A geografia do poder: uma análise sociológica das eleições municipais de São Paulo
A distribuição geográfica dos votos demonstra como o espaço urbano é objeto de disputa não apenas física, mas simbólica e política. Diferentes projetos de cidade e sociedade se materializam nas escolhas eleitorais de cada região
As eleições municipais de São Paulo expõem muito mais que simples preferências eleitorais: revelam as profundas cicatrizes sociais que marcam a maior metrópole brasileira. O espaço urbano paulistano não apenas reflete as relações sociais, mas atua como um condicionante ativo dessas relações, moldando comportamentos políticos e reproduzindo desigualdades históricas (Santos 2009, p. 45).
Na região central, especificamente na Bela Vista e Efigênia, onde Boulos obteve respectivamente 47.210 e 36.751 votos, observa-se uma concentração significativa de capital cultural e social. A expressiva votação nestas áreas não é casual: reflete estruturas sociais que favorecem posicionamentos políticos mais progressistas, típicos de uma classe média intelectualizada com maior acesso a bens culturais.
Os índices significativos de votos nulos e brancos nestas zonas (9,7% e 7%) sugerem uma forma de protesto informado, uma manifestação de descontentamento que vai além da simples rejeição aos candidatos. Esta forma de protesto revela uma consciência crítica que questiona não apenas as opções eleitorais disponíveis, mas o próprio sistema político em sua totalidade.
A análise da Zona Leste, particularmente Mooca e Tatuapé, onde Nunes obteve 57.849 e 67.499 votos respectivamente, contra 27.030 e 46.056 de Boulos, exemplifica como valores conservadores historicamente estabelecidos podem se cristalizar em comportamentos eleitorais. A força do voto conservador nestas regiões reflete um paradoxo social: classes trabalhadoras frequentemente votando em projetos políticos que não necessariamente representam seus interesses econômicos.
O comportamento eleitoral na Vila Prudente e Vila Formosa demonstra como o desenvolvimento geográfico desigual impacta as escolhas políticas. A fragmentação do voto nestas regiões, combinada com altos índices de abstenção, sugere que a própria abstenção se configura como forma de protesto político em áreas historicamente negligenciadas pelo poder público.
Em Santana e Vila Maria, onde Boulos obteve 23.484 e 29.527 votos respectivamente, contra 45.742 de Nunes em Santana, observa-se um fenômeno típico das metrópoles contemporâneas: espaços geograficamente próximos, mas socialmente distantes, onde diferentes classes sociais desenvolvem visões políticas distintamente opostas.
A performance eleitoral em Pinheiros, onde Boulos superou Nunes por 47.843 a 31.859 votos, exemplifica como preferências políticas progressistas podem funcionar como marcadores de distinção social. O alinhamento desta região com pautas progressistas reflete não apenas escolhas políticas, mas toda uma forma de vida e visão de mundo associada a classes médias intelectualizadas.
Na região de Santo Amaro e Indianópolis, a votação de Boulos (35.243 em Indianópolis) demonstra como a integração social parcial e contraditória se reflete no comportamento eleitoral. Os contrastes sociais nestas regiões produzem padrões de votação que espelham a própria fragmentação social da cidade.
A situação em Capela e Parelheiros, onde se observa forte domínio de Nunes, exemplifica como a precariedade dos serviços públicos favorece discursos pragmáticos em detrimento de propostas estruturais de transformação social. Nestas regiões, a urgência das necessidades imediatas frequentemente sobrepõe-se a projetos políticos de longo prazo.
No Itaim Paulista, onde Nunes obteve 63.153 votos contra 31.503 de Boulos, e no JD Helena, com 68.853 para Nunes contra 48.297 para Boulos, observa-se como uma democracia formal não necessariamente resulta em representação efetiva das classes populares. O voto, aqui, parece mais uma resposta a promessas imediatas que uma adesão a projetos políticos estruturantes.
Em Guaianazes, onde Nunes recebeu 51.905 votos contra 20.854 de Boulos, e São Mateus, com 57.660 para Nunes e 40.263 para Boulos, manifesta-se como a precariedade da vida urbana condiciona o comportamento político dos eleitores. A espoliação urbana, característica destas regiões, cria um terreno fértil para discursos políticos que prometem soluções rápidas para problemas crônicos.
O caso do Rio Pequeno, onde Nunes obteve 47.839 votos contra 31.101 de Boulos, ilustra as complexidades de regiões de fronteira urbana, onde diferentes classes sociais e suas respectivas visões políticas se encontram e conflitam. Estas zonas de transição frequentemente reproduzem, em escala local, as contradições da metrópole como um todo.
A situação do Grajaú, com 71.088 votos para Nunes contra 31.992 para Boulos, e Parelheiros, com 73.709 contra 29.709, exemplifica como a precariedade socioeconômica favorece discursos políticos imediatistas em detrimento de propostas estruturais. Nestas regiões, a urgência do cotidiano frequentemente obscurece a possibilidade de transformações mais profundas.
