A insegurança social programada
A justificativa do governo francês para sua reforma estrutural é a seguinte: com a queda do crescimento econômico, diminuem os depósitos, aumenta o déficit e diminui o consumo. Portanto, para a área da saúde, a palavra de ordem é privatizarMartine Bulard
Seria a previdência social, nos próximos tempos, apenas uma velha lembrança? O governo francês utiliza os déficits previstos para este ano para concluir o argumento com que justifica sua reforma estrutural, oficialmente marcada para o final de 2004. Entretanto, as medidas já tomadas dão o tom: diminuição do reembolso, aumento na estimativa de gastos hospitalares, aumento dos impostos sobre o tabaco e o álcool, fechamento de leitos nos hospitais… O pacote, por mais tradicional que seja, é utilizado na maior parte dos países desenvolvidos.
Os sistemas públicos de saúde estão sendo revistos em toda parte, quer sejam baseados em recursos ligados ao emprego e geridos paritariamente (o chamado sistema “bismarkiano”, como na Alemanha ou na Holanda), ou estatizados e financiados pelos impostos (sistema “beveridgiano” como na Grã-Bretanha, na Itália, ou na Suécia), ou ainda mistos (como na França). Em toda parte, as desigualdades explodem, porém os déficits também, enquanto as restrições dos benefícios foram pensadas para resolver os rombos financeiros.
Na realidade, a curva dos déficits sociais segue, de maneira global, a do desemprego. Na França, se a receita das contribuições tivesse aumentado em 2002 como em 2001 (em 6%), não haveria rombo financeiro. Mas a queda do crescimento reduziu os depósitos e alimentou os déficits, os quais suscitaram programas de austeridade que provocam uma baixa de consumo e asfixiam o crescimento, o que reduz as “entradas” de contribuições sociais… e assim vai. Um poço sem fundo.
A mina de ouro das contribuições sociais
Essa simples constatação deveria provocar dúvidas sobre uma medicação tão eficaz quanto a sangria dos médicos de Molière. Mas ela se choca contra uma verdadeira barreira ideológica que impede a observação da realidade presente e, forçosamente, a consideração de novas técnicas.
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As pressões dos grupos interessados na mina de ouro das contribuições sociais (uns 3,5 trilhões de dólares, no mundo inteiro) são efetivamente reais
É evidente que não há um complô mundial, nem um acordo clandestino impondo urbi et orbi as mesmas receitas. Em compensação, as pressões dos grupos diretamente interessados na mina de ouro das contribuições sociais (uns 3,5 trilhões de dólares, em escala planetária) são efetivamente reais. Essas pressões são feitas por organismos internacionais que pretendem ser absolutamente neutros. Pode-se citar, por exemplo, o relatório do Banco Mundial de 1994, que serviu de modelo a todos os outros e explicava, minuciosamente, que as despesas se tornariam “um fardo insuportável para as nações, alterando definitivamente os sistemas de previdência1“. Por sua vez, a Organização Mundial do Comércio (OMC) entrou na dança com o Acordo Geral sobre os Serviços (AGS), novo sinônimo de privatização.
Essas idéias avançam com a mesma facilidade com que os pretensos especialistas mudam facilmente de cargo. Por exemplo, uma das co-autoras do relatório do Banco Mundial, Estelle Jame, juntou-se, com armas e bagagens, à equipe de George W. Bush, para trabalhar no dossiê… da privatização dos benefícios sociais e previdenciários2. Na França, o ministro da Saúde, Jean-François Mattei, e o do Serviço Social, François Fillon, encarregaram dois figurões do mundo privado, François Chadelat, alto funcionário da seguradora Axa, e Alain Coulomb, representante de hospitais e clínicas privadas, de fazerem as propostas apropriadas para distinguir os papéis do público e do privado3.
A saúde, uma questão contábil
As transferências acontecem nos dois sentidos: Gilles Johanet, ex-diretor da Caisse Nationale de l?Assurance Maladie (CNAM), passou, em 15 de setembro último, para a direção da divisão “Saúde e Seguros Coletivos” de um outro gigante dos seguros: a AGF. Os especialistas se multiplicam, mas as soluções permanecem as mesmas: redução das despesas coletivas e espaço para a iniciativa individual, considerada mais competitiva devido a um preceito digno das Tábuas da Lei.
