ser humano. As chamadas armas de quarta geração, cujo ajuste só pode se realizar em laboratórios de Estado, possuem ou possuirão efeitos que, num primeiro momento, dificilmente serão detectáveis, descritíveis e classificáveis. Não irão disseminar provavelmente nem a peste nem a varíola. Terão efeitos cada vez mais seletivos sobre determinadas funções, cerebrais em particular, efeitos cada vez mais sutis e, seríamos tentados a dizer, cada vez mais “naturais”. Poderão atingir grupos específicos, desativar genes bem precisos, desencadear fenômenos de morte celular fisiológicos (apoptose). Que tratado irá descrever esses efeitos, que convenção os irá proibir?
As armas químicas também contam com os avanços tecnológicos e com a porosidade das classificações. A militarização dos medicamentos, em seguida à militarização dos agentes biológicos, é um novo empréstimo forçado tomado da medicina. Atualmente, fala-se de “medicamento de assalto”, posto a serviço do contra-terrorismo, a meio caminho entre gás anestésico e gás de combate. As armas químicas de amanhã talvez já estejam escondidas nas páginas do dicionário Vidal de medicamentos. Apresentadas como não letais, possuem na verdade um poder mortífero em dois tempos: paralisar o inimigo antes de executá-lo.
Ataque químico indireto
Por ocasião da captura de reféns de outubro de 2002 em Moscou, que provocou pelo menos 117 mortos (mais os 41 terroristas chechenos), o problema essencial foi saber se o produto utilizado era, ou não, proscrito pela Convenção Internacional de Armas Químicas. Classificado na categoria halogênio ou opiáceo, tornava-se de emprego lícito e o drama do teatro da rua Dubrovka poderia ser assimilado a um imprevisto terapêutico, tendo os prescritores cometido um erro de posologia. Essas manobras tecnológicas e semânticas permitem apagar o patamar crítico de proscrição e passar de uma classificação binária dos sistemas de armamento (autorizados/proibidos) para uma espécie de continuum do terror. A mil léguas de qualquer forma de compaixão ou de humanidade, trata-se de substituir o sofrimento humano por proezas tecnológicas e os fatos por palavras. Seria o caso de retirar da categoria de armas convencionais as bombas artesanais cheias de pregos ou de “chumbinho” e admitir nessa mesma categoria as armas de microondas ou de feixes de partículas?
Além disso, o bombardeio por meio de bombas convencionais de instalações industriais pode acarretar uma contaminação (química, radiológica e biológica) do meio ambiente de conseqüências sanitárias catastróficas. O governo do presidente William Clinton programara, na década de 90, bombardear o reator nuclear norte-coreano de Yongbyon. No Iraque, durante a guerra do Golfo de 1991, a aviação aliada bombardeou as instalações de armamento nuclear de Tuwaitha, as de armamento biológico de Taji e as instalações químicas de Fallujah. Durante a guerra contra a Sérvia (1999), a Otan não hesitou em bombardear o complexo petroquímico de Pancevo, liberando produtos tão tóxicos quanto certos gases de combate.
Retórica da arma inteligente
A retórica da guerra inteligente esconde que a fronteira entre ataques “contra soldados” e ataques “contra cidades” é mal traçada e sinuosa
Essa confusão dos efeitos pode ser aproveitada para dissimular a utilização de armas não convencionais no âmbito de ataques preventivos. Ninguém poderá dizer se a contaminação observada está ligada à bomba lançada ou ao local bombardeado. Sobretudo se foi tomada a precaução de convencer a opinião pública internacional de que o Estado visado dispõe de numerosas armas não convencionais! Os grupos terroristas podem obter idêntico resultado ao fazer explodir uma carga explosiva clássica numa central nuclear, num laboratório protegido de biotecnologia (laboratório P4) ou numa instalação química industrial.
Para que serve, então, uma classificação de armas em convenções que são sistematicamente contornadas ou violadas? Aprontando toda uma gama de armas nucleares miniaturizadas e lançando o programa recente de defesa antimíssil balístico, os Estados Unidos contornam tanto o Tratado de Não-Proliferação Nuclear quanto o Tratado de Defesa Antibalística (o chamado Tratado ABM) de 1972. Opondo-se a todo e qualquer procedimento de verificação em seu território – como sugere a Convenção de 1972 sobre a proibição de armas bacteriológicas -, tornaram essa convenção inaplicável1. Outros países signatários dessa Convenção dão prosseguimento a programas de pesquisa ofensiva em matéria de armas biológicas sob a forma de “pesquisa defensiva”.
Outra retórica muito comum é a da arma inteligente que permite operar ataques cirúrgicos e tratar os objetivos, eliminando os efeitos adversos. Pode ser comparada a um bisturi elétrico cuja intensidade é regulada de modo a extirpar habilmente os tecidos patológicos sem lesar os tecidos sadios adjacentes. As guerras recentes nos ensinaram que a fronteira entre ataques “contra soldados” e ataques “contra cidades” é mal traçada e sinuosa. Não só a população civil não é poupada, mas pode ser alvo explícito. Durante as guerras da segunda metade do século 20, a porcentagem de vítimas civis passou de 10% para 90%. O bombardeio “convencional” de Dresden e o bombardeio “não convencional” de Hiroshima foram comparáveis em horror.