Em Vila Sabrina, onde Nunes obteve 49.360 votos contra 32.406 de Boulos, e Lauzane, com 59.990 para Nunes e 32.406 para Boulos, observa-se como a precariedade urbanística se traduz em comportamento eleitoral conservador. A “cidade ilegal”, com suas carências e irregularidades, tende a favorecer discursos de ordem e continuidade.
Os altos índices de abstenção e votos nulos/brancos (chegando a 9% em algumas zonas) revelam as contradições de uma democracia formal que convive com diferentes formas de violência e exclusão social. Este fenômeno atravessa diferentes classes sociais, ainda que com motivações distintas.
O padrão de votação nas periferias, onde Nunes consistentemente supera Boulos, reflete uma formação social contraditória onde o atraso e o moderno se combinam de formas complexas. Esta contradição se manifesta no próprio comportamento eleitoral, que frequentemente oscila entre o conservadorismo e demandas por transformação social.
A concentração de votos de Boulos em áreas mais centrais e de maior poder aquisitivo demonstra um dos paradoxos da política contemporânea: um progressismo que encontra maior ressonância justamente entre as classes mais privilegiadas, enquanto encontra resistência entre aqueles que mais se beneficiariam de suas propostas.
A dificuldade de Boulos em penetrar nas periferias ilustra um dos principais dilemas da política progressista contemporânea: como articular demandas materiais imediatas com propostas de transformação estrutural em um projeto político coerente e atraente para as classes populares.
Em todas as regiões analisadas, os índices significativos de abstenção e votos nulos/brancos (variando de 5% a 9%) sugerem um descrédito generalizado nas instituições democráticas que atravessa diferentes classes sociais. Este fenômeno indica uma crise de representatividade que vai além das preferências partidárias.
O comportamento eleitoral nas áreas mais empobrecidas, onde Nunes predomina, reflete como a precariedade social favorece discursos políticos que prometem soluções imediatas para problemas estruturais. A gestão da pobreza, mais que sua superação, torna-se o horizonte político nestas regiões.
A distribuição geográfica dos votos demonstra como o espaço urbano é objeto de disputa não apenas física, mas simbólica e política. Diferentes projetos de cidade e sociedade se materializam nas escolhas eleitorais de cada região.
A análise do comportamento eleitoral em São Paulo ganha uma nova dimensão quando consideramos o papel do que Paolo Demuru (2024) denomina “políticas do encanto”. O desempenho expressivo de Nunes nas periferias – como evidenciado pelos 71.088 votos no Grajaú contra 31.992 de Boulos, ou os 73.709 votos em Parelheiros contra 29.709 de Boulos – não pode ser explicado apenas por fatores socioeconômicos ou pela precariedade urbana. Existe um elemento fundamental de encantamento político que a esquerda tradicionalmente tem negligenciado em favor de um discurso excessivamente racionalista e técnico.
O padrão de votação observado, especialmente nas áreas periféricas onde Nunes manteve ampla vantagem, sugere que a capacidade de “sonhar” e criar narrativas envolventes tem sido monopolizada por discursos mais conservadores. Enquanto Boulos apresenta números, estatísticas e projetos tecnicamente embasados – como demonstrado por sua maior penetração em áreas de maior escolaridade como Pinheiros (47.843 votos contra 31.859 de Nunes) – falta ao discurso progressista o elemento de encantamento que poderia ressoar mais profundamente com o eleitorado periférico.
A superação desse padrão eleitoral requer mais que apenas dados e argumentos racionais. Como sugere Demuru, é necessário desenvolver uma narrativa que combine sonho e concretude, que seja capaz de encantar sem abandonar o compromisso com a verdade. Isso é particularmente relevante quando observamos os altos índices de abstenção e votos nulos/brancos (chegando a 9% em algumas zonas), que podem indicar não apenas descrença nas instituições, mas também um desencantamento com as narrativas políticas tradicionais da esquerda.
Erik Chiconelli Gomes é Pós-Doutorando – FDUSP. Doutor e Mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP). Bacharel em Ciências Sociais, Direito e História (USP). Coordenador Acadêmico e do Grupo de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).
Referências Bibliográficas
Bourdieu, Pierre. 2007. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Edusp.
Caldeira, Teresa. 2000. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34.
Demuru, Paolo. 2024. “Políticas do Encanto: Extrema Direita e Fantasias de Conspiração.” São Paulo: Elefante.
Harvey, David. 2005. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume.
Kowarick, Lúcio. 1979. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Maricato, Ermínia. 2015. Para Entender a Crise Urbana. São Paulo: Expressão Popular.
Santos, Milton. 2009. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Edusp.
Souza, Felipe. 2024. “Por que é tão difícil convencer quem acredita em teoria da conspiração? Professor italiano analisa ‘política do encanto’ da direita radical.” BBC News Brasil, 28 de janeiro de 2024. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c20njj712y0o.