A fonte da contestação popular
Em uma Rússia arruinada e famélica em razão da Primeira Guerra Mundial, o Partido Bolchevique se alçou como a única força capaz de acompanhar a revolução social. A radicalidade de seus militantes foi ao encontro daquela das camadas populares, cuja instrução se tornou, portanto, uma prioridade
Éric Aunoble
Em 1917, após três anos de guerra, o entusiasmo patriótico dos soldados se voltou contra o Império Russo. Um deles confessou à sua enfermeira: “É que antes eu não sabia até que ponto os ricos viviam bem. [Na frente de combate], começamos a nos alojar em casas requisitadas e vi como ali tudo era bom; havia no chão e nas paredes todo tipo de coisa que eles possuem, […] coisas caras, bonitas e que não servem para nada. Hoje, eu viveria dessa maneira sem nenhum remorso”.1
O czar Nicolau II, comandante-chefe dos exércitos, aviltou sua função deixando que o místico Rasputin influenciasse a família imperial. O esforço econômico necessário para a guerra total pôs a nu as carências do Estado. Desde 1914, os preços mais que dobraram e as autoridades queriam confiscar as colheitas dos camponeses para abastecer tanto as cidades como a frente de combate.
Em todas as camadas da sociedade, ninguém mais defendia o regime quando as manifestações operárias de 8 de março de 1917 (27 de fevereiro pelo calendário ortodoxo) desandaram em greves e depois em insurreição na capital, Petrogrado. O czar abdicou. Naquele momento, o único órgão mais ou menos representativo do país era a Duma. Esse parlamento, eleito segundo regras iníquas em 1912, nomeou um governo provisório com maioria de “cadetes”, encarregado de “prosseguir na guerra até a vitória” e lançar ao mesmo tempo “as bases do direito, da igualdade e da liberdade”.2
Nem assim a contestação popular se calou. Com efeito, a desagregação e o descrédito do Estado forçaram a criação de novos organismos. Uma milícia popular substituiu a polícia que atirara contra o povo. Lembrança da revolução fracassada de 1905, um conselho dos delegados operários, o soviete, foi criado, devendo imediatamente se encarregar do abastecimento de Petrogrado. Ele tornou ilegítima toda autoridade e conclamou os soldados a “eleger sem demora representantes” em cada unidade militar.
Os sovietes se multiplicaram rapidamente por todo o país. Eram formados por militantes de diversas tendências, herdeiros de uma longa tradição revolucionária. Depois do fracasso dos ativistas da Vontade do Povo, executados após o atentado à bomba que matou o imperador Alexandre II em 1881, os revolucionários conseguiram se aliar aos pobres. Participaram de greves, ocupações de terras e, depois das sublevações de 1905, organizaram sindicatos e cooperativas. Em fevereiro de 1917, todos cantavam a Marselhesa e suas bandeiras ostentavam a frase “Viva a República democrática”. Não obstante, conforme o lema dos socialistas revolucionários (SR), os militantes pensavam: “Conquistarás teu direito lutando”.
Criaram assim a possibilidade de uma dissolução das instituições. Em Ekaterinoslav, uma delegação de operários exigiu do governador a libertação de militantes presos desde fevereiro. “Em resposta às nossas reivindicações, o governador declarou que não recebia notícias de Petrogrado havia três dias, mas que soltaria os prisioneiros e iríamos trabalhar juntos”, lembrou um participante. “Orlov lhe respondeu: ‘A exemplo da França, quando se furavam os olhos dos operários com a ponteira dos guarda-chuvas, saberemos o que é esse trabalho em comum’.”3 “Orlov”, o delegado que invocava a experiência da Comuna de Paris de 1871 como se a tivesse vivido, era um menchevique, membro da facção “moderada” do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Com moderados assim, compreende-se muito bem para onde foi a revolução…
O radicalismo dos militantes se chocava com o radicalismo crescente das camadas populares. A desconfiança em relação ao poder iniciou um processo sem precedentes de auto-organização. Segundo o jornalista francês Serge de Chessin, “cada classe social, cada ofício, cada grupo profissional ou político vai abrindo caminho violentamente, empurrando-se com risco de ser pisoteado para chegar na frente e apresentar suas reclamações. ‘Unam-se! Organizem-se!’ Esse apelo ecoa por toda a Rússia”.4
A igualdade civil, que o governo provisório reconheceu rapidamente para os antigos párias – mulheres e minorias nacionais do Império Russo –, foi imediatamente posta em prática. Entretanto, os graves riscos de um país que devia conjurar ao mesmo tempo o perigo externo e a ruína interna se decidiram em três lugares onde as tensões sociais se exacerbavam: a fábrica,5 o regimento e o campo.
Desde março, na fábrica de locomotivas de Cracóvia, exigia-se que as demissões só ocorressem “após avaliação feita pelos delegados do pessoal”. No fim de maio, uma “comissão de controle da produção” foi eleita por todos os funcionários. Em junho, o diretor ordenou aos chefes de oficina que “não dessem nenhuma informação nem mostrassem nenhum documento ou livro a tal comissão”. De nada adiantou. Em Kiev, um trabalhador se lembrou de que “os engenheiros e contramestres iam assumindo cada vez mais o papel de figurantes. […] Uma ‘orientação contrarrevolucionária’ era com frequência motivo suficiente para que a assembleia dos operários demitisse um chefe”.
