A importância da quebra da patente do medicamento Trikafta
As patentes impedem a entrada de medicamentos genéricos no mercado, reforçando o monopólio das grandes empresas farmacêuticas.
Maio é o mês da conscientização da fibrose cística, uma doença rara, genética, ainda sem cura, que afeta mais de 100 mil pacientes no mundo todo. Especialmente durante esse mês, é necessário ampliar a conscientização acerca da falta de acesso a medicamentos que podem salvar e melhorar significativamente as vidas dos pacientes, mas que devido ao preço exorbitante estabelecido pela farmacêutica norte-americana Vertex, está fora do alcance da grande maioria das pessoas que vivem com fibrose cística.
No Brasil, cerca de 13 milhões de pessoas possuem alguma das cerca de oito mil doenças raras já listadas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma doença é considerada rara quando afeta até 65 em cada 100 mil indivíduos. Há estimativas de que 80% das doenças raras existentes possuem causa genética, enquanto 20% possuem causas ambientais. Tais doenças são caracterizadas por uma multiplicidade de sintomas que variam não apenas de doença para doença, mas também de pessoa para pessoa, e 70% delas iniciam-se na infância. Estima-se que as doenças raras afetam cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo.
Trata-se de doenças de altíssima complexidade, que apresentam desafios diferentes daqueles relacionados a doenças mais comuns. O número reduzido e disperso de pacientes, a falta de biomarcadores validados e a falta de experiência clínica e de centros especializados são exemplos de algumas das barreiras enfrentadas, além das dificuldades em relação ao diagnóstico e ao tratamento. Não há cura para a maioria das doenças raras, mas um tratamento eficaz e cuidados médicos regulares podem melhorar significativamente a vida dos pacientes.
Em 2014, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras e aprovou as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no Sistema Único de Saúde (SUS), com o objetivo de melhorar o acesso de pacientes aos serviços de saúde e, assim, melhorar a qualidade de vida deles. No entanto, na prática, inúmeros desafios ainda persistem. Até 2022, haviam sido criados apenas 17 centros de referência para o tratamento de doenças raras no Brasil, um número insuficiente para um país de tamanho continental como o Brasil. Além disso, a situação do pronto acesso ao diagnóstico e às terapias medicamentosas disponíveis também continua problemática.
Um dos princípios norteadores da Política Nacional, a incorporação de medicamentos para doenças raras no SUS, enfrenta desafios por conta da escassez de evidências científicas adequadas e, principalmente, do alto custo dos medicamentos. Esses fatores são obstáculos para a incorporação desses medicamentos no SUS, de forma que frequentemente ocorre a judicialização do acesso a tais produtos. Esse é o caso, por exemplo, de medicamentos para a fibrose cística, como o Trikafta, que teve recomendação inicial desfavorável para sua incorporação ao SUS pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), na sua 117ª reunião no dia 29 de março, por conta de seus preços exorbitantes.
A fibrose cística, conhecida também como mucoviscidose, é caracterizada por mutações no gene CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Conductance Regulator), responsável pela regulação de cloreto e de sódio nas células que produzem as secreções do corpo. A expressão defeituosa dessa proteína provoca a produção de muco excessivamente espesso, que, acumulado em órgãos e nas vias do corpo, como pâncreas, intestino e pulmões, causa a disfunção destes. É uma das doenças de rastreamento obrigatório pelo teste de triagem neonatal, por meio da dosagem do tripsinogênio imunorreativo, e é a doença genética grave mais comum da infância no Brasil.
A fibrose cística tem um índice de mortalidade bastante elevado e metade dos óbitos ocorrem antes dos 18 anos. No entanto, existem novos medicamentos que podem melhorar significativamente a expectativa e a qualidade de vida dos pacientes, como o Trikafta, o Symdeko, o Orkambi e o Kalydeco, moduladores da função da CFTR desenvolvidos pela farmacêutica Vertex a partir de 2012 e destinados ao tratamento de longo prazo. Todos os quatro medicamentos encontram-se registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O Kalydeco (ivacaftor), que alcança aproximadamente 60 pacientes elegíveis no Brasil, foi incorporado ao SUS em dezembro de 2019 e está previsto no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da Fibrose Cística. Infelizmente, porém, o alto preço do tratamento anual impossibilitou a incorporação das combinações de medicamentos Orkambi (lumacaftor/ivacaftor) e Symdeco (tezacaftor/ivacaftor) no SUS (respectivamente, R$ 604.711,90 e R$ 617.519,14).
