A guerra da raposa
A disputa em torno da demarcação do território ao norte de Roraima vai muito além de 18 mil índios e seis produtores de arroz: trata-se de decidir os rumos da Amazônia. Devemos olhar para essa região como um espaço a ser explorado a qualquer custo ou é possível termos um desenvolvimento sustentável, plural e democrático
A escultura de uma mão poderosa erguendo um mapa do Brasil no coração da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol: foi essa a maneira que os índios encontraram para demonstrar seu pertencimento ao povo brasileiro e o agradecimento pela homologação da sua morada. O decreto de 15 de abril de 2005, assinado pelo presidente Lula, reconhecia, por fim, uma luta de mais de 20 anos pela titulação daquela área.
O Brasil vem admitindo o direito das comunidades indígenas sobre suas terras desde a época colonial. A maioria das demarcações foi bem aceita pelas populações envolvidas e protege adequadamente a diversidade etno-cultural do país. Porém, a homologação da área de Raposa-Serra do Sol tornou-se o processo mais polêmico desde que nosso território fazia parte de Portugal.
Para podermos compreender a razão da controvérsia, devemos perceber que a discussão não é sobre um processo administrativo ordinário de homologação de terras, que ocorre cotidianamente no Ministério da Justiça, mas sobre um confronto profundo de visões de mundo e aspirações para o nosso país. O caso de Raposa consegue sintetizar uma série de contradições e desafios com os quais o Brasil – e os brasileiros – terão de lidar cada vez mais, ao menos nas próximas décadas.
Interesses conservadores
A disputa de narrativas sobre o significado da Amazônia para o Brasil e para nossa relação com outros países está claramente colocada: devemos olhar para essa região como um espaço a ser explorado a qualquer custo, reproduzindo o modelo de desenvolvimento que, ao longo dos séculos XIX e XX, deu aos países do chamado Primeiro Mundo a liderança econômica mundial? Ou é possível aproveitarmos a vantagem comparativa de possuirmos uma região com tamanha riqueza biocultural para realizarmos um desenvolvimento sustentável, plural e democrático?
A mobilização de tantos interesses conservadores para enfrentar a homologação de Raposa não deixa dúvida de que é sobre isso que estamos debatendo, e não sobre um pedaço de terra que é menor que algumas fazendas brasileiras. A oposição ao ato do presidente da República conseguiu reunir publicamente, pela primeira vez desde que esses interesses foram derrotados pela democracia nos 1980, a ala conservadora do exército e as oligarquias rurais do país.
É importante que nos situemos sobre a história da questão indígena no Brasil – com as peculiaridades do caso de Raposa –,
para que não reste dúvida do vínculo que esse tema tem com o projeto que queremos para a Amazônia. A relação do colonizador português com as populações que aqui se encontravam sempre foi marcada pela ambigüidade. Sérgio Buarque de Holanda ressalta que “é curioso notar como algumas características ordinariamente atribuídas aos nossos indígenas e que os fazem menos compatíveis com a condição servil – sua ‘ociosidade’, sua aversão a todo esforço disciplinado, sua ‘intemperança’, seu gosto acentuado por atividades antes predatórias do que produtivas – ajustam-se de forma bem precisa aos tradicionais padrões de vida das classes nobres”.
Essa ambigüidade histórica está misturada às terras indígenas. Assim, se é admitida a forma violenta como se deu a ocupação do Brasil, um reconhecimento de direitos dos índios a suas terras existe desde cedo de maneira formal, ainda durante a Colônia. Notemos o exemplo de uma carta régia assinada pelo rei Felipe III em 1611: “Os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quizerem fazer”. Desde então, o direito brasileiro desenvolveu um instituto jurídico muito particular chamado indigenato, que sempre garantiu aos índios algum direito sobre suas terras. Essa construção jurídica atingiu seu ponto alto com a Constituição Federal de 19881, em que foram reconhecidas como “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Esse texto significa que a sociedade brasileira, por meio de seu pacto político maior, que é a Constituição, resolveu que uma parcela significativa de seu território seria destinada à existência digna das diversas populações que constituem o povo brasileiro. Os índios têm a posse dessas terras, mas a propriedade é da União. As áreas são, por definição legal, públicas e inalienáveis, ou seja, estão fora do mercado e da exploração capitalista. Esta é uma opção absolutamente coerente com a democracia pluralista que se desenha na nossa Constituição e com o amadurecimento do Brasil, que se reconhece nos descendentes dos povos colonizadores, mas também nos de suas populações tradicionais e nos imigrantes de todas as partes.
