A honra dos funâmbulos
De 1925 a 1960, do manifesto contra a guerra do Rif ao dos 121, contra a guerra da Argélia, o pensamento e os compromissos políticos de André Breton constituíram sempre uma linha reta e nítida: o posicionamento a favor do lado minoritárioRégis Debray
Os equívocos têm a marca de seu tempo e nosso passado intelectual, como os outros, muda com o tempo. Quando o Ocidente em seu zênite, embriagado de tecnologia e de arrogância, assume, como atualmente, sua desforra colonial sobre o Oriente esmagado; quando a revolução conservadora em curso culpabiliza tudo o que, em nosso país, gravitou em torno da bandeira vermelha e preta, o surrealismo é visto como suspeito de cumplicidade “totalitária”. Há 50 anos atrás, pouco depois de Stalingrado, quando o Oriente vermelho – União Soviética e China reunidas – era a estrela ascendente, quando o Partido dos fuzilados tinha muitos leitores a oferecer aos escritores, o surrealismo era visto como suspeito de cumplicidade “burguesa” e de aristocratismo decadente. Já que os ventos dominantes inclinam o cadáver, que ainda mexe, tanto para o Ocidente, quanto para o Oriente, os coveiros também devem se alternar, de acordo com as estações. Ser esbofeteado na face esquerda, depois na face direita (ou o inverso), é o que devem esperar aqueles que permanecem fiéis a si mesmos, concedendo-se apenas um desgosto predestinado: a popularidade, ou a opinião pública, seus tiques e sua falsidade.
Em favor das minorias
Virtude alguma tem pior rendimento do que a clarividência, mas, no final de cada meio século, e tendo em vista certo tempo de antecipação tomado por uns em relação a outros, se nossos historiadores pensassem em outorgar o prêmio de futurologia, André Breton, no âmbito da gente escrevinhadora, seria um candidato bastante bom (Desnos também não deixa de ser competente no prognóstico). Na Carta às videntes, de 1925, chega a ser Nostradamus: “Há pessoas que declaram que a guerra lhes ensinou alguma coisa; são, apesar de tudo, menos avançadas do que eu, que sei o que me reserva o ano de 1939”. Encontraremos em seus escritos, desde a morte de Lenin, o anúncio do provável desvio burocrático da Revolução russa – antes mesmo que nossos mais competentes historiadores da Sorbonne justificassem os processos de Moscou. Encontraremos da mesma forma, em 1943, o anúncio das guerras anti-coloniais do pós-guerra, no posfácio ao Caderno de um retorno ao país natal, e o posicionamento que seria conveniente adotar: “Espera-se com a mesma impaciência o dia em que, fora dessas colônias, a grande massa dos homens de cor deixará de ser mantida à distância ultrajante e acantonada em empregos no mínimo subalternos. Se essa espera for frustrada pelos regulamentos internacionais que entrarão em vigor no final da guerra atual, seria forçoso alinhar-se definitivamente, com todas as implicações que isso comporta, com a opinião de que a emancipação dos povos de cor não pode ser senão a obra desses próprios povos”. Breton analisava sobriamente, desde 1935, o desaparecimento do futuro e o desvanecimento do progresso, que explicitamos em 2003. E a moda ecológica não o teria perturbado, a ele que não cessava de conclamar o homem a restabelecer o contato com a natureza e a respeitar seus locais de moradia (o fato de habitar poeticamente o mundo não acontecendo sem restrições).
Encontraremos nos escritos de André Breton, desde a morte de Lenin, o anúncio do provável desvio burocrático da Revolução soviética
De 1925 a 1960, do manifesto contra a guerra do Rif ao dos 121, contra a guerra da Argélia, vejo apenas uma linha reta e nítida: o posicionamento a favor do minoritário. Breton não somente defendeu o vencido Trotski, o sitiado de Coyoacán contra o onipresente Stalin, os negros contra os brancos, os Hopi e os Zuni, do Novo México, contra os Yuppis, da Nova Inglaterra. Os ocupados contra os ocupantes. Tomou partido a favor dos celtas e dos gauleses contra os greco-latinos, a favor das pequenas religiões contra as grandes, a favor do amuleto contra o crucifixo, a favor das feiticeiras e dos ogãs (sacerdotes do vodu) contra os pastores e os bispos, e a favor das bonecas de madeira ameríndias contra os anjos de pedra das catedrais. Um único campo: os perdedores, e sem compromisso de última hora. Uma única linha: a estratégia do fraco em relação ao forte. Legiões romanas inúteis. Será que isso é o totalitarismo?
A “alter-globalização” do lirismo
Repete-se, desafiadoramente, que 1968 foi o triunfo retardado da Casa Breton. É esquecer que ela nada detestava mais do que o sucesso – “as idéias que triunfam encaminham-se para sua perda”. Questão de temperamento, ou pressentimento de que, sendo o curto prejudicial a longo prazo, é preciso saber permanecer submerso, quando se quiser ir longe, e emergir um determinado dia de maneira duradoura? A perícia da margem e o cuidado empregado em se opor ao acadêmico e aos grandes títulos provêm talvez de uma alta política da mente. De qualquer forma, Pierre Mabille, o adido cultural da França Livre em Port-au-Prince, que o recebeu em 1945, após seu exílio nos Estados Unidos, não exagerava ao introduzir esse curioso refratário da seguinte forma: “Gostaria de insistir sobre a ausência de qualquer comprometimento na vida de André Breton. Sua atitude decididamente anti-oportunista é um fato muito raro entre os literatos…”
Vocês vão provocar o riso de muitos, quando transformarem esse incorrigível psico-rígido no antepassado de nossos acrobatas apanhadores de vento, nossos dissidentes oficiais, para os quais “o último a vencer é o que tem razão” Militante do Partido Comunista Francês, maoísta, partidário de Reagan, papista, liberal etc… Os semelhantes estão do lado bom, do lado mais forte, ali onde há tiragem e titulações. É falta de tato alinhar o valente com o valentão. O Breton com o Cocteau. Poderia se imaginar o renunciador de Saint-Cirq la Popie como editorialista associado do jornal Temps, animador de auditório, membro de júris literários, batendo papo com o milionário do dia…?
