A fratura exposta da democracia
A recente rejeição dos irlandeses ao Tratado de Lisboa não passa de um sintoma visível de um mal muito mais profundo: o distanciamento da União Européia dos cidadãos europeus. É por isso que, na maioria das vezes, os parlamentos nacionais afastaram a população das decisões, excluindo a possibilidade de referendos
Parece que a aprovação dos tratados europeus é regida por um teorema: quanto menos se conhece o conteúdo deles, mais se vota a seu favor, principalmente entre os parlamentares. E quanto mais eles são lidos e analisados, menos são aceitos. Os eleitores irlandeses acabam de demonstrar isso ao rejeitarem o Tratado de Lisboa, em 12 de junho, por uma maioria de 53,4%. O mesmo fenômeno ocorreu na França em 2005, durante a campanha do referendo de ratificação da Constituição Européia. Neste caso, os diversos artigos haviam sido debatidos e esmiuçados como nunca pelos franceses e o “não” ganhou com 55% dos votos. Inversamente, o parlamento nacional, cuja maioria dos membros – a julgar por suas intervenções públicas – tinha apenas uma idéia muito vaga do teor desse texto, pronunciava-se maciçamente pelo “sim”.
Esta polêmica em torno da ratificação do Tratado de Lisboa não passa de um sintoma visível de um mal muito mais profundo: a falta de legitimidade democrática da União Européia (UE). Mal este que é evocado apenas de maneira ocasional pelos responsáveis políticos dos partidos governistas, de todos os contornos e de todos os países, como se eles temessem que a exposição da menor rachadura pudesse provocar o desabamento do edifício no qual investiram tanto. Assim como um ouriço que põe para fora todos os seus espinhos para se defender, a recente declaração de princípios do Partido Socialista Francês conjura qualquer dissidência por antecipação, como se fosse uma força demoníaca: “O Partido Socialista é um partido europeu, que funciona na União Européia, a qual ele não apenas desejou, mas, em parte, concebeu e fundou”. Alguns raros dirigentes têm a língua mais solta, como Jean-Claude Juncker, Primeiro-Ministro de Luxemburgo e presidente do Eurogrupo, que declarou, em junho de 2006: “a Europa não passa por uma pane entre os dirigentes, mas entre os povos”.
Essa confissão surpreendente, mas lúcida, significa tamanha ruptura com o discurso estabelecido que os colegas de Juncker julgaram contraproducente comentá-la publicamente. Felizmente, os trabalhos de certos universitários e pesquisadores, incluindo alguns que são mais favoráveis ao projeto europeu existente, não compactuam com esse tipo de lei do silêncio. É difícil haver uma entidade mais pró UE que a Fundação Robert Schuman e, mesmo assim, ela foi responsável pela edição do livro L’État de l’Union [O Estado da União] , onde encontramos proposições que confirmam as de Juncker: “Nascida nos anos 1950, a construção européia é produto de uma proposta funcionalista, traduzida por um sistema político que deixa pouco espaço para o debate democrático. A convicção de agir para o bem dos povos não foi acompanhada por sua associação aos processos de decisão”. A afirmação é de Thierry Chopin, autor da obra e professor no Colégio da Europa, em Bruges. Para ele, é como se os cidadãos tivessem visto o trem blindado das elites européias passar sem serem convidados a subir a bordo, e até mesmo sem terem tido vontade de fazê-lo.
Mas as proposições de Chopin – identificação de “quem faz o quê” na União Européia; transparência e publicidade das reuniões do Conselho de Ministros; extensão dos domínios da co-decisão Parlamento-Conselho; divisão da iniciativa legislativa entre a Comissão, o Parlamento e os governos dos Estados-membros1 – não têm nada de particularmente radical. Não estão à altura dos desafios apontados na própria obra. E mesmo se elas fossem postas em ação, serviriam, na melhor das hipóteses, de calmante provisório para uma patologia cuja gravidade ultrapassa muito o perímetro do “triângulo institucional” Comissão-Conselho-Parlamento que compõe a UE.