Atualmente, o Trikafta (elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor) é considerado o remédio mais eficaz e que abrange o maior número de pacientes brasileiros. O Trikafta foi aprovado pela Anvisa no primeiro semestre de 2022 e, em janeiro de 2023, a farmacêutica Vertex, empresa que comercializa todos estes medicamentos e combinações, submeteu uma solicitação de incorporação do medicamento para avaliação da Conitec, com o preço proposto para o tratamento anual de R$ 888.174,43 por paciente (valor de 13 caixas da medicação sem impostos). Oferecer esse tratamento de forma universal no SUS custaria, portanto, cerca de R$ 2,3 bilhões por ano.
No dia 29 de março, na 117ª Reunião Ordinária da Conitec, foi avaliada a incorporação do Trikafta no SUS com o preço anual de aproximadamente R$ 640 mil. Foi recomendado o encaminhamento à consulta pública com parecer desfavorável, decorrente, evidentemente, do alto preço do medicamento. O argumento utilizado pela Vertex para justificar o alto preço é o valor elevado de investimentos realizados na pesquisa e desenvolvimento (P&D) desses medicamentos. Uma redução de preço implicaria, segundo a empresa, em prejuízos e no impedimento do desenvolvimento de novos produtos.
Trata-se de um argumento utilizado pela indústria farmacêutica em geral para justificar preços altos de medicamentos, vacinas e diagnósticos. Porém, considerando que as empresas não costumam divulgar em detalhes seus gastos em P&D, cabe o questionamento do fundamento dessas justificativas.
Estudos apontam que a Vertex não foi a única responsável pelos gastos em P&D do medicamento. A Cystic Fibrosis Foundation, dos EUA, também investiu significativamente no Kalydeco, cobrindo a maior parte das despesas pré-clínicas e parte da fase 1 do ensaio clínico. Assim, estima-se que a participação da Vertex nos custos seja de aproximadamente 60%.
As empresas passam a deter o monopólio sobre os produtos por meio de patentes, que, de acordo com a Lei 9.279/96, podem durar até 20 anos. As patentes impedem a entrada de medicamentos genéricos no mercado, reforçando o monopólio das grandes empresas farmacêuticas e fazendo com que os preços dos remédios alcancem níveis exorbitantes. Durante o período de vigência das patentes, as empresas podem praticar preços mais altos do que seriam normalmente aceitos no mercado. No entanto, o que acontece na prática é que essas empresas estão cada vez mais abusando do seu poder de ditar os preços dos medicamentos visando maximizar os lucros, impactando diretamente a vida dos pacientes e restringindo o acesso às melhores opções de tratamento.
Em muitos países do mundo, como nos Estados Unidos e no Reino Unido, os preços cobrados pela Vertex pelos moduladores da proteína CFTR foram considerados excessivos e desproporcionais, justificados apenas pelo uso abusivo de uma posição de monopólio por parte da empresa. Um estudo de 2022 revelou que os custos de produção (com lucro) do Trikafta são estimados em cerca de US$ 5.600 por ano, cerca de 90% abaixo do que os preços praticados nos EUA.
O monopólio da Vertex sobre todos os moduladores da proteína CFTR configura um verdadeiro bloqueio de mercado. É um caso onde pode-se observar a utilização das patentes como um instrumento de domínio abusivo do setor privado sobre a saúde. Com o poder de estabelecer e praticar preços que muitas vezes nem os usuários, nem os governos podem arcar, as práticas da Vertex impactam seriamente os direitos humanos e a vida das pessoas que vivem com fibrose cística. Pode-se dizer que as empresas farmacêuticas obtêm seus lucros a partir da exploração do desespero humano, uma vez que quando alguém precisa de um tratamento, irá ao extremo para consegui-lo, mesmo que precisem vender seus bens e criar dívidas.
Assim, as empresas utilizam o sistema de patentes de forma a estender seus monopólios e praticar preços cada vez mais altos. A proteção patentária constitui, portanto, uma significativa barreira para a garantia do acesso aos medicamentos, sobretudo nos países menos desenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil. No caso da fibrose cística, trata-se de medicamentos de custo tão alto que nem os sistemas de saúde de países mais desenvolvidos são capazes de arcar.
No Reino Unido, essa realidade gerou uma poderosa campanha de protestos liderada por pacientes e seus familiares. Num primeiro momento, isso não foi o suficiente para a Vertex abaixar os preços de seus medicamentos, e o governo do Reino Unido se manteve firme em sua decisão de não os adquirir e disponibilizá-los, após a farmacêutica ter recusado uma oferta de 500 milhões de libras por cinco anos e, potencialmente, 1 bilhão de libras por 10 anos para o Orkambi e outros medicamentos para fibrose cística.