Analisando o caso de Raposa sob esse prisma, percebemos que se trata de uma área composta por cinco etnias distintas, com relações de trocas e de parentesco estabelecidas há séculos, o que faz com que o território demarcado, em sua integridade, seja claramente aquele necessário para a manutenção dessas culturas.
E vale a pena olhar mais de perto para essas culturas para entender o real valor do que está em jogo aqui. Para algumas etnias, o Monte Roraima (uma das “ilhas” a serem excluídas da área, segundo algumas das propostas dos que se opõem à demarcação contínua) é o local onde foi criado o universo. Recentemente, em palestra na Ordem dos Advogados do Brasil, a senadora Marina Silva chamou a atenção para o fato de que nos acostumamos a conviver – desde as Cruzadas – com guerras e disputas entre povos por lugares sagrados, como Jerusalém. Como, então, deixamos de atribuir o devido valor às contestações semelhantes em nosso próprio país? Por que deixamos em segundo plano esse aspecto da disputa, esquecendo uma cosmogonia brasileira, com marcos geográficos (celestiais) próprios?
Constituição da identidade nacional
O sagrado que envolve o Monte Roraima, por exemplo, faz parte das crenças dos macuxis, cuja mitologia inspirou Mário de Andrade a escrever um dos romances constituintes de nossa identidade nacional: Macunaíma. A brasilidade, figurada na busca pelo muiraquit&atil
de;, nasce no norte do país e principia com os índios. Ou seja, não é possível que se coloque em dúvida a importância da preservação dessas culturas para a consolidação da nossa soberania. Pois soberania, é importante que se diga, vai muito além da guarda física das fronteiras: para que ela exista, é necessária a consolidação de uma cultura brasileira, formada pelo pluralismo étnico, em que os nossos 220 povos indígenas sejam donos do seu destino, e não cidadãos exilados de suas terras, com seus direitos negados.
Aliás, mesmo para aqueles que enxergam na proteção das fronteiras o ponto central da manutenção da soberania, os macuxis tiveram um papel fundamental. Se hoje aquela região fica em território brasileiro, é porque assim decidiu, em 1903, o rei da Itália, árbitro do conflito entre Brasil e a Grã-Bretanha sobre a fronteira com a Guiana. O argumento que o jurista Joaquim Nabuco utilizou a favor do Brasil foi precisamente a presença de índios macuxis na área, que falavam português e tinham laços com a sociedade brasileira.
Não é apenas por razões históricas que devemos defender a existência de terras indígenas nas fronteiras nacionais. Como lembrado acima, essas áreas são públicas, de propriedade da União. Isso permitiu que em 2002 fosse editado o Decreto 4.412, que garante o livre ingresso das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas. Aliás, há hoje pelotões do Exército ativos em Raposa. É evidente que isso não seria possível em uma terra particular, que deveria ser desapropriada se o Estado entendesse como necessária a presença das Forças Armadas lá. Nossas fronteiras estão muito mais bem protegidas como terras públicas e inalienáveis, e isso é mais evidente no caso das terras indígenas do que em terras que podem ser adquiridas por qualquer particular.
Apropriação pública ou privada
Por isso mesmo, é fundamental lembrar que o confronto é entre a apropriação pública e a apropriação privada daquele território. Os que contestam a demarcação são um grupo de arrozeiros (eram 13, hoje são seis) que chegaram à região nos anos 1990 e permaneceram ilegalmente nas terras mesmo depois de terem sido indenizados pelo Governo Federal, conforme determina a legislação. Dessa forma, o argumento colocado é o do direito de plantar arroz naquelas terras, que seria mais importante para o desenvolvimento de Roraima do que a demarcação contínua da área e a proteção de cinco etnias brasileiras – com sua identidade, costumes, mitos e divindades.
Enquanto a produção de arroz em todo o estado de Roraima representa, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), menos de 2% do Produto Interno Bruto estadual, os índios de Raposa-Serra do Sol oferecem uma contribuição importantíssima para a produção econômica local. Eles têm o maior rebanho do estado, com aproximadamente 35 mil cabeças de gado, e são responsáveis por uma parcela significativa do abastecimento de gêneros alimentícios das cidades próximas à terra indígena, inclusive a capital Boa Vista – são 50 toneladas anuais de milho, 10 de arroz, 10 de feijão e outros cultivos tradicionais com a mandioca. Isso, porém, nunca foi colocado ao público.
O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), por sua vez, noticiou os graves danos ambientais que vêm ocorrendo à região pela maneira predatória como se dá a produção de arroz: aterramento de lagos e nascentes, assoreamento de rios e produção em Áreas de Preservação Permanente são alguns dos problemas detectados.
