A ideologia do esporte-espetáculo e suas vítimas
Transmitido mundialmente pela televisão, o esporte tornou-se um dos vetores da globalização. Sua ideologia disfarça seu caráter político, a monetarização generalizada dos “valores” esportivos, fraudes e trapaças de todos os tipos e, sobretudo, ’doping’ maciço em todos os estágiosJean-Marie Brohm, Marc Perelman, Patrick Vassort
A globalização do esporte, iniciada verdadeiramente a partir da II Guerra Mundial com a multiplicação sem fim das competições, duplicou-se com uma “esportivização” do mundo como vetor político-ideológico comum ao conjunto das potências financeiras que submetem o planeta à sua imposição. Depois que o barão Pierre de Coubertin lançou o movimento irresistível de propagação esportiva, ao ressuscitar os Jogos Olímpicos em Atenas, em 1896, o fenômeno esportivo caracterizou-se pela combinação de vários fatores: um desenvolvimento sem precedentes da maioria dos esportes em todo o planeta, sua homogeneização internacional pela codificação de regras unificadas, e o desaparecimento progressivo das técnicas corporais ou dos jogos típicos dos países.
O espaço público, reduzido a uma tela de sonho televisionado, está saturado de esporte, a tal ponto de comprometimento que a política é considerada, também ela, como um esporte
A unidade desse conjunto reconfigurou simultaneamente o tempo do mundo (estabelecimento de calendários competitivos cada vez mais apertados, servindo de referências aceitas por todos) e o espaço geopolítico (multiplicação de locais de esporte: junto dos edifícios, nos estádios, em casa diante da televisão, no meio do mato), e tudo isso num espetáculo transmitido mundialmente pela televisão. Até parece surgir dessa articulação inédita do tempo e do espaço uma nova história, formada pelas façanhas, os recordes, os desempenhos, criando, por isso mesmo, mitos e “lendas fabulosas”, dos quais os campeões seriam os deuses, no meio de um oceano de imagens.
Pandemia esportiva
Essa pandemia esportiva – a extensão de sua esfera de influência no interior da vida diária – é, de fato, perceptível na globalização do esporte enquanto universo implacável de “ganhadores”, eventualmente demolidores. O espaço público, reduzido a uma tela de sonho televisionado, está saturado de esporte, a tal ponto de comprometimento que a política, por exemplo, é considerada, também ela, como um esporte. O tifo esportivo contaminou as consciências com uma velocidade incrível, fazendo de cada indivíduo um torcedor em potencial. A ponto de o esporte ser atualmente exercido no mesmo registro que as necessidades – beber, comer ou dormir – e ter se tornado o espaço-tempo quase que exclusivo dessas multidões solitárias, imbecilizadas pela paixão pelo não essencial: um chute a gol, um sprint ou uma quebra de serviço. O esporte é a vida diária e, para muitos indivíduos, não há mais nada fora dele, a não ser o vazio abissal do jargão, televisivo, da inautenticidade.
Se os estádios permitem o exercício efetivo da competição, o verdadeiro fascínio pelo espetáculo que se apodera das multidões seduzidas é o resultado precisamente do poder, ao mesmo tempo banalizado e hipnótico, da retransmissão generalizada das competições – de um único ponto do mundo, o estádio, para todos os pontos possíveis, para cada casa – e de acordo com uma transmissão que lhes é própria: ao vivo, o instantâneo, em câmara lenta e a repetição de todos os ângulos, em cadeia.
Por seu próprio modo de manifestação, o esporte tornou-se um dos vetores da globalização em curso, ou seja, uma espacialização planetária sob o regime de um tempo único reificado, literalmente coagulado, constituído pelo poder universal da divulgação televisiva. O tempo ainda marcado pela historicidade, um tempo complexo, de uma certa fluidez dialética1 , foi substituído, portanto, pelo tempo do esporte, que divide a história ao ritmo das competições, dos recordes, das teletransmissões. O esporte “realmente existente” não é senão um frenesi de competições, a organização planetária de sua rotação permanente num calendário universal. Atualmente, o esporte não é mais do que um dos componentes de um tempo e de um espaço autonomizados no e pelo capital. Ele é a tomada de posse do tempo e do espaço à sua imagem e como imagem.
