A improvável aliança entre Paris e Washington
O acordo pontual na retirada das tropas sírias não significa o engajamento de Paris numa questão crucial: o desarmamento do HezbollahAlain Gresh
Todo o mundo se interroga. Os diplomatas, os editorialistas, os responsáveis políticos pesam cada gesto do presidente Jacques Chirac, cada declaração do embaixador Bernard Emié. Terá a França mudado de política no Oriente Próximo? Terá decidido encerrar seu contencioso com os Estados Unidos? Terá reatado com sua tradição colonial de aliança com a minoria cristã maronita? A cooperação quase sem brumas entre Paris e Washington sobre o dossiê libanês há vários meses surpreende até os principais interessados.
Foi o próprio presidente Jacques Chirac quem tomou a iniciativa. Em junho de 2004, por ocasião da cúpula do G-8, em Sea Island, nos Estados Unidos, ele abordou seu homólogo americano para evocar a idéia de uma resolução do Conselho de Seguarança das Nações Unidas pedindo a retirada síria do Líbano. Insiste sobre a importância deste país, sobre a necessidade de um retorno à democracia, na hora em que o presidente Bush tenta “vender” seu projeto de “grande Oriente Médio”. Entretanto, alguns meses antes, durante sua viagem a Beirute para a cúpula francófona, em outubro de 2002, Chirac afirmava ainda que só uma paz regional “permitirá ao Líbano e à Síria harmonizar suas relações e concluir a retirada completa das forças sírias” do país1.
O que é que explica a mudança de posição francesa? Primeiro a decepção sentida em relação ao presidente Bachar El-Assad, que Chirac havia apadrinhado num primeiro tempo, mas que se revela incapaz de iniciar reformas internas sérias. A atribuição por Damasco de um importante contrato petrolífero à Occidental PetroCanada em detrimento da Total não melhorou o clima. Mais grave, o sentimento do presidente que a Síria sabotava as reformas econômicas preconizadas por seu amigo pessoal Rafic Hariri e punha assim em perigo as decisões da reunião de Paris II (em novembro de 2002), que havia liberado somas substanciais para ajudar no reescalonamento da dívida. Enfim, o presidente francês via nesta cooperação com Washington a oportunidade de “fechar a página” do Iraque. Na Casa Branca, onde ninguém jamais se interessou tanto pelo futuro do Líbano, a surpresa foi grande.
O dilema Hezbollah
O objetivo dos Estados Unidos, no contexto de sua estratégia regional, é acabar com o regime sírio e obter o desarmamento do Hezbollah
Em setembro de 2004, esta colaboração se concretiza na resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU. A resolução abrange duas partes: a exigência de retirada das tropas sírias e, por insistência da Casa Branca, um pedido de desarmamento das milícias (tanto dos campos palestinos quanto do Hezbollah). Durante toda a crise que se seguirá, Washington e Paris trabalharão em concerto, obtendo a partida das tropas sírias, a criação de uma comissão de inquérito sobre o assassinato de Rafic Hariri e a manutenção das eleições legislativas na data prevista.
Mas esse bom entendimento continuará? O objetivo dos Estados Unidos, no contexto de sua estratégia regional, é acabar com o regime sírio e obter o desarmamento do Hezbollah. A França espera o congresso do Partido Baath, que começa em 5 de junho, para rever sua política em relação ao regime de Damasco. Sobre o desarmamento do Hezbollah, sua posição é dúbia; tentou, durante as negociações com o secretário-geral dessa organização, reiterar diversas vantagens políticas em troca do desarmamento, o que o Hezbollah recusou. Mas Paris se engajará em um confronto que envolve um tema como esse, que divide as forças libanesas, inclusive a oposição? 2.
Tanto que, militarmente, o desarmamento do Hezbollah não é um caso de menor importância. Quem poderá impor-se? Não, certamente, o exército libanês, no qual a maioria dos soldados é xiita e que desenvolveu uma sólida cooperação com o Hezbollah na luta contra a ocupação israelense. E a 7 de março de 2005, levando centenas de milhares de pessoas à rua, a organização provou sua força, que o resultado das eleições deverá confirmar.
Jogo de forças
O futuro do Líbano está ligado ao conflito entre Israel e Palestina, à evolução da situação em Damasco, à crise iraquiana e ao confronto Irã e x EUA
“Nunca apontamos nossas armas contra libaneses”, explica, calmamente Sayyed Hassan Nasrallah, o secretário geral do Hezbollah. “Nossas armas sempre serviram contra os ocupantes. Servem ainda para proteger o país contra as agressões”. Todos os dias aviões israelenses sobrevoam o território. Por longos anos Israel ocupou o sul do país, invadiu o país várias vezes. “Defendemos a soberania do Líbano”, prossegue ele, antes de acrescentar, irônico: “Antes, quando um governo se formava em Beirute, era preciso consultar Damasco. Agora, precisamos obter o aval de Paris e Washington, do Cairo e de Riyad”.
Na realidade, todo mundo o compreende, o desarmamento do Hezbollah não é uma questão puramente interna. Quer se queira ou não, o futuro do Líbano está ligado ao conflito entre Israel e Palestina – quando não fosse pela presença de 400 mil palestinos no Líbano – e à evolução da situação em Damasco. Mas também ao jogo regional, principalmente a crise iraquiana e o confronto entre o Irã e os Estados Unidos. O Hezbollah é uma peça central do dispositivo de forças que se opõem ao jugo americano e israelense, e é pouco provável que renuncie a esse papel, mesmo em troca de “compensações” no cenário libanês.
(Trad.: Betty Almeida)
1 – Citado por Georges Corm, “Crise libanaise dans un contexte régional houleux”, Le Monde diplomatique, abril de 2005.
2 – A do desarmamento
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).