Diante do impasse entre o sistema de saúde britânico e a Vertex em relação ao preço dos medicamentos para fibrose cística, a entidade instigou a empresa, que declarava estar oferecendo o melhor acordo possível, a abrir mão de sua cláusula de confidencialidade e deixar que os pacientes e contribuintes julgassem se se tratava de um preço justo. Mais uma vez, o argumento da Vertex para justificar o custo é o investimento necessário para o desenvolvimento de medicamentos para fibrose cística.
Em meio aos desacordos entre o sistema de saúde britânico e a Vertex, as famílias dos pacientes com fibrose cística formaram um clube de compras para ajudar umas às outras nos trâmites legais e técnicos da importação da versão genérica e mais barata do medicamento Orkambi, produzido pelo laboratório argentino Gador.
A iniciativa do clube de compras trouxe ainda mais atenção da mídia para o caso da fibrose cística, e mostrou que havia medicamentos de alta qualidade tratando pacientes em outros lugares do mundo. Pouco tempo depois, a ministra da saúde britânica reconheceu que o Reino Unido tinha a obrigação moral de averiguar as alternativas e potencialmente derrubar o monopólio da Vertex.
A história da primeira família que foi para a Argentina com o clube de compras para comprar o Orkambi ganhou cobertura nacional, e líderes da oposição do governo passaram a reconhecer a pressão em suas falas e discursos. Logo após, o sistema de saúde britânico anunciou um acordo com a Vertex que finalmente tornaria o Orkambi disponível para todos que precisam. No ano seguinte, foi anunciado um novo acordo para o acesso ao medicamento Trikafta. Os detalhes do acordo e o valor pago pelo sistema de saúde britânico, no entanto, são confidenciais. Além disso, o mesmo laboratório argentino desenvolveu e produziu um genérico do Trikafta chamado Trixacar, que tem o preço de aproximadamente R$ 150 mil por ano por paciente.
Uma importante lição a partir do caso do Reino Unido é que existem outras opções. Há mecanismos disponíveis para tornar os medicamentos mais acessíveis, como o licenciamento compulsório. A licença compulsória consiste em uma autorização estatal para o uso do objeto de uma patente ou de um pedido de patente por terceiros, sem o consentimento do titular ou do depositante. Dessa forma, com a promoção da competição, o governo não se vê mais obrigado a comprar de apenas um fornecedor, podendo negociar com outros. Permite-se, assim, a produção de genéricos e biossimilares, que contribuem para o fornecimento de remédios pelo SUS para todas as pessoas que precisarem. A licença compulsória é, portanto, uma política pública eficiente de promoção do acesso a medicamentos e do direito fundamental à saúde.
Trata-se de uma medida fundamental de política de saúde que permite a produção local ou a importação de um medicamento patenteado, contribuindo para a redução do preço. A licença compulsória não causa riscos ao sistema de propriedade intelectual, uma vez que as empresas, além de seguirem vendendo seus produtos, passam a receber royalties dos produtores concorrentes. Esse mecanismo já foi utilizado diversas vezes em vários países do mundo, inclusive está previsto no Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês).
No entanto, há resistência por parte da indústria por conta da perspectiva de redução de seus lucros abusivos. Além disso, os países ricos e as empresas farmacêuticas exercem uma forte pressão geopolítica para impedir que os países do Sul Global utilizem essa medida. Nesse contexto, cabe destacar o papel do Estado na garantia do pleno acesso a medicamentos para quem precisa, como parte do exercício do direito fundamental à saúde.
O licenciamento compulsório de todas as patentes e pedidos de patente relacionados ao Trikafta acabaria com o sofrimento e a angústia de uma parcela significativa das pessoas afetadas pela fibrose cística, e teria o potencial de poupar milhares de vidas no Brasil. Sendo assim, nos resta exigir que a nova gestão do Ministério da Saúde cumpra com o seu dever, fortalecendo o SUS e seus programas de acesso a tratamentos. Esse é um caminho para romper com os retrocessos que acometeram nosso país nos últimos anos e resgatar o protagonismo do Brasil na defesa do direito à saúde.
Maria Clara Pfeiffer é mestranda em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assistente de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).
Alan Rossi Silva é coordenador de Assuntos Internacionais do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e doutorando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Carolinne Scopel é doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e consultora farmacêutica da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).
Susana van der Ploeg é coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e doutoranda em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).