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A própria Organização Mundial do Comércio (OMC) entrou na dança com o Acordo Geral sobre os Serviços (AGS), novo sinônimo de privatização
Foi em nome deste princípio que se instaurou, desde meados da década de 80, um controle puramente contábil. Ao reduzir o número de médicos, o número de farmácias, o número de leitos hospitalares, dizia-se que haveria menos pacientes… ou, pelo menos, menos despesas. Há um quarto de século os sucessivos governos franceses dedicam-se a isso e criaram um numerus clausus para os médicos e enfermeiros. Operação com sucesso além do esperado. A partir de 2010, haverá mais médicos aposentando-se do que ingressando na profissão; atualmente, faltam uns 3.500 nos hospitais públicos, apesar da presença de 9.000 profissionais estrangeiros (precários e mal remunerados).
O número de leitos foi reduzido, mais no setor público (35.352 leitos em sete anos) do que no setor privado (18.475). Os pequenos ambulatórios locais, que poderiam encarregar-se de problemas corriqueiros e desempenhar o papel de triagem de pacientes, desapareceram. Contudo, elas teriam sido muito úteis nesse verão, e sem dúvida, aliviariam a pressão que pesou sobre os pronto-socorros dos grandes centros. No interior, às vezes, é preciso andar dezenas de quilômetros para encontrar um hospital super-equipado, mas pouco adaptado ao tratamento de casos banais. Pelo mesmo motivo, maternidades foram fechadas em nome da segurança das mulheres, reorientadas para grandes complexos, quase sempre sofisticados demais para uma gravidez sem problemas. E ainda causa surpresa que o item “transporte” de serviços reembolsados aumente!
Sinais de alerta na França
Uma das co-autoras do relatório do Banco Mundial juntou-se à equipe de George W. Bush para trabalhar no dossiê… da privatização dos benefícios sociais
Realmente, as despesas continuam a subir. Sem que as desigualdades regridam. Ao contrário. A ausência de um controle articulado do atendimento médico transforma alguns setores em deserto: a região da Picardia, por exemplo, tem apenas 110 especialistas para 100 mil habitantes, contra 220, na Provença-Alpes-Côte d? Azur, 234, na Île de France, e 169, em média, para todo o território (em relação à União Européia).
É verdade que a França continua em primeiro lugar no ranking mundial, segundo a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os médicos ainda não fazem o paciente esperar um ano por uma operação da bacia ou do coração, como na Grã-Bretanha, ou 208 dias por uma operação de catarata, como na Finlândia, ou 128 dias, como na Dinamarca4.
Porém, os sinais de alerta se multiplicam: na região de Île de France [capital], 60% dos pacientes não conseguem marcar um exame de imagem por ressonância magnética (IRM) com menos de duas semanas de antecedência e os especialistas acham que não é possível ultrapassar esse prazo5. “O equipamento médico é muito limitado”, observa o professor Bernard Debré. “A França está na última posição mundial em número de IRM, atrás da Turquia6.” Naturalmente, os que gozam de relações especiais (elites econômicas, políticas e da mídia) não passam por isso.
Dez mil óbitos prematuros
Os especialistas abundam e as soluções continuam as mesmas: corte nas despesas coletivas e espaço para a iniciativa individual, mais “competitiva”
A gritante ausência de medicina preventiva, sua marginalização onde ela era embrionária, como na escola ou na empresa, acentuam ainda mais o abismo das desigualdades. Segundo o estudo do Centro de Pesquisa, Estudo e Documentação em Economia da Saúde (Centre de recherche, d?étude et de documentation en économie de la santé – Credes), 14,7% dos franceses declaram abdicar de tratamento por razões financeiras, e entre eles 30% são desempregados. Apesar da criação da Assistência Universal à Doença (Couverture maladie universelle – CMU), de 25% a 30 %, dos que têm direito a ela não puderam se tratar por falta de recursos.