Vedetes do esporte
Novas estrelas da globalização, os campeões tomaram o lugar das vedetes do cinema e do show business. O esportista de alto nível tornou-se o modelo publicitário a ser seguido
Novas estrelas da globalização, os campeões tomaram o lugar das vedetes do cinema e do show business. O esportista de alto nível tornou-se o modelo publicitário a ser seguido, com quem a juventude deve se identificar. Não somente os patrocinadores constroem a imagem dos esportistas como produtos globalizados padrão, mas a globalização veicula as figuras planetárias de esportistas uniformizados à imagem de seus calçados: a língua comum deles é o jargão anglo-esportivo, seu modo de vida é homogeneizado – mesmas “bebidas energizantes”, mesmos hotéis de luxo, mesmas paixões por carros potentes, mesmos treinamentos dementes, mesmos dopings, mesmo interesse pelas contas bancárias.
Contratados por times, escuderias ou equipes controladas por interesses financeiros poderosos, esses happy few dedicam seu tempo a encontros em torno do globo terrestre, apresentando-se em espetáculo diante de uma imensa platéia de deserdados e de oprimidos, reduzidos a serem apenas telespectadores fanatizados ou máquina de aplaudir, como nos reality shows.
O poder efetivo da ideologia do esporte é o resultado da multiplicação infinita das imagens da competição sem outra mediação que não sejam comentários redundantes de uma aflitiva banalidade. A globalização televisiva permanente transforma então a paixão esportiva em paixão pela imagem, em “iconomania”, para retomar o conceito de Günther Anders2 . A contaminação geral das consciências provém, portanto, dessa intoxicação esportivo-televisiva incessante. Esta última, por meio da série de imagens infinita imposta pelas tecnologias digitais, que prendem cada indivíduo diante de suas telas (telão, telefone celular, home vídeo, televisor, etc.), celebra não somente os novos ícones do esporte, mas distila de forma maciça a visão esportiva do mundo.
O caráter político do esporte
“A ideologia”, diz Engels, “é um processo desempenhado pelo pretenso pensador provavelmente com consciência, mas com uma falsa consciência. As forças motrizes verdadeiras que o põem em movimento permanecem desconhecidas para ele, pois se não fosse assim, não seria um processo ideológico. Ele imagina também forças motrizes falsas ou aparentes3 .” É dessa forma que a ideologia esportiva põe em prática a ação imaginária de hipóstases imaginárias (a idéia olímpica, a paz olímpica, o fair-play, o espírito esportivo etc.) desconhecendo, disfarçando ou recalcando as forças motrizes reais do esporte: o acúmulo do capital esportivo, a corrida desenfreada ao bom rendimento, os efeitos deletérios da competição.
A ideologia da “neutralidade axiológica” nega ferozmente o papel do esporte enquanto parte de um projeto de embrutecimento, de doutrinação e de cloroformização das massas
A primeira forma de falsa consciência que distingue essa Disneylândia, enquanto aparelho ideológico, é a denegação de qualquer caráter ideológico, o bloqueio político de qualquer caráter político do esporte.
De maneira ingênua, entre os praticantes e dirigentes esportivos imersos nesse oceano onírico ao mesmo tempo narcisista e megalomaníaco, ou de maneira mais perversa, entre certos intelectuais, o esporte é apresentado como um culto da performance, uma contra-sociedade do esforço competitivo, um universo encantado e encantador de práticas da superação de si mesmo que nada teriam a ver com as oposições ideológicas, as orientações políticas, as convicções religiosas. O esporte seria fundamentalmente neutro, apolítico, fora da luta de classes, nem à esquerda nem à direita, nem mesmo no centro, acima das querelas partidárias e dos conflitos sociais.
