A focalização das políticas sociais como “canto da sereia”
Quanto mais as políticas sociais são focalizadas nos pobres, menos essas políticas são capazes de prevenir e reduzir a pobreza
Já é tradição que, em momentos de crise, sobretudo em países subdesenvolvidos, ganhem força as vozes daqueles que defendem que os recursos captados dos mais ricos sejam direcionados pelo Estado aos mais pobres por meio de políticas sociais focalizadas em vez de a todos que precisem deles por meio de políticas sociais universais.
Quando se procura reduzir a pobreza e a desigualdade, por que não tributar os ricos e alocar os recursos apenas nos pobres, priorizando as políticas sujeitas a teste de meios? Como questionar uma redistribuição explícita como essa em favor dos mais vulneráveis?
Essa lógica funciona como o “canto da sereia”. É um “canto” porque atrai os países ao fornecer uma solução aparentemente simples e barata para a questão da pobreza. Mas é “da sereia” porque, se realizada indiscriminadamente, pode levar os países que se deixaram encantar para as profundezas da privação e da iniquidade.
Desde logo, é importante que se esclareça que não se busca questionar aqui a importância das políticas sociais focalizadas, notadamente a assistência social. Ela presta um papel fundamental ao funcionar como uma “rede de segurança” e garantir benefícios concebidos tendo em vista a realidade urgente e específica da pobreza.
O que se busca questionar aqui é a tentativa de generalizar a lógica da assistência social para outras áreas da política social que possuem uma natureza distinta, como é o caso das pensões por idade, invalidez, morte do provedor, enfermidade, acidente, desemprego, e maternidade e paternidade, dos abonos por filhos, dos serviços de cuidado e educação de crianças, dos serviços de cuidado de idosos e pessoas com algum tipo de limitação física ou mental, dos serviços de educação, dos serviços de saúde, dos serviços de habitação etc.
Quando essas políticas se estendem a mais pessoas e asseguram transferências de valor maior e serviços de qualidade mais elevada, elas podem contribuir de forma decisiva para prevenir a pobreza e, como tal, para tornar a assistência social aquilo que ela efetivamente deve ser, ou seja, um último recurso ou, ainda, a exceção, ao invés da regra.
Como em muitas outras dimensões da vida, a intervenção preventiva é sempre preferível à curativa. Mas como prevenir a pobreza se apenas os que já se encontram nessa situação possuem acesso à intervenção do Estado? Como evitar a privação quando as ações que existem são úteis apenas quando essa condição já está instalada? A vacina cumpre o seu objetivo se aplicada nos que ainda não tiveram a doença, mas que estão suscetíveis a ela por forças muito além do seu controle.
Já seria razão suficiente para que a ênfase nas políticas sociais universais fosse maior que nas políticas focalizadas o fato de que todos os indivíduos estão expostos a situações que podem reduzir a sua capacidade de atender às suas necessidades fundamentais ao longo da vida, como a tenra idade ou a idade avançada, uma enfermidade ou limitação, ou o desemprego. Em uma sociedade que tenha a solidariedade como um de seus fundamentos, todos são responsáveis por todos. E, nesse caso, a sociedade tem o dever de assistir os seus membros contra aquilo que pode ameaçar a sua dignidade, sem questionar quem esses membros são, o que eles fazem ou o que eles têm.
Mas pouca atenção se atribui a argumentos dessa natureza na era do “bang for the buck”, “value for money”, ou, ainda, da “eficiência na alocação de recursos”.
Por isso, procura-se aqui chamar a atenção para a existência do que ficou conhecido na literatura sobre política sociais como o “paradoxo da redistribuição”. Não se trata de uma ideia teórica abstrata, mas de um fato verificado na prática por meio da análise de experiências históricas concretas: quanto mais as políticas sociais são focalizadas nos pobres, menos essas políticas são capazes de prevenir e reduzir a pobreza.
De fato, países que possuem políticas sociais fortemente focalizadas possuem níveis de pobreza e desigualdade maiores que aqueles que colocaram em prática políticas mais universais. Como ilustração, tem-se os países nórdicos, de um lado, e os anglo-saxões, de outro. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, os dois grupos de países possuíam políticas sociais bastante semelhantes. Mas, a partir de então, eles seguiram caminhos diferentes. Os países anglo-saxões escolheram concentrar a intervenção do Estado nos mais pobres e os países nórdicos escolheram devotar a atenção do Estado a todos. A maior parte dos benefícios do primeiro grupo está sujeita a testes de meios, enquanto a maior parte dos benefícios do segundo grupo está disponível para todos que precisarem deles. Hoje, ao contrário do que se poderia esperar, os níveis de pobreza e de desigualdade nos países anglo-saxões é sensivelmente maior do que nos países nórdicos.