E, falando das instituições, ainda há uma quarta para a qual é imperativo pensar uma constituição mais democrática: a Corte de Justiça das Comunidades Européias (CJCE), rebatizada de Corte de Justiça da União Européia (CJUE) pelo Tratado de Lisboa. Em uma brilhante contribuição à reflexão coletiva, Une Europe des élites? Réflexions sur la fracture démocratique de l’Union européenne [Uma Europa das elites? Reflexões sobre a fratura democrática da União Européia]Antoine Vauchez, do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS), explica como esse alto órgão jurisdicional atribuiu-se poderes desmensurados no funcionamento da UE a partir de um golpe de força que não suscitou qualquer reação na época.
Tudo remonta a dois decretos – Van Gend & Loos, de 5 fevereiro de 1963, e Costa/ENEL, de 15 de julho de 1964 – nos quais a Corte instaurou o “triângulo mágico” que seria o verdadeiro motor da integração européia: a primazia do direito procedente dos tratados sobre direitos dos Estados membros; o efeito direto das decisões; e o processo prejudicial2. A partir destes decretos, comenta Vauchez, desenvolve-se “uma verdadeira teoria judiciária da integração, que faz do direito e do juiz comunitário as ossaturas da própria política européia”. E que aparece, desde então, “como portadora de um verdadeiro ‘modelo político’ que liga estreitamente direito e política européia, juiz e integração”. Isso em total conivência da Comissão e do Parlamento Europeu.,
A Corte utiliza essas armas duvidosas para ditar o direito em geral e o direito social em particular. Assim, em dezembro de 2007, e em nome da liberdade de estabelecimento, ela deu razão à empresa finlandesa de embarcações Viking Line, que queria se deslocar para a Estônia para pagar salários estonianos, e não finlandeses. Da mesma forma, deu ganho de causa à queixa da sociedade letã Laval, que durante a construção de uma escola na Suécia pretendia pagar salários letões e não suecos. Enfim, em abril de 2008, com o decreto Rüffert, ela invalidou uma lei do estado alemão da Baixa Saxônia que obrigava empresas de serviços públicos a aplicar a convenção coletiva desse setor na outorga de mercados igualmente públicos.
Com a jurisprudência que criou, a Corte de Luxemburgo se comportou, portanto, como legisladora do dumping social dentro da UE, desprezando o direito trabalhista em cada Estado-membro. Temos de convir que não se trata de um papel político desprezível. Um dos méritos desses três decretos é o de lembrar que o conteúdo das decisões da comunidade européia não pode ser dissociado dos procedimentos utilizados para tomá-las. Observa-se, no entanto, que o “modelo pol&ia
cute;tico” europeu é fundado em uma estreita articulação, para não dizer integração, entre as disposições dos tratados3 e o conteúdo dos instrumentos jurídicos (decisões, normas e regulamentos) que os concretizam, assim como as instituições que os adotam.
Desse ponto de visa, a Corte é uma peça central do dispositivo da comunidade, já que permite tapar os eventuais “buracos” legislativos e aumentar seus próprios territórios de intervenção, como sistematicamente fez a Comissão Européia, utilizando em todas as direções a arma da concorrência. Seus decretos vão quase sempre no mesmo sentido: o da assimilação do “interesse europeu” às sacrossantas “liberdades fundamentais” de circulação dos capitais, das mercadorias, dos serviços e das pessoas – as únicas que merece esse qualificativo. Se, no lugar de produzir continuamente políticas neoliberais, uma outra forma de construção européia tivesse, por exemplo, tomado medidas de harmonização social ou fiscal, colocado as finanças a serviço do emprego e não o contrário, nada demonstra que ela sofreria com a mesma intensidade a “fratura democrática” que caracteriza sua atual configuração. Um outro “funcionalismo”, uma “Europa dos resultados”, mas com outros resultados, poderiam talvez conferir-lhe a legitimidade que lhe falta.