Ataque cirúrgico inviável
O embargo contra o Iraque custou mais vidas humanas que a bomba de Hiroshima, levando-se em conta as seqüelas médicas respectivas
A doutrina Mitchell2, em vigor desde a década de 30, faz dos ataques aéreos em massa a condição prévia de qualquer ataque militar norte-americano. Esses bombardeios aéreos estratégicos destroem antes de tudo as instalações civis e industriais, deixando intacto o potencial militar. As regras de compromisso da Otan impõem a prática de bombardeios de grande altitude (acima de 5 mil metros) para proteger os pilotos das defesas antiaéreas. A essa altura, é ilusório que se possa fazer visualmente a distinção entre civis e militares. O conceito “zero morte militar” está associado ao efeito “90% de vítimas civis”.
Durante a guerra contra a Sérvia, a Aliança reivindicou abertamente a pesquisa do “efeito Dresden”, ou seja, o esgotamento moral de um povo que vê serem bombardeados seus edifícios, suas pontes, seus hospitais, suas centrais elétricas, suas fábricas, suas refinarias de petróleo, suas centrais telefônicas, suas repetidoras de televisão. A distinção entre ataques “contra soldados” e ataques “contra cidades” foi apagada em proveito dos “objetivos militares legítimos”. Na noite de 22 para 23 de abril de 1999, a aviação da Otan tomou como alvo os estúdios da televisão nacional sérvia (RTS), situados no centro de Belgrado, matando 16 jornalistas em seu local de trabalho. A comunicação passava a fazer parte da definição de um “objetivo militar legítimo”.
Durante a guerra do Golfo de 1991, as reservas de água potável do Iraque foram visadas deliberadamente. Quanto às sanções econômicas, elas tomam como refém um povo inteiro e organizam suas carências, privando os mais desfavorecidos dos produtos de primeira necessidade, como alimentos e medicamentos. O embargo contra o Iraque fez com que perecessem mais seres humanos do que a bomba de Hiroshima, levando-se em conta as seqüelas médicas respectivas. Por todas essas razões, os médicos avaliam com muito ceticismo as noções de ataques cirúrgicos e de efeitos colaterais reduzidos.
Conseqüências das armas de alta tecnologia
Durante a guerra do Vietnã, as autoridades norte-americanas também garantiam a inocuidade das aspersões aéreas de desfolhantes para a população civil
O conceito ambíguo de “redução dos desgastes colaterais” está mais ligado à preservação do potencial econômico de um país do que à redução das perdas humanas entre sua população civil. Mais uma vez, trata-se muito mais de contorções semânticas e de uma manipulação da linguagem do que da cruel realidade dos fatos. É claro que os terroristas fazem a mesma coisa e não hesitam em atacar cegamente vítimas inocentes.
As armas de alta tecnologia são apresentadas como inofensivas para a população civil por serem dotadas de efeitos seletivos “contra soldados”: inibição dos sistemas de comunicação do inimigo graças às bombas de grafite ou às bombas eletromagnéticas, melhor penetração dos bunkers graças às armas nucleares miniaturizadas, melhor penetração nas blindagens de aço graças às munições de urânio empobrecido. Ora, a bomba de grafite, verdadeiro “dedo no interruptor” de um país, pode cortar a eletricidade dos hospitais e maternidades, ameaçando indiretamente a vida dos pacientes hospitalizados, como se viu em 1999. Ninguém pode dizer quais são as conseqüências para a saúde da inalação de partículas de grafite ou da exposição às partículas radioativas emanadas de mini-bombas nucleares ou de munições de urânio empobrecido. Bem poucas pessoas se preocupam com as conseqüências sanitárias, em particular com o risco dos efeitos oncogênicos, para a população civil das regiões atingidas.
Será que é preciso lembrar que, durante a guerra do Vietnã, as autoridades norte-americanas garantiam a inocuidade das aspersões aéreas de desfolhantes para a população civil? Por outro lado, a distinção entre efeito “antimaterial” e efeito “antipessoal” permanece bastante vaga para esse tipo de armamento. A título de exemplo, uma arma de microondas pode ser utilizada para neutralizar sistemas eletrônicos, mas pode servir também para fazer “cozinhar” seres humanos, dependendo de uma regulagem de intensidade.
Proliferação de formas de apocalipse
Os conflitos assimétricos vão proliferar enquanto os especialistas da engenharia genética e os físicos inventam novas formas de apocalipse
Finalmente, assistimos à passagem de uma doutrina defensiva, baseada na dissuasão, para uma doutrina ofensiva, sobretudo a partir de 11 de setembro de 2001. E, mais uma vez, médicos participaram, voluntariamente ou não, do esforço de guerra. A noção de direito de ingerência humanitária, com os lançamentos simultâneos de bombas e de víveres, mantém uma confusão que serve a interesses táticos.
O progresso científico permitiu a fabricação de armas de alta tecnologia. Pouco depois da descoberta da fissão nuclear, Frederic Joliot, Lew Kowarski e Hans Heinrich von Halban registraram uma patente que tem como título “Aperfeiçoamento de cargas explosivas”. Na verdade, a arma de fogo moderniza-se com uma regularidade chocante desde a batalha de Crécy3… O físico Edward Teller, artesão da bomba A e criador da bomba H, afirmava que a tecnologia seria capaz de salvar o mundo livre. Hoje em dia, os especialistas da engenharia genética rivalizam com os físicos para aperfeiçoar os sistemas de armamentos NRBC e inventar novas formas de apocalipse. Os conflitos assimétricos, portanto, vão proliferar e nenhum santuário nacional estará protegido. Nem a vacinação contra a varíola, nem o escudo antimíssil balístico poderão impedir kamikazes, armados de meios mais ou menos convencionais, de semear o terror em nossa sociedade.