As famílias operárias fazem duas vezes menos consultas com especialistas ou com dentistas, do que as famílias de executivos. As crianças de bairros desfavorecidos – em Zonas de Educação Prioritária (ZEP) – têm mais problemas oftálmicos ou dentários do que os alunos mais ricos. Da mesma forma, a ausência de meios de contracepção é nitidamente mais comum entre os operários e entre as mulheres que não dispõem de assistência médica complementar.
As famílias operárias gastam duas vezes mais com hospital do que as dos executivos. Procuram tratamento mais tarde e isso custa mais caro. “Dez mil por ano é o número de óbitos prematuros que poderia ser evitado se os operários e assalariados tivessem a mortalidade dos executivos mais graduados”, observam os autores de Inégalités sociales de santé7, o trabalho mais importante sobre essa questão realizado na França.
EUA, recordista com despesas de saúde
A gritante ausência de medicina preventiva e sua marginalização, na escola ou na empresa, acentuam ainda mais o abismo das desigualdades
Ao invés de combater essas injustiças humanamente insuportáveis e economicamente aberrantes, os projetos em curso vão acentuar ainda mais os desvios. Ainda em 2001, o Movimento das Empresas da França (Mouvement des entreprises de France – Medef, sindicato patronal) apresentou um relatório completo sobre sua versão da previdência social: um sistema à americana, com uma assistência mínima para os mais pobres, paga com impostos; um seguro complementar para os outros, mediante contratos coletivos ou individuais abertos às mutualidades8 e às companhias de seguros. Os resultados econômicos e sociais desse tipo de poção são, entretanto, conhecidos.
Os Estados Unidos, por exemplo, sempre citado como exemplo do país do livre seguro, detém o recorde de despesas com saúde. Em 2001, gastaram com a saúde 13,9% das riquezas produzidas contra 10,7% para a Alemanha, 9,5% para a França e 7,5% para a Finlândia, onde a regra é a assistência gratuita9. 41 milhões de norte-americanos não dispõem de qualquer assistência social. Um fenômeno que, hoje, atinge as camadas médias. Em 2001, segundo o New York Times, “1,4 milhão de norte-americanos perderam sua assistência a doenças, dos quais 800 mil tinham renda superior a 75 mil dólares10“. É devido ao aumento do desemprego durante esse período, mas especialmente por causa do brusco aumento dos preços dos seguros – mais de 48% em três anos, observa o patronato11, que quer reduzir seu financiamento.
Uma “cesta de tratamentos”
Ao invés de combater essas injustiças humanamente insuportáveis e economicamente aberrantes, os projetos em curso vão acentuar ainda mais os desvios
Além disso, e contrariamente às idéias correntes, os pacientes que querem ser reembolsados não podem escolher seu médico e este não pode exercer a medicina como quiser: “o managed care – gestão dos tratamentos- tornou-se, na prática, a polícia nacional da saúde12“, escreve George Anders, que cita o caso dos pediatras obrigados, pelas companhias de seguros, a reduzir suas consultas para dez minutos.
Inspirado por esse modelo, o governo francês procura remodelar as áreas cobertas pelo público e pelo privado. Uma das cabeças dessa tentativa, o deputado Jacques Barrot, da maioria, explica: “Hoje é preciso distinguir entre pequenos e grandes riscos. [Estes] devem ser encargo do seguro obrigatório, os outros devem ser cobertos por seguros complementares ou voluntários, mutualidades ou seguros privados13.” Tal distinção é clinicamente absurda (um pequeno risco pode esconder uma grande doença), socialmente injusta (somente os mais ricos poderiam se tratar) e economicamente cara (quanto menos se tratar a tempo, mais se gasta depois).
O relatório de Chadelat14, base do trabalho do governo, está redigido com o mesmo espírito. Ao propor “uma mudança maior no mecanismo de cobertura à doença, na França, tal como existe desde 1945”, ele pede a definição de uma “cesta de tratamentos” (tratamento mínimo, sem definição precisa) que seria co-financiada pelo regime geral da previdência social (seguro-doença obrigatório) e por um seguro complementar (AMC, essencialmente constituído por mutualidades). Os dois garantiriam 80% do financiamento e o restante seria coberto por seguros “supercomplementares”. Ora, a AMC não existe para uma parte dos assalariados em tempo parcial e desaparece quando os trabalhadores ficam desempregados ou são aposentados. Desse modo, apenas 52% das pessoas com mais de 65 anos poderiam dispor dele.