No desencanto com a UE misturam-se aspirações sociais frustradas ou ridicularizadas e o sentimento de confisco do poder de deliberação democrática. Uma das contribuições eruditas do livro L’Europe telle qu’elle se fait [A Europa tal como ela se faz] é particularmente esclarecedora a esse respeito. Ela trata do caso dos caçadores do pântano de Grande Brière Mottière, no litoral atlântico da França. O autor, Julian Mischi, membro do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica (Inra), mostra que os habitantes da Brière são, em sua maioria, assalariados das indústrias de Saint-Nazaire, e para os quais a caça, “indicador de solidariedade através das trocas é, em geral, praticada com um sentido mais recreativo que de consumo, e permite a continuidade de uma tradição de subsistência”.
Para os habitantes de Grande Brière Mottière, essa liberdade de ação conquistada desde a Revolução Francesa está diretamente ameaçada pelas normas européias sobre as datas de abertura da temporada de caça, decididas sem consultá-los, enquanto eles cuidaram do pântano “como bons pais de família”. Além disso, “os habitantes da área, sentindo que a Brière poderia ser chique demais para trabalhadores e que deveriam ir para os subúrbios proletarizados de Saint-Nazaire, temem ser despejados de seu território”.
O combate contra o front comum formado pela UE e os ecologistas urbanos oriundos da classe média e integrantes da Liga de Proteção dos Pássaros empresta um registro de classe: “Lutar contra as normas européias é não somente opor a nação nascida da Revolução à Europa anglo-saxônica, mas também o povo francês à elite bruxelense, a caça popular à Europa dos cleros.” O autor não trata os caçadores como “broncos” sedentos de sangue. Ele considera que, “relacionando o protesto anti-europeu às suas condições sociais e políticas que o provocam, trata-se de dar sentido à rejeição popular da construção européia, muito freqüentemente estigmatizada sob a etiqueta de ‘populismo’”.
Específico, o caso da Brière – onde nenhum funcionário de Bruxelas pôs os pés, a não ser em férias – é o emblema de um descolamento entre os lugares de poder europeus e os espaços afetados por suas decisões. “Se essa tendência se confirmar”, escrevem Olivier Costa e Paul Magnette em sua introdução a Une Europe des élites?, “a idéia de que a UE faz políticas públicas (policies), mas não política (politics), enquanto os Estados fazem política, mas cada vez menos políticas públicas estará corroborada”. Retomando essa dualidade policies/politics, o grande desafio da construção européia é injetar política, portanto conflito, na escala supranacional, e, simultaneamente, dar de volta poder à escala nacional.
Uma tarefa duplamente árdua, se não impossível no quadro dos tratados em vigor. Por um lado, porque as instituições já colocadas fora do alcance da intervenção direta ou indireta dos cidadãos (Comissão Européia, Corte de Luxemburgo e Banco Central Europeu) não são adeptas da teoria dos vasos comunicantes, não têm qualquer intenção de retroceder em sua parcela do poder e são apoiadas pela grande maioria dos países-membros.
Por outro, porque o poder europeu não se reivindica como “político” no sentido dado a este termo nas questões internas dos Estados. Entre estes últimos subsiste a noção de alternância fundada na clivagem tradicional entre a esquerda e a direita, mesmo se as políticas empreendidas por uma ou por outra forem muito próximas. A Comissão Européia é composta por pessoas advindas dos partidos social-democratas, liberais, democrata-cristãos e conservadores, e veste suas decisões colegiadas com uma roupagem “técnica”, em que o liberalismo econômico não é considerado como uma opção política, mas como um dado da natureza.
