A hora e a vez das organizações interestatais de bem-estar social
As organizações interestatais devem complementar a ação dos Estados, levando o processo de socialização das necessidades fundamentais dos indivíduos a um novo e mais audacioso patamar
O novo coronavírus não conhece fronteiras nacionais. Com velocidade arrasadora, contaminou mais de 7 milhões de pessoas na África, América, Ásia, Europa e Oceania, das quais 400 mil perderam a vida.
Não bastasse o sofrimento causado por cada indivíduo doente e falecido, o novo coronavírus lançou o mundo em uma nova e profunda crise econômica e social. De fato, ele induziu o colapso do produto e da renda, a queda do emprego formal e o aumento do emprego informal e do desemprego, e o crescimento da pobreza e das desigualdades.
Mais uma vez, uma crise mostra que o mercado e a família e as demais formas tradicionais de provisão são incapazes de atender sozinhos às necessidades fundamentais dos indivíduos. Isto é, assegurar que eles possam enfrentar as ameaças à possibilidade de viver a vida com dignidade, em que são possam ser e fazer aquilo que são capazes e desejam.
Diante da redução do crédito, do consumo, do investimento e das exportações, as empresas reduziram a produção, deixaram de contratar e passaram a demitir. Sem emprego, aqueles que precisam vender a sua força de trabalho – em troca de uma remuneração que pode ser usada para comprar aquilo que precisam – são obrigados a recorrer aos parentes, aos amigos e à comunidade, cuja capacidade de assistência é restringida pela letargia da economia.
Assim sendo, os Estados devem intervir de forma mais contundente na produção e na distribuição da renda, bens e serviços e viabilizar um processo de socialização das necessidades individuais. O atendimento dessas necessidades deixa de ser uma responsabilidade apenas do indivíduo e daqueles que estão mais próximos para se tornar uma responsabilidade de toda a sociedade.
Por meio do fortalecimento das políticas econômica e social nacionais, o Estado deve estimular as decisões de gasto, de produção e de contratação; garantir que os indivíduos que podem trabalhar tenham condições de assumir as novas vagas criadas; e assegurar que todos tenham acesso à renda e aos bens e serviços gerados nesse processo na medida de suas necessidades.
Essa solidariedade nacional é a essência dos chamados Estados de bem-estar social. Mas o tamanho da tarefa pode estar além das capacidades de cada país.
É por essa razão que as organizações interestatais devem complementar a ação dos Estados, levando o processo de socialização das necessidades fundamentais dos indivíduos a um novo e mais audacioso patamar. O atendimento dessas necessidades não deve ser uma responsabilidade apenas das sociedades a que eles fazem parte, mas de toda a comunidade internacional.
Essas organizações interestatais devem criar políticas internacionais que se somem à ação das políticas nacionais destinadas a assegurar que todos os indivíduos sejam capazes de viver a vida com dignidade, reforçando e potencializando o seu poder de fogo. Essa solidariedade internacional deve ser a base do que se pode chamar de organizações interestatais de bem-estar social.
É da Europa que se pode extrair lições importantes nesse sentido. É ali que se encontram não apenas os mais sofisticados Estados de bem-estar social já construídos, mas também o arranjo mais próximo de uma verdadeira organização interestatal de bem-estar social.
A União Europeia é o resultado de um longo e, por vezes, difícil, processo de integração regional, em que países diferentes concordaram em transferir a responsabilidade sobre assuntos diversos a um conjunto de instituições supranacionais, que, então, podem tomar decisões sobre eles com base no interesse comum. Essas instituições são financiadas por um orçamento supranacional, cujos recursos provêm de impostos sobre o valor adicionado, sobre produtos agrícolas e sobre produtos importados e de contribuições dos países membros, de acordo com o tamanho de suas economias.
Diante da pandemia causada pelo coronavírus, a União Europeia busca evitar a hesitação com a qual enfrentou a crise da zona do euro, de 2012, e a crise dos refugiados, de 2015, e que contribuiu para reforçar o euroceticismo em expansão nos países-membros. Expressão maior desse processo foi o referendo realizado no Reino Unido em 2016 e que culminou na sua saída do bloco em 2020, após quase meio século de união.
De fato, a Comissão Europeia, órgão executivo do bloco, propôs o mais ousado plano de recuperação econômica e social desde que esse arranjo surgiu entre os escombros da Segunda Guerra Mundial. Com ele, pretende inaugurar uma “Nova Geração” no modo de ser e de fazer as coisas por ali.
O plano proposto traz novidades importantes em relação a iniciativas anteriores. A primeira grande novidade é o seu tamanho. Ele prevê a aplicação de 750 bilhões de euros em ações entre 2021 e 2024. Estas irão se concentrar nas áreas que são prioridade do bloco. Ou seja, crescimento do produto e da renda autônomo e baseado em setores intensivos em tecnologia, aumento do emprego formal, redução do emprego informal e do desemprego, redução da pobreza e das desigualdades, e proteção do meio-ambiente. Essas ações também irão priorizar os países-membros mais afetados pela crise, a começar por Itália e Espanha.
