A imigração seletiva na França
A divisão entre imigrantes “escolhidos” e “sofridos”, fixada pelo governo de Nicolas Sarkozy, é minada por uma contradição fundamental: essa construção política não tem uma lógica coerente. Pelo contrário, exige que o indivíduo deixe de lado uma das esferas da sua vida, a família ou o trabalho, algo simplesmente impossível
Em 2005, ao presidir uma convenção de seu partido dedicada à imigração, Nicolas Sarkozy testou um novo vocabulário político que prometia ser um sucesso: “Pretendo que passemos de uma imigração sofrida a uma imigração ‘escolhida’”. O presidente francês decretava então que a escolha pertence ao Estado, não aos imigrantes. A novidade está em opor essa “opção” que o governo tem à imigração que definida como “sofrida”. Sarkozy afirmou pouco depois: “O mínimo é que a França decida quem tem o direito de se instalar em seu território e quem não tem”1. Sua declaração foi compreendida como uma resposta de bom senso a um problema ao mesmo tempo econômico e político.
De um lado, não se trata de rejeitar a imigração no seu princípio – ao contrário, clama-se em alto e bom tom que a França deve permanecer uma terra de mestiçagem. É uma maneira de conjugar, sem tensão aparente, as exigências do pragmatismo econômico e da determinação política. É também um modo de não dar razão nem aos partidários da abertura das fronteiras, nem aos da imigração zero, ou seja, à “esquerda da esquerda” e à “direita da direita” e, ao mesmo tempo, privar a esquerda socialista de seu terreno político favorito, isto é, o “meio-termo” entre os extremos.
No entanto, a divisão entre imigrações “escolhida” e “sofrida” é minada por uma contradição fundamental: essa construção política não tem uma lógica coerente, nem é fundamentada empiricamente.2 Na realidade, a primeira é, por definição, uma imigração de trabalho, enquanto a segunda visa, sobretudo, a imigração familiar. Entretanto, a oposição entre as duas se desfaz logo que examinamos a realidade. De um lado, os trabalhadores têm a intenção de ter uma família, pois sua conduta não é ditada apenas por interesses financeiros. De outro, as famílias têm a tendência a procurar trabalho, já que as relações humanas não impedem a lógica econômica. Não se trata, entretanto, apenas de humanidade, mas também de racionalidade: é absurdo considerar que família e trabalho existam em mundos paralelos, sem nenhuma relação. A proposta de Sarkozy não chega, portanto, a ser uma solução: não se poderia em um mesmo movimento encorajar a imigração “escolhida” e desencorajar a imigração “sofrida”.
Sem dúvida, os sucessivos governos franceses têm se dedicado a “reequilibrar” as duas: hoje em dia, a imigração familiar é aproximadamente nove vezes maior que a de trabalho.3 A carta enviada pelo presidente, em 9 de julho de 2007, ao ministro da Imigração, Brice Hortefeux, é clara: “Tenha como objetivo que a imigração econômica represente 50% do fluxo total das entradas”. Como? Diminuindo a entrada familiar no país, em vez de aumentar a imigração de trabalho, conforme demonstra o relatório anual do Comitê Interministerial de Controle da Imigração.4 Se a parte relativa ao trabalho na imigração permanente vinda de outros países cresceu efetivamente em 2007 em relação a 2006 (14,1% contra 11,3%), é principalmente graças à diminuição das autorizações de residência por motivo familiar.
Prioridade para os empregos franceses
A renúncia à imigração “escolhida” não é um efeito da crise. A conjuntura permite apenas justificar a posteriori o que os números já denunciavam. Foi preciso ter isso em mente quando se definiu, em 31 de março de 2009, a missão do novo ministro da Imigração, Eric Besson. No futuro, “a prioridade absoluta deve ser dada ao retorno ao emprego das pessoas que foram privadas dele na França”.
Escolhida ou não, a imigração é ainda apresentada como um problema. Senão, por que elaborar continuamente novas legislações, sempre mais rígidas? Visivelmente, a retórica de Sarkozy não visa resolver o problema, mas constituí-lo como tal.
Comparar seus propósitos do dia 9 de junho de 2005 com o discurso político pronunciado na véspera na Assembleia Nacional por seu rival, o novo primeiro-ministro Dominique de Villepin, é esclarecedor. Se Villepin fala de imigração “escolhida” (mas não “sofrida”), é apenas por oposição à imigração ilegal e à fraude; menos inventivo que seu rival, ele não concebe a ideia de atacar a imigração familiar. Entretanto, Sarkozy realiza, graças a seu vocabulário, uma dupla mudança. A imigração “sofrida” era chamada até então de imigração “de direito”. É ela que deve ser considerada a partir de agora. Não basta mais lutar contra a imigração ilegal.