Como exemplo, a parcela da população com renda inferior a 60% da renda mediana é 18,2% no Reino Unido, 19,6% na Nova Zelândia, 19,7% no Canadá, 19,9% na Austrália e 24,5% nos Estados Unidos, mas apenas 11,5% na Islândia, 12,6% na Dinamarca e na Finlândia, 14,2% na Noruega e 16,7% na Suécia. Já o índice de Gini é 30,7 no caso canadense, 33 no australiano, 34,9 no neozelandês, 35,1 no britânico e 39,1 no norte-americano, mas apenas 25,7 no caso islandês, 25,9 no finlandês, 26,1 no dinamarquês, 26,2 no norueguês e 28,2 no sueco, segundo dados da OCDE.

Mas o que pode justificar o paradoxo da redistribuição?
O primeiro fator a ser considerado é que as políticas sociais são resultado de processos políticos e que, nesse contexto, as políticas sociais focalizadas raramente resistem às pressões no âmbito da chamada “politics of grievance”. Nesse caso, pode-se até ganhar algumas batalhas contra a pobreza, mas dificilmente se vencerá a guerra.
De fato, é evidente que, nos processos políticos que determinam o perfil das políticas públicas em cada sociedade, os mais ricos estão em melhores condições que os mais pobres para fazer prevalecer as suas preferências e que eles não hesitarão em questionar qualquer iniciativa que implique a eles muitos custos, mas poucos benefícios tangíveis.
Políticas sociais focalizadas tendem a reforçar as divisões que já existem na sociedade ao concentrar os custos em alguns grupos – os mais ricos, aqueles que mais pagam – e os benefícios em outros – os mais pobres, aqueles que mais recebem. Aqueles que pagam tendem a resistir à política e a usar o seu maior poder de pressão para enfraquecê-la ao longo do tempo. O resultado desse processo é que os mais ricos permanecem protegidos contra os riscos porque podem recorrer a outras formas de provisão, mas os mais pobres que dependem da assistência do Estado acabam recebendo transferências de valor cada vez menor e serviços de qualidade cada vez pior, que contribuem cada vez menos para que eles possam fazer frente a essas situações e ter a sua dignidade protegida.
Dito de outra forma, quando a prioridade do Estado são as políticas sociais focalizadas, é cada vez mais difícil mobilizar os esforços necessários para reduzir a pobreza em função das especificidades dos processos políticos que as determinam. Como consequência, essas políticas frequentemente se enfraquecem com o tempo e se transformam em “ações pobres para os pobres”. Os maiores prejudicados por esse processo são justamente os que estão em situação de maior vulnerabilidade.
É um desdobramento da divisão da sociedade entre pagadores e recebedores que os beneficiários das políticas sociais focalizadas sejam vítimas de estigma e preconceito. Esses beneficiários são frequentemente tratados como oportunistas do esforço alheio, que preferiram depender do Estado em vez de buscar o seu sustento e o sustento de seus dependentes por meio do próprio trabalho. Para evitar o julgamento e a condenação social associados aos benefícios, muitos acabam por renunciar ao seu direito.
De fato, o estigma e o preconceito associados às políticas sociais focalizadas são frequentemente mencionados entre os principais motivos para os níveis reduzidos de “take-up” dos benefícios, juntamente com o desconhecimento dos benefícios pelas pessoas, com as regras de acesso excessivamente complexas e de difícil compreensão por elas e dos processos demasiadamente burocráticos e custosos para solicitá-los.
Por sua vez, as políticas sociais universais primam por enfatizar menos as diferenças que existem na sociedade e mais aquilo que todos possuem em comum. Todos contribuem de acordo com as suas possibilidades e todos recebem de acordo com as suas necessidades. Em lugar de estabelecer uma proteção para ricos e outra para pobres, existe uma única proteção para todos. Ao incluir todos dentro de um mesmo sistema, essas políticas tendem a conquistar maior apoio para a sua manutenção e expansão, o que beneficiará os ricos, mas principalmente os pobres, já que eles terão acesso a transferências de valor maior e serviços de qualidade mais elevada do que se tivessem de defender sozinhos as suas preferências em processos políticos que são claramente desfavoráveis a eles.