A segunda grande novidade do plano são as ações que serão apoiadas. Os recursos serão distribuídos entre ações novas e ações que já existiam no bloco. Assim, 560 bilhões de euros serão destinados a um novo “Mecanismo de Recuperação e Resiliência” para financiar investimentos estratégicos, sendo que 310 bilhões de euros serão alocados a fundo perdido e 250 bilhões de euros na forma de empréstimos. Os demais 190 bilhões de euros serão assim distribuídos: 50 bilhões de euros para a “Política Regional” de modo a financiar investimentos em regiões mais atrasadas do bloco; 30,3 bilhões de euros para o novo “Mecanismo de Investimento Estratégico” no âmbito do “Fundo InvestEU” para fornecer apoio técnico ao desenvolvimento de projetos de investimentos estratégicos, a intermediação entre desenvolvedores, financiadores e implementadores desses projetos de investimento, e garantia ao financiamento desses projetos de investimento; 30 bilhões de euros para o “Fundo de Transição Justa” para financiar investimentos em regiões dependentes de fontes de energia intensivas em carbono; 26 bilhões de euros para o novo “Instrumento de Apoio à Solvência” no âmbito do “Fundo Europeu de Investimentos Estratégicos” para servir de seguro aos empréstimos, participações e garantias fornecidos pelo Banco Europeu de Investimentos às empresas que eram solventes antes da crise, mas que depois passaram a enfrentar dificuldades para continuar honrando seus compromissos; 15 bilhões de euros para a “Política Agrícola Comum” para financiar investimentos nas áreas rurais do bloco; 13,5 bilhões de euros para o programa “Horizonte Europa” para financiar investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias; 10,5 bilhões de euros para a “Política Externa” para estreitar a cooperação do bloco com seus parceiros, sendo que 5 bilhões de euros serão alocados em ajuda humanitária; 7,7 bilhões de euros para o programa “EU4Health” para investimentos nos serviços de saúde; e 2 bilhões de euros para o programa “rescEU” para investimentos na prevenção e proteção contra desastres, como enchentes, secas, tempestades, incêndios, terremotos, além de surtos, epidemias e pandemias.
E a terceira grande novidade do plano é forma como ele será financiado. Pela primeira vez, a Comissão Europeia prevê a emissão de títulos de dívida no mercado em nome da União Europeia a fim de captar recursos para complementar o orçamento supranacional. Os recursos captados deverão ser pagos entre 2028 e 2058. Para evitar aumentar as contribuições dos países-membros para o orçamento, o bloco propôs criar fontes de recursos próprias complementares às que já existem e que deverão vigorar apenas até a quitação da dívida assumida. Inclui-se aí tributos sobre o comércio de cotas de emissão de carbono, sobre as importações de produtos de países com regras menos rígidas sobre a emissão de carbono e sobre a operação de empresas que se beneficiam muito do mercado comum viabilizado pelo projeto de integração regional.
A Comissão Europeia ainda propôs 1,1 trilhão de euros, provenientes das suas fontes de recursos tradicionais, para o orçamento supranacional vigente no período de 2021 a 2027. Com os 750 bilhões de euros do novo plano, 1,85 trilhão de euros deverão estar disponíveis para financiar ações do bloco no período. Será o maior orçamento da sua história.
O plano agora segue para o aval do Conselho Europeu, que reúne os chefes de governo dos países membros, e, depois, para votação no Conselho da União Europeia e no Parlamento Europeu, os órgãos legislativos do bloco. Ele deverá ser aprovado, mesmo com modificações, porque conta com o apoio da maior parte dos países membros, incluindo Alemanha e França, os fiéis da balança do projeto de integração regional europeu.
É verdade que o plano pode ter sido proposto muito tempo depois do início da crise e que ainda esteja aquém do tamanho do esforço que será necessário para a sua superação.
Mas o ponto fundamental é que a União Europeia pode reforçar com esse plano os esforços realizados pelos países membros e baseados no fortalecimento da política econômica e da política social para que todos sejam capazes de atender as suas necessidades fundamentais. Ela permitirá que esses países possam fazer mais nesse sentido do que poderiam fazer se estivessem sozinhos.
Nesse caso, como um farol poderoso, o exemplo da União Europeia aponta a direção para a qual deve navegar a comunidade internacional em meio a mais uma violenta tempestade.
Em um mundo cada vez mais baseado no individualismo inconsequente e na luta de todos contra todos, a solidariedade entre países, como complemento à solidariedade dentro de cada país, é o caminho mais promissor para o bem de todos e de cada um.
Paulo José Whitaker Wolf é pós-doutorando em Economia do IE-Unicamp, professor dos cursos de Relações Internacionais e Gestão Pública e Governo da Escola de Extensão da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais do IE-Unicamp.