A ideologia da neutralidade
A ideologia da “neutralidade axiológica” nega ferozmente o papel do esporte enquanto parte de um projeto de embrutecimento, de doutrinação e de cloroformização das massas – tanto nas metrópoles imperialistas quanto no Terceiro Mundo. Ela se expressa sob duas formas essenciais, que não se terá nenhuma dificuldade em reconhecer por ocasião dos próximos jogos, em Atenas.
A primeira, veiculada com insistência por todas as tendências de esquerda, consiste em defender que o esporte pode assumir todas as cores, do vermelho vivo ao rosa pálido. Organizado de maneira “progressista”, o esporte poderia contribuir, por exemplo, para a emancipação das mulheres, combater o racismo e a xenofobia, contribuir para a integração republicana, relançar a mobilidade social e, para terminar, promover a “cultura”. Haveria, dessa forma, um esporte verdadeiro, um esporte educativo, um esporte purificado, um esporte com cara humana, em suma, uma Essência ou Idéia platônica do esporte que se oporia aos lamentáveis excessos, abusos, vícios e desvios do esporte realmente existente. A realidade bastante sórdida das negociatas, do doping, dos resultados combinados e da corrupção encarrega-se, é claro, de corrigir periodicamente esses mercadores de ilusões.
A segunda expressão da ideologia da neutralidade ideológica, ainda mais maciça, reconstitui-se periodicamente nas aclamações unanimistas do “consenso esportivo”. O gregarismo, a massificação, a mobilização total, senão totalitária, das multidões que os feitos fabulosos dos deuses do estádio fazem “vibrar de felicidade” – como ainda recentemente, por exemplo, a vitória da Tunísia na Copa da África de futebol – supostamente provam o universalismo do “ideal esportivo” ou da “idéia olímpica”. É bastante constrangedor, portanto, ver intelectuais, em geral mais críticos, juntarem-se à matilha dos fanáticos por músculos, incapazes de explicitar as funções políticas reacionárias dessa esportivização das mentes, dessa intoxicação emocional fictícia em torno de “nossos” campeões.
Cretinização populista
A realidade bastante sórdida das negociatas, do doping, dos resultados combinados e da corrupção encarrega-se, é claro, de corrigir periodicamente esses mercadores de ilusões
Nos êxtases nacionais – até há quem fale de orgasmo – que saturam o espaço público em caso de vitória, os amigos do esporte gostaram, portanto, de reconhecer a manifestação de uma união sagrada regeneradora. Os campeões seriam, então, a vanguarda de uma sociedade reconciliada consigo mesma. A vitória da seleção da França “black-blanc-beur” [negro-branco-árabe] por ocasião da Copa do Mundo de futebol de 1998 foi o momento de uma onda impetuosa de cretinização populista.
Didier Deschamps, capitão do time francês, afirmou, sem sequer sorrir, que “o futebol é um vetor que permite apagar as diferenças raciais, sociais ou políticas4 “. O treinador Aimé Jacquet era ainda mais lírico: “A França reconheceu-se através desse time multiétnico. O fato desses jovens, nascidos na França, cheios de alegria de viver e de ambição, terem feito tanta gente feliz é muito positivo para o país. Penso que isso pode dar um bom impulso à unidade nacional5 “. O editorialista do jornal L?Humanité desenvolvia a metáfora da “lenda do século”: “Os ídolos azuis entraram na eternidade brilhante do futebol6 “. Portanto não é surpreendente que Zinédine Zidane tenha sido escolhido o “francês preferido dos franceses” e que os mais dependentes do ópio esportivo até tenham imaginado “Zidane presidente”!