O perigo de um recuo histórico
Em 2001, 1,4 milhão de norte-americanos perderam sua assistência a doenças; 800 mil, entre eles, tinham renda superior a 75 mil dólares
Além disso, as mutualidades são, atualmente, submetidas a regras próximas às das seguradoras, e os preços a pagar são cada vez mais pesados. Finalmente, este novo desmembramento se faria acompanhar por uma redução da base de cálculo da contribuição social por parte dos empregadores e dos assalariados, o que representaria, para a previdência social, um custo avaliado em 2 bilhões de euros (6,8 bilhões de reais, o que representa mais de 2% dos recursos disponíveis).
Esta opção pela mercantilização generalizada poderá ser explosiva para toda a sociedade. A previdência social não se resume apenas a questões de saúde ou de aposentadoria: ela dá forma aos contornos da organização social e aos que não têm capital uma certa autonomia diante dos riscos da existência. Permite sair da caridade e do assistencialismo para instalar um sistema de direitos. Essa é a grande ruptura gerada pelo nascimento da previdência social: através de lutas, as relações sociais foram progressivamente emancipadas do mercado.
Jogar os contribuintes na incerteza do contrato individual e na loucura dos mercados financeiros representaria um recuo histórico. Uma grande parte dos jovens e das mulheres – trabalhadores sem estabilidade, sem cobertura complementar, mas “ricos” demais para terem direito à CMU (Assistência Universal à Doença) – teria que aceitar, sem revolta, viver na angústia permanente do dia seguinte, sem nunca poder projetar-se positivamente para o futuro.
Contribuição para saúde tem que aumentar
Quanto às pessoas idosas com pensões insignificantes, elas não teriam direito a uma aposentadoria tranqüila. Partindo do princípio de que 70% das despesas com saúde ocorrem durante os seis últimos meses de vida, o economista Alain Cotta propôs recentemente “uma espécie de autoregulação organizada pela sociedade, [que criaria] uma função social: dar a morte15“. E fixar o limite em “mais de 90 anos”, o que seria o equivalente a codificar uma espécie de eutanásia social. Pode-se argumentar, inclusive, que é um progresso, uma vez que em 1969 um representante da Câmara dos Lordes, em Londres, fixou a idade limite em 80 anos16.
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George Anders cita o caso dos pediatras, obrigados pelas companhias de seguros a reduzir suas consultas para dez minutos: é o managed care
Essa sociedade que despreza os idosos, que exclui os jovens, que incentiva uma individualização desenfreada, não é uma fatalidade. É evidente que são indispensáveis muitas reformas. E ainda é preciso admitir que as despesas sociais irão aumentar. Na realidade, a elevação do nível de vida se traduz, em todos os países, por uma maior demanda de cuidados (e também de cultura, de lazer); os progressos tecnológicos geram custos de tratamento mais altos; o aumento da expectativa de vida exige um acompanhamento médico mais significativo; o surgimento de patologias complicadas (Aids) ou de evolução rápida (câncer) exigem recursos financeiros suplementares sem esquecer a retomada da natalidade (o aumento do número de parteiras nos reembolsos da previdência social é um dos mais altos: 11,8% em 2002).
É fundamental, portanto, que a parte da riqueza nacional destinada à saúde aumente. Isso não é nem um drama, nem uma deficiência insuperável, se o debate não se orientar por pistas falsas, mas conceber uma nova arquitetura da saúde baseada em novos recursos financeiros. Inicialmente, é preciso não esquecer que as despesas de saúde são também receitas de crescimento. Geram empregos de serviços qualificados, junto aos particulares, aos hospitais, aos laboratórios e também na indústria e no campo da pesquisa. A promoção de uma verdadeira política de prevenção, especialmente nos estabelecimentos escolares e nas empresas, também criaria postos de trabalho. De uma maneira mais geral, o crescimento do emprego qualificado representa o melhor meio de tampar o buraco: 100 mil desempregados a menos representam um bilhão de euros a mais (3,4 bilhões de reais) em contribuições previdenciárias e sociais.