Se recordarmos que o Parlamento Europeu é co-gerido por suas duas formações dominantes – o Partido Socialista Europeu (PSE) e o Partido Popular Europeu (PPE), reunindo as diversas sensibilidades de direita – e que o Conselho Europeu toma suas decisões por unanimidade, fica difícil enxergar um modo de reencontrar, nesse nível institucional, as marcas nacionais. Ora, para Costa e Magnette, “nenhum espaço público pode, ao que parece, ser construído economizando o confronto e as crises que ele engendra. Nossas democracias nacionais não seriam formadas sem os grandes conflitos que opuseram os construtores do Estado central aos defensores das periferias, os guardiões da ordem moral aos promotores das liberdades públicas, os interesses das classes dominantes aos dos trabalhadores… Ainda hoje, nossas democracias vivem largamente da perpetuação desses conflitos estruturantes”. Mas poderíamos vislumbrar tais “conflitos estruturantes” na UE?
Na ausência de um espaço público europeu – cujo horizonte está cada vez mais recuado em função dos sucessivos alargamentos para novos países –, esses conflitos tomariam inevitavelmente a forma de confrontos entre Estados. Quem pode pensar que, com o que lhes resta de soberania, governos &l
dquo;de esquerda” minoritários – e ainda mais seus cidadãos – aceitariam ser colocados sob a autoridade de um executivo comunitário “de direita”? Ou o inverso. O que é aceito como espaço público nacional não é transportável para o nível supra-estatal, pelo menos em um prazo historicamente previsível. A despolitização induzida pela aparelhagem institucional é apenas aparente, já que ela camufla escolhas liberais. Mas ela serve de justificativa implícita aos consensos de fato, enquanto as reuniões solenes das cúpulas européias parecem selar compromissos entre Estados.
O dilema democrático acaba se resumindo assim: ou o necessário conflito político se instala nas instâncias da UE e ela vai pelos ares, ou ele fica confinado ao nível dos Estados e, na falta de elementos em seu benefício, transforma-se progressivamente em contestação ao bloco. Existe, teoricamente, uma terceira via, que Costa e Magnette apenas deixam registrada e que teria o apoio das elites por simplesmente reproduzir o status quo “Que a UE invente um modo de regulação perfeitamente apolítico, repousando inteiramente na deliberação de especialistas, juristas e representantes de interesses, sem suscitar a resistência dos lugares políticos historicamente construídos”.
Em uma obra cujo título flerta com Karl Marx e Friedrich Engels, L’Idéologie européenne [A Ideologia Européia] , Benjamin Landais, Aymeric Monville e Pierre Yaghlekdjian fazem o retrato destes “especialistas” que antecipam o “fim da história” no Velho Continente e a chegada de um “homem europeu” sem solo e sem classe: “Andando na corda bamba entre o falso e o nada, dramática homenagem do medíocre ao vício, o expert, o especialista, emerge de um monte de estatísticas, como de um mar onde o público jamais mergulhou e onde apenas ele terá ido recolher os corais inestimáveis, que justificam que se persiga a ordem das coisas. Porque a política ‘européia’ (euro forte, livre-comércio mundial, redução do poder dos Estados) quer ser defendida por especialistas, mas jamais julgada sobre seus resultados”. Os autores, que destacam sua filiação ao Partido Comunista, respondem ao dilema democrático reabilitando o Estado-nação como o instrumento pertinente para a intervenção dos cidadãos.
Tomando um exemplo preciso, eles criticam a reivindicação de “serviços públicos europeus” proposta por um arco de forças que vai do Partido Socialista aos movimentos altermundialistas: “Decretou-se, desde o princípio, que a mobilização social na França tem legitimidade reduzida, dependente do lugar de nosso país na UE e de uma expansão incerta desta luta para algum país-membro”. Para os autores de L’Idéologie européenne, o foco da esquerda deve ser outro: a constituição de uma Europa fundada na soberania de cada povo e na luta de classes, do trabalho versus capital.
*Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.