Nesse caso, o estigma e o preconceito associados à política social diminuem, e mais pessoas estão dispostas a recorrer aos benefícios a que têm direito. Do ponto de vista delas, não é mais necessário escolher entre o respeito próprio e dos outros, de um lado, e o apoio do Estado diante das dificuldades a que estão sujeitos ao longo da vida, de outro.
O segundo fator a ser considerado quando se trata das políticas focalizadas é que essas políticas invariavelmente implicam o estabelecimento de critérios para separar aqueles que são elegíveis aos benefícios e aqueles que não são.
Alguém será responsável, portanto, por determinar quem é vulnerável o suficiente para receber o benefício e isso inevitavelmente envolverá um grau perigoso de discriminação e arbitrariedade. Não há regra infalível para determinar quais rendas ou propriedades devem ser analisados, qual o valor máximo dessas rendas e propriedades devem ser adotados, ou quais outros fatores relevantes devem ser considerados.
Dessa forma, sejam quais forem os critérios escolhidos, é bastante provável que pessoas em situação de privação acabem sendo excluídas. Pessoas com situações concretas muito semelhantes podem receber tratamentos muito diferentes se forem separadas entre elegíveis e não elegíveis pela linha que foi estabelecida. Pessoas próximas da linha e consideradas não elegíveis acabarão recebendo um tratamento muito semelhante ao de outras pessoas também não elegíveis, mas que estão longe da linha, mas um tratamento muito diferente de pessoas elegíveis, mas que também estão próximas da linha.
O terceiro fator a ser considerado ao se tratar das políticas sociais focalizadas é que o Estado também deverá contar com uma estrutura complexa para monitorar e avaliar a situação de cada solicitante e decidir sobre a concessão e manutenção dos benefícios.
Isso implica tempo e recursos financeiros e humanos que muitas vezes não estão disponíveis ou que estão disponíveis e poderiam ser melhor utilizados de outras formas.
Implica também que o Estado avance na invasão da vida privada das pessoas e no controle sobre elas, na medida em que precisará investigar ainda mais a fundo o que elas são, o que elas fazem e o que elas têm.
Ademais, problemas na gestão dos benefícios podem acabar excluindo pessoas que são elegíveis e incluindo pessoas que não atendem os critérios estabelecidos.
Também podem torná-lo mais suscetível a fraudes. Mais pessoas podem tentar usar de subterfúgios para driblar as regras de acesso e obter benefícios que, de outro modo, não poderiam receber.
E, finalmente, problemas na gestão dos benefícios podem permitir que eles sejam utilizados para fins clientelistas. O clientelismo é uma expressão de Estados patrimonialistas, em que benefícios são concedidos em troca de apoio aos grupos que entendem as instituições como a sua propriedade particular. Nesse caso, os benefícios podem ser propositalmente alocados nos grupos em situação de maior vulnerabilidade e que estão mais suscetíveis a oferecer seu apoio em troca de assistência em momentos de dificuldade. Cria-se uma relação perversa de dominação e subordinação, em que o sofrimento de muitos é explorado e usado para atender o desejo de poder de poucos.
É evidente que países subdesenvolvidos estão mais suscetíveis a esses riscos por possuírem Estados frágeis e uma realidade de pobreza amplamente disseminada e repleta de nuances.
Dessa forma, a focalização das políticas sociais não é uma panaceia. Estender a lógica da assistência social indiscriminadamente para todas as áreas da política social sob o argumento de alocar os recursos nos que mais precisam pode acabar tendo como resultado o agravamento da situação desses mesmos grupos.
Isso é particularmente relevante no Brasil atual. Sob o argumento de que não há dinheiro em função da crise e da condição de atraso do país e que, portanto, deve-se revisar qualquer movimento no sentido de universalização dos benefícios, corre-se o risco de destruir arranjos que com muito esforço têm sido construídos e que fazem a diferença na vida das pessoas, como é o caso da Previdência Social, do Sistema Único de Saúde e da Educação Básica e Superior. As dificuldades pelas quais esses arranjos passam no país não devem ser usados como justificativa para questionar a sua viabilidade e justificar medidas que podem destruí-los, mas para mobilizar esforços para fortalecê-los ainda mais.
Ao discutir a política social, é preciso estar sempre muito atento às especificidades das diferentes áreas que a compõem, aos seus determinantes e ao seu papel na construção de um país em que todos tenham a sua dignidade protegida e promovida. Não existem soluções simples para problemas complexos. E isso implica permanecer firme e resistir ao “canto da sereia” da focalização.
Paulo José Whitaker Wolf, pós-doutorando no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.