Algumas experiências promissoras
Aliás, essa é a razão pela qual as contribuições deveriam permanecer vinculadas à geração de riqueza em uma empresa e não serem transferidas para o orçamento do Estado e para o imposto através dessa pérola inventada pelo Partido Socialista: a contribuição social generalizada (CSG). Deveriam permitir aliviar o peso sobre os rendimentos salariais, pois sua composição corresponde a 93% dos rendimentos do trabalho!
Da mesma forma, a isenção de contribuições sem contrapartida positiva libera enormes massas de dinheiro e uma parte vai para as Bolsas de Valores. De 1,3 bilhões de euros, em 1991, elas passaram para 8,8 bilhões de euros em 2001 (mais que o déficit anunciado no mesmo ano). Uma recuperação parcial daria oxigênio para realizar uma verdadeira reforma do financiamento, segundo o mesmo princípio das aposentadorias: ao ampliar a base pelo valor agregado (e não apenas aos salários) e modulando as contribuições para favorecer, em termos relativos, as empresas que criam empregos qualificados corretamente remunerados17. Portanto, “valorizar o trabalho” de um jeito que não seja intensificando-o nem suprimindo um dia de descanso.
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A mercantilização da previdência social não se resume a questões de saúde ou de aposentadoria, pois ela dá forma aos contornos da organização social
Do ponto de vista da saúde, mudanças podem ocorrer, especialmente com a introdução de um sistema mais preventivo. Ora, por enquanto, a prevenção só mobiliza 2,3% das despesas totais. Em um primeiro momento, a prevenção custaria um pouco mais, mas se tornaria rapidamente fonte de economias. As experiências feitas na região Seine Saint Denis no campo da higiene dentária, nas escolas, se traduzem em cáries menos freqüentes (e por tratamentos menos caros por parte dos dentistas). Outras experiências tão positivas quanto essas foram realizadas pelas mutualidades.
Redefinir o papel do médico
Outra pista de pesquisa para um sistema de saúde mais eficiente e mais econômico: os medicamentos. Contrariamente ao que se diz com freqüência, a França não detém o recorde do consumo de remédios. Fica atrás da Suécia, dos Estados Unidos, do Canadá, da Finlândia, da Austrália, da Irlanda, mas adiante da Alemanha e da Itália18
. Ela parece ser, no entanto, campeão no consumo de antidepressivos… É evidente, de qualquer maneira, que as empresas farmacêuticas pesam muito no processo de decisão, embora o governo tenha acabado de lhes dar a liberdade de fixar o preço dos remédios novos (leia, nesta edição, o artigo “À sombra das Big Pharma”, de Philippe Rivière). Para sair dessa engrenagem, comissões transparentes e independentes, compostas por médicos, representantes da previdência social, das mutualidades e dos pacientes, deveriam fixar listas de preços, privilegiando os genéricos (que representam, atualmente, apenas 10% do consumo atual, contra 28% na Alemanha, por exemplo).
Outro trunfo: a redefinição do papel do médico. É evidente que não se trata de questionar a liberdade de escolha do doente ou a liberdade de prescrição do profissional experiente. Mas é preciso reconhecer os obstáculos do sistema atual: 14% dos clínicos gerais prescrevem 50% dos remédios reembolsados; 40% dos especialistas e 50% dos dentistas ultrapassam as tarifas convencionadas. Se os médicos da interior ou de bairros pobres trabalham com dificuldade por 20 euros a visita (65 reais), outros têm uma vida muito confortável (14.200 euros por mês – quase 50 mil reais -, em média, para um radiologista com todas as despesas pagas). Algumas zonas geográficas ficam desertas.