Assim, a expulsão de imigrantes em situação irregular ocupou lugar de destaque na comunicação governamental. E, no entanto, os sem documentos não são suficientemente numerosos na França, a ponto de fazer da imigração um problema maior. Em contraste com os Estados Unidos, onde os 12 milhões de clandestinos estavam ausentes da última campanha eleitoral, organizar o debate público na França em torno de algumas centenas de milhares de imigrantes em situação irregular, para uma população de mais de 60 milhões de habitantes, demanda um trabalho político considerável. O “problema da imigração” não se coloca sozinho; ele existe apenas porque é apresentado por outrem, e só permanece porque é assistido e renovado.
“De um lado”, explicava Nicolas Sarkozy em 2005, “o respeito à vida familiar é um de nossos valores e representa uma condição da integração. De outro, o reagrupamento familiar ocupa hoje um lugar muito importante no equilíbrio dos fluxos migratórios e é a origem de muitas fraudes – casamentos de fachada ou forçados, golpes para mudar o estado civil…” A hipótese de fraude seria uma consequência da vontade política de reequilíbrio? “É preciso ter a coragem de formular de outro modo os termos do debate. O reagrupamento familiar é certamente um direito, mas não um direito que possa se exercer desprezando as regras&rdquo
;, completa Sarkozy. Do combate contra a fraude passa-se rapidamente à redefinição do próprio direito: “É preciso, portanto, ser mais rigoroso na apreciação das condições de benefícios, habitação, integração prévia ao reagrupamento”. A vida familiar não aparece mais como uma “condição da integração”. Ao contrário, a integração faz agora parte das “preliminares ao reagrupamento” familiar.
Lembremos que o direito à vida familiar tem valor constitucional na França, e que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no seu artigo 8, garante a cada um o direito “ao respeito de sua vida privada e familiar”. O relato da comissão Mazeaud sobre o quadro constitucional da nova política de imigração ponderava, em julho de 2008: “Se o respeito à vida privada e familiar é um direito, a reunião das condições às quais está subordinado seu exercício pode ser objeto de um controle mais firme”, sob formas “validadas pelo Conselho Constitucional e a Corte de Justiça da União Europeia”.
E detalhava todo um programa de luta contra a imigração “sofrida”: “Pela aproximação dos esposos, verificação mais rigorosa da realidade do casamento, da continuidade da vida comum; apreciação atenta das condições de benefício e de habitação para o recebimento das crianças; verificação mais exigente da realidade das relações familiares e educativas antes de conceder a um estrangeiro o benefício de cuidar das crianças residentes ou francesas; estudo mais atento dos documentos de estado civil; veto intransigente e efetivo dos reagrupamentos de famílias polígamas; verificação efetiva do caráter ‘desigual’ do atentado ao respeito à vida privada e familiar à qual o Ceseda [Código de entrada e da autorização de residência dos estrangeiros e do direito ao asilo] submete o reagrupamento familiar”. A comissão confirmava, assim, a imigração familiar como um problema a ser reduzido.
As leis sobre a imigração de 2006 e 2007, assim como aquela que controla a validade dos casamentos em 2006, endureceram a dupla lógica de restrição do direito à vida familiar, em vigor desde 2003. Consequentemente, o recuo dos números, do reagrupamento familiar aos casamentos binacionais, é exemplar: entre 2006 e 2007, o número de títulos de autorizações de residência concedidos por motivos familiares teve uma diminuição de 10,6%. A queda é “de tamanha amplitude que pode ser vista como uma verdadeira ruptura”, observa com satisfação o balanço interministerial já citado.
Por que relançar o “problema da imigração”, graças à invenção da “imigração sofrida”, e por que em junho de 2005? Bem, novo governo foi nomeado no dia seguinte do veto em referendo do Tratado Constitucional Europeu. Preocupados em interpretar em seu favor “o sentido do voto expresso pelos franceses em 29 de maio”, Sarkozy, da União por um Movimento Popular (UMP), pretendia oferecer assim uma dupla resposta à questão. De um lado, ele quer mostrar que o “outro” ameaçador, cultural e economicamente, se encarna menos na figura do “encanador polonês” que na do imigrante vindo da África; de outro lado, reivindica uma política voluntarista no momento em que muitos eleitores contestam sua privação de qualquer decisão sobre o curso das coisas.
Em resposta à “soberania antieuropeia”, Sarkozy apresenta uma “soberania europeia”. Contrariamente a uma política de imigração que afastaria Paris da Europa, esse plano lhe permite reivindicar um papel motor: “Desejo que a França seja, daqui para a frente, sistematicamente, a primeira na Europa a propor e a construir uma estratégia migratória adaptada às questões do mundo contemporâneo”. O Pacto Europeu sobre Imigração e Asilo, adotado pelo Conselho Europeu em 16 de outubro de 2008, sob a presidência francesa, concluiu uma dinâmica entabulada de longa data: não apenas o “problema da imigração” é tratado no plano da UE, como ele representa agora o coração da nova identidade europeia.
Esse sucesso diplomático está, sem dúvida, relacionado à eficiência eleitoral de uma estratégia que transforma a imigração em um problema, para melhor ignorar outros “problemas”, ou, mais precisamente, outras maneiras de dar sentido ao descontentamento que se expressou nas urnas, e evitar trazer outras respostas às crises globais.
*Eric Fassin é sociólogo.