Essa demagogia unanimista, no entanto, não resistiu por muito tempo ao princípio de realidade: nem o “futebol dos conjuntos habitacionais”, nem o “futebol de rua”, nem o “esporte popular”, nem o “esporte para todos” – esses aspectos enganadores de um desejo apaixonado – impediram que se agravassem a “fratura social” e o contínuo desaparecimento do vínculo coletivo nos “bairros difíceis”. Em vez de cooperar para a concórdia civil, os encontros esportivos são cada vez mais semeados de incidentes graves e de violência raivosa, que não são simples “excessos” ou “ocorrências policiais”, mas a conseqüência da vitória a qualquer preço que prevalece em todos os escalões da instituição. A selva esportiva, aliás, não faz mais do que refletir aqui seu alter ego: a selva da globalização liberal.
A violência e a corrupção
A vitória da seleção da França “black-blanc-beur” [negro-branco-árabe] na Copa do Mundo de futebol de 1998 foi o momento de uma onda impetuosa de cretinização populista
O segundo processo ideológico é a expressão da dissociação quase esquizofrênica existente entre os discursos oficiais – que reforçam, a seu modo, os produtores da boa consciência esportiva7 – e as tristes evidências do “meio”: aumento e agravamento da violência dentro e fora dos estádios, escândalos repetidos de corrupção mafiosa ou semi-mafiosa, monetarização generalizada dos “valores” esportivos, fraudes e trapaças de todos os tipos e, sobretudo, doping maciço em todos os estágios.
Segundo a boa velha lógica da separação esquizóide, assiste-se então a uma dupla dissociação: a instituição esportiva é inicialmente considerada como sendo independente da sociedade capitalista global e podendo desenvolver uma lógica autônoma. Numa sociedade gangrenada para caça ao lucro, o esporte seria, então, capaz de permanecer uma pequena ilha “pura” protegida por seus “valores”. A instituição esportiva é em seguida considerada como sendo dividida de acordo com a lógica binária do “bom esporte” – oposto a seus “maus usos”, seus “desvios” e suas “desfigurações”. Nesse sentido, o doping só seria um epifenômeno lamentável que “desvia”, é evidente, a ética do esporte, mas que só seria uma prática limitada a alguns raros trapaceiros em alguns determinados esportes.
Avalanche de doping
Ora, os acontecimentos destes últimos quinze anos mostraram claramente que o doping, mais do que uma transgressão episódica, é o revelador teratológico da natureza exata do esporte: uma corrida irreversível às manipulações bioquímicas, uma “antropomaximologia”, como diziam recentemente os teóricos soviéticos, um projeto totalitário que visa submeter o ser humano à fabricação de um “cibernantropo” ou de um ser biônico de tipo novo. Investigações, processos, confissões e revelações acabaram, portanto, por desvendar a verdadeira face da competição.
Numa sociedade gangrenada para caça ao lucro, o esporte seria, então, capaz de permanecer uma pequena ilha “pura” protegida por seus “valores”
A avalanche de casos de doping no ciclismo e no atletismo, mas também no futebol ou na natação, depois dos casos já antigos do halterofilismo, do esqui e do remo, teve como resultado pôr sob vigilância todas as disciplinas, apanhadas umas depois das outras em casos de doping (inclusive o rúgbi, a esgrima, o judô, a luta livre e o tênis…). Sobretudo tais casos voltaram a fazer a pergunta lancinante das condições médicas efetivas nas quais se realiza hoje a performance. A multiplicação dos treinamentos e das competições, o aumento da carga de trabalho ligada à elevação constante das exigências do alto nível, a intensificação dos compromissos financeiros e a pressão da mídia transformaram definitivamente o doping artesanal numa indústria multinacional, com seus fornecedores, seus setores, seus intermediários8 .
Enquanto a lista dos controles positivos aumenta – e isto ocorre em todos os níveis da competição -, os dirigentes fingem descobrir a extensão da praga. Depois de cada Volta à França ou à Itália, o ciclismo promete voltar a se tornar “limpo”, na espera de ser atingido por um novo caso. Nos outros esportes, só algumas ovelhas negras isoladas, ao que parece, recorreriam às substâncias proibidas e ainda de forma intermitente!