Uma longa cadeia de solidariedade
É fundamental, portanto, que a parte da riqueza nacional destinada à saúde aumente. Isso não é nem um drama, nem uma deficiência insuperável
A formação contínua permanece marginal. Especialista em economia da saúde, Philippe Houcarde propõe um controle mais ativo de certas práticas, impedindo, por exemplo, que os pacientes mudem de um especialista para outro e que os médicos prescrevam sem limites. Mas sugere, sobretudo, “o incentivo de novas formas de exercício da profissão e de remuneração: a diferenciação das tarifas segundo a importância do diagnóstico e o tempo gasto; o incentivo ao atendimento em consultório em grupo, a abertura de ?casas médicas? que assegurem a permanência para desobstruir as urgências hospitalares; a experimentação de remuneração fixa, conforme a natureza da intervenção19“.
E por fim, não se dá força e energia ao sistema, preocupando-se com desempenho e economia, sem democracia. Atualmente, os deputados fixam normas de despesas anuais sem terem a menor idéia das conseqüências médicas de suas decisões. Conseqüentemente, a gênese das doenças e a evolução das patologias não são praticamente estudadas20. Os gestores da previdência social (sindicatos e patrões) não prestam contas a ninguém: as eleições foram suspensas desde 1983. As associações de pacientes, que teriam algo a dizer, foram excluídas. O sistema combina estatização e burocratização.
Em sua época, Pierre Laroque, o pai da previdência social, avaliava que seria necessário, para criar uma proteção universal, conjugar “uma política econômica guiada pela preocupação com o pleno emprego, uma política de equipamento sanitário e de organização médica para prevenir [a doença], inicialmente, e curá-la, em seguida (…); e uma política de distribuição de renda tendendo a modificar a distribuição que decorre do jogo cego dos mecanismos econômicos21“. Grande ambição, logo esquecida e mais atual do que nunca: trata-se de construir outro sistema de saúde.
Antes de lançar ele ao mercado, seria melhor afastar a insegurança da vida cotidiana, consolidar uma longa cadeia de solidariedade (dos jovens para com os idosos, dos saudáveis para com os doentes, dos solteiros para com as famílias), o que é o próprio espírito da previdência social.
(Trad.: Teresa Van Acker)
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1 – “Adverting the old age crisis”, Banco Mundial, Washington DC, 1994. Em maio de 2003, voltou à carga com “Pension Reform in Europe: Process and Progress”. Ler também La régulation du système de santé, Conselho de Análise Econômica, ed. La Documentation française, Paris, 2000.
2 – Ler, de Dean Baker, “The World Bank?s attacks on social security”, Center for Economic and Policy Research, 7 de agosto de 2001, Washington. Site: www.cepr.net
3 – Ler, de Serge Halimi, “Crimes contre la nation”, Le Monde diplomatique, setembro de 2003.
4 – “Les systèmes de santé danois, suédois et finlandais: décentralisation et accès aux soins”, Etudes et Résultats, n° 214, Direction de la recherche et des études de l?évaluation et des statistiques (Drees), janeiro de 2003, Paris.
5 – “Les trajectoires des patients en Ile de France: l?accès aux plateaux techniques”, Question d?économie de la santé, n° 31, julho de 2000, Paris.
6 – “Comment soigner un tel malade”, France soir, 2 de dezembro de 2002.
7 – Annette Leclerc, Didier Fassin, Hélène Grandjean, Monique Kaminiski et Thierry Lang (org.), ed. La Découverte/Inserm, Paris, 2000.
8 – N.T.: As mutualités (o termo “mutualidade” é utilizado na língua portuguesa, em Portugal) têm a função de complementar a previdência social obrigatória (os serviços de saúde oferecidos pelo Estado). No jargão utilizado no Brasil na área securitária, usa-se também o termo “mútua” para esse tipo de sociedade.
9 – “Health data 2003”, segunda edição, Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos, OCDE, julho de 2003. Site: www.ocde.org
10 – “Problems of lost health benefits is reaching into the middle class”, New York Times, 25 de novembro de 2002.
11 – Ler, de Milt Freudenheim, “Health benefit cost soar in US”, International Herald Tribune, Paris, 11 de setembro de 2003.
12 – “The medecine of the future”, New York Review, 12 de junho de 1997.
13 – La Tribune, Paris, 28 de outubro de 2002.
14 – “La répartition des interventions entre les assurances obligatoires et complémentaires en matière de santé”, Commission des comptes de la Sécurité sociale, Paris, julho de 2003.
15 –
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).