Anticorpos contra o stalinismo
Um único campo: o dos perdedores, sem compromisso de última hora. Uma única linha: a estratégia do fraco em relação ao forte. Seria isso o totalitarismo?
O que mais me faz ser grato a este orgulhoso – que se preocupava com a margem e o interstício – e a seus aliados é o fato de terem, sempre que puderam, ajustado suas lunetas sobre os guetos (bantustans) dos brancos, e terem se revezado com esses relegados que nossas metrópoles não ouvem nem vêem. Devemos a eles a última poesia mundial de língua francesa por terem ampliado, para além-mar, nossas fraternidades pátrias. Pois, em primeiro lugar, o que interessava Breton, por meio do poema e do ensaio, era isso: encontrar homens e fazer com que eles se agrupassem, para além das profissões e nacionalidades. Não é por acaso que as terras do real maravilhoso – México, América do Sul e Antilhas – deram hospitalidade aos propagadores do campo magnético.
Talvez vocês não se lembrem que, em 1947, Breton, com duas conferências, semeou a discórdia em Porto Príncipe, onde sua fala, magnetizando jovens letrados haitianos da Ruche, desencadeou uma revolução de universitários que acabou por derrubar o ditador da época. Muitos dos revoltosos, militantes da negritude ou da criolização, posicionaram-se seguindo seus passos, tornaram-se em seguida comunistas, do tipo incômodo, e não permaneceram comunistas por muito tempo. Ouçam René Depestre: “O surrealismo foi como um pára-raios: deu-me anticorpos contra o stalinismo e o jargão político. A partir de 1956, comecei a protestar violentamente.” Ouçam Aimé Césaire: “Se sou o que sou, é em grande parte por causa desse encontro com André Breton” (em 1941, em Fort-de-France). Stephen Alexis, Magloire Saint Aude e o pintor Hippolyte? Ou ainda Hervé Télémaque, Georges Henein, o Egípcio, Georges Shéhadé, o Libanês? Sei que estes nomes têm pouco peso para vocês, ao lado dos de Hannah Arendt e Raymond Aron. A culpa não é de vocês. É a seleção natural para os que acertam sua bússola e seu relógio por Harvard, Londres e Berlim. As principais cabeças da intello terminal (I.T.) são as de um planeta reduzido ao triste confronto entre a Europa e os Estados Unidos; os mais curiosos acrescentam, por condescendência, uma pitada de Malta e um pouquinho de Magrebe.
Lavagem cerebral do globo
Repete-se que 1968 foi o triunfo retardado de Breton. É esquecer que detestava o sucesso – “as idéias que triunfam encaminham-se para sua perda”
É este o mapa-mundi que serve de pressuposto comum para os defensores de não se sabe qual retorno à ordem e para nossos organizadores de listas negras parisienses (em panfletos medíocres, de postulados rigorosamente simétricos aos primeiros, tanto a margem direita como a margem esquerda estão de acordo entre si). Globo reduzido à lavagem cerebral, hemisfério hemiplégico ao lado dos quais “o mundo no tempo dos surrealistas”, esse atlas provocador de 1929 que inverte as escalas de valor entre países abastados e países esquecidos, que vocês reproduzem como sinal de sarcasmo, parece muito bem adaptado à estação, e de um tom profético conveniente.
Acharemos excelente que aqueles que são obcecados pelo livro negro do comunismo sejam lembrados, pelo aumento irônico de nossas margens, de que há o livro negro do colonialismo; e que nossas próprias valas comuns reservem um lugar para a África dos grandes lagos e dos genocídios da “periferia”. Será que são tão numerosos nossos advogados e historiadores do Estado de Direito que se lembram do Código Negro promulgado por nossos grandes juristas? André Breton, o exilado, não se conformava com isso, e já foi uma lufada de oxigênio para nosso Landerneau. Essa “alter-globalização” do lirismo, à qual ele procedeu por seus arrombamentos e suas curiosidades, encontrou evidentemente um auxílio no fato de colocar em primeiro plano formas plásticas, no mesmo nível que as palavras. E, assim como o sincretismo não conseguiria qualificar a fusão dos contrários nesse tipo de mente – o termo é fraco e sem graça -, os termos cosmopolitismo ou exotismo, pelo que implicam de presunção um pouco falsa, continuam insuficientes diante dessa porta aberta sobre a Terra. Ao lado do maravilhoso objeto, Breton buscava seres e irmãos. De Tenerife a Praga, de Viena à Cidade do México, ou de Londres a Fort-de-France, o associativo nato dirigia-se a seus pares, não a estrangeiros ou a comparsas. Para auxiliá-los a se tornarem cada vez mais eles mesmos, ainda que com isso o renegassem.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
* Debray responde ao crítico e historiador da arte Jean Clair que, num livro i
Régis Debray é escritor e filósofo, presidente de honra do Instituto Europeu de Ciências das Religiões, em Paris.