No início de outubro, os soldados redigiram uma petição em mau vernáculo: “Nós exigimos ainda de vós Governo Provisório uma paz depressa se vós não pressionam camarada Kerensky então nós imediatamente jogamos fora nossos fuzis e deixaremos a frente de combate para vir na retaguarda vos esmagar vós a burguesia”.6 O socialista Alexander Kerensky havia sido nomeado primeiro-ministro em julho para dar garantias de radicalismo ao povo…
Em meados de outubro, a assembleia dos camponeses de uma aldeia da região de Petrogrado votou uma resolução que denunciava “uma guerra insensata […] no interesse de um pequeno grupo de capitalistas”. Além da ruína da economia, “essa situação ameaça, com o pior dos perigos, o Estado inteiro”. Afora uma “paz honesta e democrática”, os camponeses exigiam “o controle geral do Estado” sobre as terras, os capitais e a produção.7
Essas lutas aumentaram o poder dos sovietes dos representantes operários, camponeses e soldados. Flanco esquerdo que apoiava o governo provisório em fevereiro, eles se transformaram em seus ferrenhos adversários. De caráter social, a revolução contestava todas as figuras de autoridade: pais de família, funcionários públicos, industriais, proprietários de terras, oficiais…
Além de alguns milhares de latifundiários e capitalistas, naquele momento eram em primeiro lugar as classes instruídas que começavam a temer. Os óculos se transformaram, como os tailleurs, em símbolo do burguês infame. O intelectual perdeu seu papel “natural” de educador e diretor da consciência do povo. O escritor Ivan Bunin achava estar fazendo o bem deixando sua criada se exercitar na leitura em pedaços de manuscritos rasgados, mas foi tratado de “déspota” e de “filho da puta” por um soldado bêbado!8 Entusiasta em fevereiro, uma jovem música de Odessa não suportava mais os “camaradas” em novembro: “Vou me tornando cada vez mais de direita e talvez vire monarquista… sou agora uma ‘cadete’, eu, que há não muito tempo era uma SR”. Dois meses depois, ela era tratada como “uma rapariguinha judia” interessada em oficiais.9
Essa antipatia entre os intelectuais e o povo foi vivamente sentida e finamente analisada pelo poeta Alexander Blok. “Que imaginam, então? Que a revolução foi um idílio? Que o ato criador não destruiu nada em seu caminho? Que o povo era sábio como se imaginava? Que […] a desavença secular entre os ‘operários negros’ e os ‘mãos-brancas’, os ‘instruídos’ e os ‘ignorantes’, a intelligentsia e o povo iria se resolver ‘sem derramamento de sangue’ e ‘sem dor’?”10
Entre as pessoas instruídas que viam, aterrorizadas, um abismo social se abrir a seus pés estavam os responsáveis pelos partidos de esquerda. No governo, os SR justificavam o prosseguimento da guerra e pediam que o povo esperasse com paciência a solução das questões sociais e a convocação da Assembleia Constituinte. Sonhando em estabelecer pouco a pouco um modelo social ligado aos organismos operários, no quadro de uma república democrática, os mencheviques os apoiavam. O mais lúcido destes últimos, Júlio Martov, compreendia que o sucesso dos bolcheviques, a ala esquerda do POSDR, pressupunha sua capacidade de unir as camadas que, longe de toda sociologia “científica”, se consideravam proletariado: jovens operários sem experiência, pobretões dos campos, soldadesca.
Com efeito, o único partido que parecia romper com as instituições e aproximar-se do movimento popular era o Bolchevique, a ala esquerda da social-democracia. Lenin, seu líder, afirmava desde o mês de abril estar pronto para assumir o poder com o apoio dos sovietes. Tomando carona num movimento anarquista balbuciante,11 a pequena organização marxista de 5 mil membros convencia e recrutava entre os plebeus revoltados. Ela era a única força organizada a acompanhar, a politizar a subversão. Em suma, os bolcheviques se distinguiam por sua decisão de combater os poderes constituídos. Organizaram uma insurreição em Petrogrado em 7 de novembro (25 de outubro), dia da abertura do II Congresso Nacional dos Sovietes, onde eram majoritários.12
Arrebatados pela onda de contestação social, os bolcheviques se achavam diante de um dilema. Num Estado que se desagregava, deveriam promover a autogestão descentralizada dos sovietes nas fábricas e no campo, com risco de arruinar o país? Que fazer de uma Assembleia Constituinte finalmente eleita em dezembro, mas cuja maioria saíra de antigos partidos desacreditados? Como concluir a paz prometida a “parceiros” entre os quais o “aliado” principal, a França de Georges Clemenceau e Philippe Pétain, era tão hostil aos sovietes quanto o inimigo, a Alemanha de Guilherme II e Paul von Hindenburg?
Em desacordo com várias decisões de Lenin, Rosa Luxemburgo observa na prisão de Breslau: “A Insurreição de Outubro não salvou apenas a Revolução Russa, salvou também a honra do socialismo internacional”.13 O perigo do momento, com efeito, ia muito além da Rússia. A indignação fermentava em toda a Europa. Greves eclodiram na primavera: metalúrgicos na Alemanha, costureiras em Paris. No verão, marinheiros alemães protestaram, enquanto motins eram reprimidos no Exército francês. Em junho, o prefeito de Isère relatou que, “influenciados pela Revolução Russa, [os trabalhadores] já sonham com comitês de operários e soldados, e com a revolução social”.14 A Revolução Russa foi o pivô da “guerra civil europeia”15 que começava. Esse enfrentamento moldaria o rosto da Europa durante 25 anos, fazendo-a oscilar entre comunismo e fascismo. Seu desfecho veio a determinar igualmente a evolução do regime dos sovietes na Rússia, hesitante entre ditadura do proletariado e ditadura sobre o proletariado.
*Éric Aunoble é historiador e pesquisador na Universidade de Genebra. Autor de La Révolution russe, une histoire française. Lectures et représentations depuis 1917 [A Revolução Russa, uma história francesa. Leituras e representações desde 1917], La Fabrique, Paris, 2016.