O eufemismo do inominável
Como cúmulo da falsa consciência, os mais lúcidos, ou os mais cínicos, consentem em maquiar o doping com uma forma de eufemismo: os complementos vitamínicos, a alimentação enriquecida, o reequilíbrio hormonal, a reoxigenação, as medicações contra a asma, os tônicos musculares, a creatina e outros estimulantes do esforço servem para evocar pudicamente o inominável das injeções e das anfetaminas, a administração dos diversos anabolizantes e corticóides, as transfusões de sangue em altas doses, o hábito dos
tratamentos com EPO9 e agora com THG10 .
Quando raros esportistas de renome são apanhados, como o cubano Sotomayor (salto em altura), os ingleses Christie e Chambers (velocistas) ou o austríaco Schönfelder (esqui), finge-se acreditar que são simples “casos isolados”. Mas são só a ponta aparente de um imenso iceberg. Os outros ficam sem opção: ou aceitam, mais ou menos voluntariamente, recorrer aos “coadjuvantes” da performance, ou desistem de jogar do lado dos grandes. Caso não se tratasse de um problema de saúde pública, poder-se-ia falar aqui, por brincadeira, de “fratura esportiva” entre aqueles que já aderem à mega seita da dependência e aqueles que esperam fazer parte dela.
Quando raros esportistas de renome são apanhados, como o cubano Sotomayor, os ingleses Christie e Chambers, finge-se acreditar que são simples “casos isolados”
Matam-se cavalos, de fato; então, pouco importa que muitos esportistas sejam agora ceifados na flor da idade, de “morte natural”, como dizem comunicados eufemísticos11 , ou vítimas da toxicomania como Pantani, Maradona e tantos outros que durante muito tempo foram apresentados como “modelos para a juventude”. E enquanto a Agência Mundial Antidoping (AMA) multiplica sua gesticulação, as leis antidoping timidamente em vigor em certos países (dentre os quais a França) revelam sua dramática impotência e os organismos esportivos, sua negligência, para não dizer sua condescendência culpada, diante dessa hecatombe programada.
Ocultação do real
No entanto, persiste-se em celebrar o que não existe, para melhor calar o que existe. Da mesma forma que o “ideal comunista” durante muito tempo impediu os militantes de reconhecerem a verdade evidente dos crimes do socialismo realmente existente, cegando-os em sua cegueira, o “ideal esportivo” ou a “idéia olímpica” – segundo a fraseologia ritual no universo da publicidade esportiva da mídia – contribuem maciçamente para ocultar as condições reais da prática esportiva de competição. Da mesma maneira que recentemente era preciso não “desesperar” a potência operária de Billancourt, é preciso não desencorajar as hordas de enganados que correm o risco de serem dopados. The show must go on…
O terceiro processo ideológico diz respeito à visão esportiva do mundo enquanto conjunto de discursos performativos12 . Na verdade, a lei esportiva tem como função essencial manter a pureza do dogma atlético, o caráter imaculado do mito olímpico. É em nome dessa ilusória “idéia esportiva” que numerosos ideólogos propõem restaurar os valores que o meio seria encarregado de exaltar. Ora, além do fato de que o altruísmo nunca foi mais do que um mito idealista, é precisamente em nome desse suposto altruísmo que a competição esportiva se colocou, desde sempre, a serviço de interesses econômicos, políticos e ideológicos que, quanto a eles, são bem reais.
