A grande oportunidade de Obama
O estado desastroso da economia oferece ao presidente uma chance de ir além da recuperação – abrindo caminho para uma sociedade mais igualitária e uma nova hegemonia das idéias progressistas. Mas para tanto é preciso ter coragem, projetos e estratégiaRobert Kuttner
A história entregou a Barack Obama a maior crise econômica desde a que Franklin D. Roosevelt enfrentou. Assim como em 1933, a crise é resultado direto da ideologia do livre mercado e da desregulamentação conservadora, que mais uma vez levaram a desastres. Isto cria uma oportunidade secular para que Obama reinstaure a hegemonia do pensamento progressista nos EUA, com o Estado adquirindo um papel bem mais ativo na economia – não somente para sua recuperação, mas para permitir o surgimento de uma sociedade mais igualitária e segura. No entanto, esta oportunidade significa também um risco enorme de fracasso, que poderia ser visto como a falência dos governos à esquerda. Significaria a volta do Partido Republicano e da ideologia conservadora.
O sucesso exige ação firme e imediata. Antes de tudo, Obama precisa tirar a economia do perigo de depressão. Somente se enfrentar este primeiro desafio e abrir caminho para a recuperação, ele conquistará o capital político necessário para vencer outros embates – a reforma do sistema de saúde, que está à beira do colapso, os sistemas de aposentadoria e a substituição paulatina das fontes de energia .
Se Obama usar ativamente o governo para nos livrar de uma depressão, ele irá colher imensos benefícios políticos, econômicos e ideológicos. Apresentando uma economia em recuperação e oferecendo ajuda prática aos atingidos pela crise, ele poderia consolidar sua maioria no Congresso em 2010, como fez Roosevelt em 1934 – em vez de sucumbir às derrotas nas eleições legislativas de meio-mandato, que costumam caracterizar os novos novos presidentes. Além disso, se fizer fortes investimentos anti-depressão para reconstruir um governo firme, Obama poderá restabelecer o elo entre o contribuinte e a valorização dos serviços públicos. Estas conquistas econômicas, narradas por um presidente eloqüente, podem criar uma revolução ideológica. Uma forma administrada de capitalismo poderia tornar-se, mais uma vez, a filosofia majoritária. Isto, em troca, daria a Obama a credibilidade para conseguir reformas que são ainda mais estruturais, como a energia limpa e o serviço de saúde universal.
Lincoln declarou, “Com sentimento público nada pode falhar; sem ele, nada pode dar certo”. Muito do que é preciso fazer com urgência permanece bem à frente do que é aceito pelo pensamento médio. O presidente precisará expor o que é a crise para mudar a opinião pública, a ponto de que convencê-la a apoiar amplas medidas de emergência. Em uma crise econômica profunda, ampliar os gastos – algo impensável seis meses atrás – parece de repente adequado. Mas trazer à tona esta mudança requer uma transformação no tipo de liderança presidencial.
O estímulo econômico produzido por corte de impostos de US$100 bilhões é de apenas US$125 bilhões. Enquanto isso, US$100 bilhões investidos em infra-estrutura têm efeitos muito mais potentes: de US$350 bilhões
O novo governo enfrenta uma série de escolhas drásticas. Quanto dinheiro pode ser gasto no plano de estímulo inicial? Quanto disto deveria vir na forma de redução de impostos, em vez de investimentos públicos? Até que ponto os gastos públicos podem ser financiados pelo déficit? Qual o limite para o aumento permanente em gastos públicos? Quando devem começar as reformas mais profundas, como a do serviço de saúde? As respostas de Obama a estas questões não somente determinarão quando uma recuperação econômica se tornará possível, mas também quando ele se tornará um presidente verdadeiramente transformador.