Outro ponto colocado por aqueles que são contra a demarcação de Raposa é o impacto que tal ato teria sobre a autonomia federativa de Roraima. É verdade que essa terra representa 7% do território estadual e também que 46% do estado são compostos por terras indígenas. Entretanto, não há qualquer relação entre esse fato e a questão federativa. Há, sim, uma confusão entre a questão fundiária e a jurisdição dos estados sobre o seu território.
A questão fundiária diz respeito a quem é o proprietário da área. A jurisdição (conceito que se vincula à autonomia administrativa) diz respeito ao território no qual o Estado pode exercer o seu poder e suas políticas públicas. O estado de Roraima possui jurisdição sobre as terras indígenas. Ele não só pode, como deve, implementar ali políticas públicas na área de saúde, educação e outras que beneficiem a população local.
Cidadãos legítimos
Um exemplo claro de possibilidade do exercício do poder de um ente federativo sobre uma terra indígena foi a recente elaboração do plano diretor do município de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde se estabeleceram, de forma pactuada com os índios, regras sobre a ocupação da terra indígena, que foram colocadas em lei.
Também poderíamos lembrar que, até 2005, todas as ilhas oceânicas eram consideradas como terras da União. Assim, a cidade de Florianópolis (SC), por exemplo, era inteiramente composta por áreas públicas. E isso, claramente, não excluía a cidade do pacto federativo.
Desconsiderar a terra indígena como parte do estado é uma tentativa de dizer que aqueles índios não são cidadãos de Roraima, e isso é muito grave. Não apenas eles são cidadãos desse estado, como ocupam área absolutamente compatível com a população que representam. Os 18 mil índios que vivem em Raposa-Serra do Sol fazem com que a densidade demográfica da terra indígena seja quase duas vezes a da área rural do estado (o índice de densidade demográfica da área rural de Roraima é de 0,65 habitantes por km² contra 1,1 h/km² em Raposa). Ou seja, se dividíssemos igualmente as terras do estado entre sua população rural, a terra indígena teria praticamente o dobro do tamanho que tem.
Ainda no que diz respeito à “ocupação”, é importante lembrar que foi oferecido, pelo Governo Federal, aos ocupantes não indígenas de Raposa-Serra do Sol o reassentamento em área de condições equivalentes, porém menor em tamanho, pois não se quis premiar quem invadiu terras públicas de forma dolosa. Esses ocupantes ilegais foram tratados pelo Estado brasileiro com respeito, recebendo uma indenização pelas benfeitorias que haviam construído e ofertas pacíficas, dialogadas e generosas do Poder Público. Mas, em lugar da negociação e da busca por soluçõ
es, talvez seja mais importante para o líder dos arrozeiros a visibilidade conseguida com o embate, que provavelmente o promoverá de prefeito de Pacaraima a deputado federal por Roraima nas próximas eleições.
Em suma, percebe-se que, quando o Supremo Tribunal Federal tomar sua decisão sobre esse caso, não estará simplesmente decidindo o futuro de 18 mil índios e seis arrozeiros. Estará, sim, fazendo uma opção pela manutenção ou não de uma história – não-linear, mas coerente – de consolidação do pluralismo no Brasil e de respeito ao direito dos povos indígenas sobre suas terras. Decidirá também se existe um direito fundamental à produção predatória na Amazônia, decorrente de uma necessidade de “desenvolvimento” a qualquer custo dessa região, ou se o Brasil saberá se colocar ao longo deste século como o primeiro país do mundo a se desenvolver de maneira verdadeiramente sustentável.
Também deverá dizer o STF se os povos indígenas são cidadãos plenos, reconhecidos pela unidade da Federação na qual se encontram, ou se seu reconhecimento é um incômodo para o estado a ponto de lhe sufocar a autonomia federativa. Por fim, o STF decidirá se nossas fronteiras estão mais bem resguardadas por índios ocupando áreas da União ou por latifundiários que determinam o uso da terra de acordo com os interesses do mercado.
A manutenção da terra indígena Raposa-Serra do Sol representa, neste momento em que completamos 20 anos de Constituição, a vitória de um projeto apontado pelo texto de 1988. Trata-se do projeto de Brasil que enxerga a Amazônia como uma oportunidade de consolidar um desenvolvimento com base no respeito ao meio ambiente, com distribuição de renda, e que enxerga os povos indígenas como brasileiros capazes de dar uma contribuição insubstituível para o país. Esperamos que se diga não à fissura desse projeto, que se rejeite a descontinuidade de Raposa-Serra do Sol para que o Brasil reafirme, com consistência, a opção por uma democracia efetiva e plural.
*Pedro Abramovay é secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.