Ao invocar de maneira quase mística os “valores eternos do esporte”, essa ideologia procura ser cumprida como profecia auto-realizadora, reduzindo o abismo existente entre a realidade mundana da prática efetiva do esporte-espetáculo capitalista e a esfera celeste da “idéia esportiva”. À maneira de um imperativo categórico, ela tenta adaptar os costumes pouco brilhantes a um ideal idolatrado, do qual Coubertin foi o grande sacerdote. Os artigos da seita esportiva – fair play, respeito pelo adversário, trégua olímpica, amizade entre os povos, festa da juventude, etc. – cantados em prosa e verso, são encontrados há anos em falsas associações: entre o esporte e a cultura, o esporte e a paz, o esporte e a democracia, o esporte e a emancipação dos povos, os deserdados e as mulheres, o esporte e o respeito pelo meio ambiente etc.
Propaganda para regimes perversos
Pouco importa que muitos esportistas sejam agora ceifados na flor da idade, de “morte natural”, ou vítimas da toxicomania como Maradona
Por uma série de equações perversas, a ideologia esportiva ousa até identificar o ideal à sua negação pura e simples. Foi dessa forma que, na Argentina, a “liberdade de jogar”, comemorada em 1978 por todos os amadores do esporte bretão, foi, sobretudo, uma operação de propaganda em favor da ditadura fascista de Jorge Rafael Videla, avalizada pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) e todos os torcedores do fato consumado.
Da mesma forma, foi em nome do “ideal olímpico” que aconteceram os Jogos da cruz gamada em Berlim, em 1936, os Jogos stalinistas de 1980, em Moscou, os Jogos policiais de Seul, em 1988. E será ainda à “fraternidade olímpica” que Atenas dedicará, em agosto de 2004, a reunião “pacífica” de uma interminável corte de “Estados delinqüentes”, ditaduras de republiquetas e regimes policiais que procurarão conseguir medalhas, honras e considerações, sob a proteção cerrada de milhares de militares e agentes dos serviços de segurança, mobilizados para prevenir atentados terroristas.
Atenas – que, na Antigüidade foi o berço da filosofia e da democracia – passará em seguida a tocha olímpica a Pequim, símbolo sinistro do despotismo oriental. Os incensadores do esporte então fecharão os olhos pudicamente às violações maciças dos direitos humanos na China, com a única finalidade de preservar o “sucesso” da festa olímpica em 2008. Serão esquecidos os campos de trabalhos forçados, as mentiras de Estado, a ocupação do Tibete, a repressão sangrenta da praça Tienanmen, as execuções públicas dos condenados à morte, as extorsões da polícia política, as ameaças contra Taiwan, a normalização de Hong Kong. As festividades olímpicas servirão, uma vez mais, de biombo a um exercício de propaganda para um regime totalitário. E a fraseologia esportiva, com seu humanismo falso, servirá de justificativa a uma operação de marketing político para a burocracia chinesa. Como de hábito, a “finalidade sem fim” do esporte legitimará o monopólio da violência ilegítima de uma tirania.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – Ler, de Walter Benjamin, “Sur le concept d?histoire”, Oeuvres, ed. Gallimard, 2000, vol. III.
2 – Ler, de Günther Anders, L?Obselescence de l?homme, ed. Ivrea/L?Encyclopédie des nuisances, 2002.
3 – Ler, de Friedrich Engels, “Lettre à Franz Mehring, 14 juillet 1893”, in ?uvres choisies, de Karl Marx e Friedrich Engels, Editions du Progrès, Moscou, 1955, vol. II, pp. 545-546.
4 – Le Monde, 14 de julho de 1998.
5 – Le Monde, 18 de julho de 1998.
6 – Claude Cabanes, L?Humanité, 13 de julho de 1998.
7 – Para a crítica dos “humanistas do esporte”, ler, de Jean-Marie Brohm e Marc Perelman, Le Football, une peste émotionnelle; de Marc Perelman, Les Intellectuels et le football; e, de Patrick Vassort, Football et politique, todos os três publicados em 2002 pelas Editions de la Passion (Paris).
8 – “L?industrie florissante du dopage”, Capital, n° 118, julho de 2001.
9 – EPO é a eritropoietina, um hormônio p