O consenso emergente pede um estímulo de 500 a 700 bilhões de dólares. A soma parece imensa — cerca de 4% do Produto Interno Bruto. Mas as previsões de hoje projetam um declínio do PIB maior do que estes números. No lugar destes riscos alarmantes, os republicanos, juntos com alguns democratas mais conservadores, continuam se opondo aos grandes gastos que produzem déficit. Em novembro, o líder da dos republicanos na Câmara, John Boehner declarou: “Estamos em tempos econômicos dificílimos… mais gastos para Washington não é uma resposta”. O Congresso somente será encorajado a investir na escalas adequada se Obama estiver disposto a explicar suas metas e construir um amplo apoio popular.
Desde 4 de novembro, a mídia tem comparado a possível resposta à crise ao New Deal de Roosevelt. Mas o New Deal nunca curou a depressão. No fim dos anos 30, os déficits do governo Roosevelt eram cerca de 5% a 6% do PIB e ele retardou sua própria recuperação ao perseguir o equilíbrio orçamentário, em 1937. Foi necessária uma intervenção estatal mais heróica – a da Segunda Guerra Mundial – para finalmente vencer a depressão, por meio de investimentos públicos que causaram déficits enormes, equivalentes a 30% do PIB.
Desta vez não será necessária uma mobilização de emergência semelhante (espera-se…), mas é bem provável que precisemos de gastos que resultem em déficit de 10% do PIB – ou US$ 1,4 trilhões por ano, durante dois anos. É melhor errar a conta para mais do que para menos – ou Obama, assim como Hoover, vai se ver correndo atrás da depressão, ladeira abaixo.
Obama precisa colocar em prática certos cortes de impostos, até para manter suas promessas. Durante a campanha, ele acenou à classe média com deduções de US$ 200 bilhões ao ano. Mas de que adianta, para alguém que perdeu o emprego, um abatimento fiscal de mil dólares? A parte principal dos programas de estímulo deve ser o gasto público. O economista Peter Morici calcula que o estímulo econômico produzido por corte de impostos de US$100 bilhões é de apenas US$125 bilhões. Enquanto isso, US$100 bilhões investidos em infra-estrutura têm efeitos muito mais potentes: de US$350 bilhões. Em uma recessão que se aprofunda, os gastos públicos trazem ao mesmo tempo mais estímulos econômicos e mais benefícios políticos. Os cidadãos voltam a experimentar os benéficos da ação governo, e não apenas os ganhos negativos do corte de impostos. A direita entendeu isso melhor do que a centro-esquerda – e é por isso que o ultraconservador Bill Kristol exortou os republicanos a se oporem “até o fim” ao plano de saúde lançado por Clinton.
As carências em infra-estrutura são estimadas em US$1,6 trilhões. Realizar estes investimentos básicos torna a economia mais produtiva, oferece empregos não-exportáveis à classe média e, ao longo do tempo, vai criando condições para uma economia de energia limpa
Como aperitivo, Washington deveria repor as perdas crescentes nos orçamentos das localidades e Estados, algo que pode facilmente exceder os US$100 bilhões em 2009. Em uma recessão, cada corte em algum serviço público, cada demissão de um funcionário é desnecessária e perversa. As carências em infra-estrutura são estimadas em US$1,6 trilhões pela Sociedade Americana de Engenheiros Civis. Realizar estes investimentos básicos torna a economia mais produtiva, oferece empregos não-exportáveis à classe média e, ao longo do tempo, vai criando condições para uma economia de energia limpa. Tudo pode começar como um “estímulo” de emergência, mas a expansão dos gastos públicos precisa ser vista como um projeto de oito anos, para restaurar efetivamente o governo e valorizar seu papel na economia.
Durante a pior fase da crise econômica, déficits públicos anuais de 10% do PIB podem elevar a dívida do Estado dos atuais 40% do PIB para 60%. Isso parece enorme mas é modesto, comparado a padrões históricos e internacionais. Após a Segunda Guerra Mundial, a dívida pública esteve acima dos 110% do PIB. Mas ela recapitalizou a indústria norte-americana, tornou os EUA líderes mundiais em ciência e tecnologia, reaproveitou e reempregou uma geração de trabalhadores norte-americanos. Ou seja, aquela dívida virtuosa catalisou um boom de 25 anos no pós-guerra, construído com crescimento real e não puramente financeiro. Foi também um período em que a distribuição da renda tornou-se realmente mais igualitária. Por volta dos anos 70, a dívida da guerra estava paga: sob o governo de Carter, a relação entre dívida pública e PIB caiu a 26%. Após 2010, uma vez que o crescimento tenha sido retomado, a dívida voltará a cair, em relação ao PIB.
Após uma recuperação inicial, a maior parte dos novos gastos públicos deverá ser paga através de uma reforma fiscal. Exigir impostos dos milionários e gastar o dinheiro em projetos públicos é um ato estimulante – até mesmo, se for neutro em relação à dívida pública, porque todo o dinheiro será gasto e gasto no país. A Receita Fiscal norte-americana (Internal Revenue Service) estima em pelo menos US$300 bilhões o volume de impostos que é sonegado, e seria arrecadável. Outros US$100 a US$200 bilhões por ano podem ser coletados através de um Tributo Tobim sobre transações cambiais de curto prazo, o que seria uma ótima política. Elevar as alíquotas de impostos sobre os mais ricos pode produzir outros US$ 200 bilhões, dos quais somente uma parte deveria irpara reduções fiscais às camadas médias e baixas. O ganho total de receita bruta: cerca de US$ 600 bilhões.
Recapitalizar os bancos, reabrir o fluxo de créditos e prevenir uma imensa espiral de execução de hipotecas é algo que não pode esperar. Estas decisões, assim como o estímulo econômico, precisam ser adotadas nos primeiros seis meses de governo. Caso contrário, um sistema financeiro desequilibrado vai continuar levando o resto da economia abaixo.
Nas negociações com a indústria automobilística, Obama deve exigir que ela passe a produzir, a partir de 2010, carros limpos e com eficiência energética. A enorme transferência de recursos públicos dá ao governo o poder de não exigir nada menos do que isso
Para frear a queda nos preços imobiliários, o governo precisa refinanciar as hipotecas afetadas diretamente, ao invés de contar com o refinanciamento voluntário dos bancos. Ao reforçar o sistema financeiro com fundos públicos, o governo deveria começar a agir como um proprietário, colocando representantes públicos nos conselhos que tomam decisões e, se necessário, substituindo executivos-chefes. Se os bancos privados estiverem muito traumatizados para retomar os empréstimos, o governo precisa também nacionalizar um banco ou dois. É algo muito menos radical do que parece. A corporação federal dos seguro de depósito (Federal Deposit Insurance Corporation) faz exatamente isso quando se apodera de um banco falido, e na maioria dos casos opera o banco muito mais eficientemente que seus antigos gerentes.
Quando falamos da indústria automobilística, Obama e os democratas estão certos em insistir em um plano para restruturá-la, antes de dar aos fabricantes de carro mais do que um socorro de emergência. Ao invés de esperar passivamente pelo plano de Detroit, o novo governo deveria se engajar no planejamento. Em 1941-1942, toda a indústria automobilística passou a produzir tanques e aviões no lugar de carros para civis. Como parte das negociações de Obama, os fabricantes devem passar em 2009-2010 a produzir carros limpos e com eficiência energética. A enorme transferência de recursos públicos dá ao governo o poder de não exigir nada menos do que isso.
Obama deve esperar um ano para lançar uma reforma geral na saúde . Expandir os gastos no cuidado com crianças e aumentar gastos com saúde pública devem ser parte do estímulo inicial. Mas refazer todo o sistema de saúde é o trabalho mais difícil de todos. Se Obama fizer isso de má forma, só vai acrescentar custos a um sistema já ineficiente, aumentando pressões para diminuir serviços afim de amenizar o aumento de custos. É bem melhor esperar, até que tenha constituído capital político e apoio popular para fazer o certo.
Assim como o sistema de saúde, o sistema privado de aposentadorias está entrando em colapso. A economista Teresa Ghilarducci argumenta que é hora de declarar fracassada a experiência do 410K [1] e criar pensões universais e confiáveis, financiadas por fundos reais de capital, como uma s