A insubmissa voz de Conceição
Discípula de Carolina de Jesus, a autora, por meio de sua escrevivência, traça um caminho único na literatura, mas com a recusa permanente de ser enquadrada em uma visão meritocrática: “O sujeito fica isolado dentro de um contexto branco, que o valoriza contanto que ele trace uma trajetória o mais longe o possível da sua coletividade”
Faca de dois gumes, como bem definiu a própria. Falar de Conceição Evaristo, à primeira vista, não é fácil. Há de se correr o risco de deixar a biografia engolir a obra da escritora. “Todo texto crítico que você pegar a meu respeito está lá ‘Conceição Evaristo nasceu numa favela de Belo Horizonte, coisa e tal’. Não leiam só a minha biografia, leiam o meu texto literário!”. Embora a autora reconheça que situar quem lê a respeito do autor seja importante, por vezes, para a compreensão da obra, o caminho inverso é perfeitamente possível para quem pretende acessar a história de hoje uma das maiores expoentes da literatura brasileira contemporânea, que concorre também à cadeira de número sete da Academia Brasileira de Letras, podendo vir a ser a primeira mulher negra a fazer parte da instituição fundada por Machado de Assis.
A escrita de Conceição dá vazão não apenas à sua voz, mas a de sua bisavó, de sua avó, de sua mãe, de sua filha. A de tantas Marias, Natalinas, Luamandas, Cidas, que nas páginas de Olhos D’água renderam à Conceição um Jabuti em 2015, mas as quais ela não viu refletidas nos rostos que a cercavam enquanto recebia o prêmio “Eu tenho dito que foi um prêmio da solidão, a medida que eu procurava meus pares e não encontrava”. Felizmente, os encontra entre seus leitores, e afirma orgulhosa ter sido o movimento social negro o primeiro a recepcionar seus textos, em um caminho tão pedregoso de se percorrer quanto o literário foi para ela. Ao modo que tratou de nomear escrevivência, a escritora segue se fazendo conhecer pelas próprias palavras, que outrora publicadas do próprio bolso, hoje atravessam fronteiras e línguas e formam novos leitores em países como Estados Unidos e França.
Na mais iluminada e insubmissa casa da Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, Conceição Evaristo conversou com o Le Monde Diplomatique Brasil sobre racismo, meritocracia, feminismo e outros assuntos da maneira que melhor faz: pelas vias da literatura.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL Como foi que a senhora começou a escrever?
CONCEIÇÃO EVARISTO Eu não sei o momento exato em que comecei a escrever, mas a escrita pra mim nasce cedo. Houve um tempo em que mesmo na escola primária pública escrever era um exercício quase que diário, chamava-se composição, então sempre tinha que estar criando alguma coisa. No meu ginásio eu tive também uma boa professora de português. Agora publicar não, a primeira publicação só foi aos 44 anos.
Quais as maiores dificuldades que encontrou para publicar?
O primeiro fato é que sair do ineditismo é muito difícil, ainda mais quando se trata de uma escrita produzida por mulheres negras e de classes populares. Algumas escritoras e escritores conseguem um certo apadrinhamento, tem um outro escritor que pode apresentá-los ou têm condições de bancar a sua própria escrita. Meu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, eu paguei a publicação, mas normalmente é difícil porque é caro. Grande parte dessa autoria negra os primeiros trabalhos nós mesmos precisamos bancar. Então se você é inédito e não tem um entorno que te facilite a publicação é mais difícil você romper com essa condição. Em se tratando de mulheres negras, que não se cabe no imaginário brasileiro que possam produzir literatura ou serem intelectuais, produtoras do saber, fica mais difícil ainda.
E a condição de produzir saber dentro da academia, como foi esse percurso para a senhora?
Quando eu fiz vestibular em 1976 nós não tínhamos ações afirmativas, então no curso de letras podíamos contar nos dedos a quantidade de estudantes negros. As ações afirmativas nos oferecem hoje uma possibilidade maior de termos negros na Universidade, agora reconhecê-los como produtores de saber ainda é uma luta muito grande. As vezes quando nós, pesquisadoras e pesquisadores negros, queremos tratar de um assunto que nos diz respeito diretamente, a gente ouve discursos de professores orientadores ou do grupo acadêmico de que não podemos pesquisar porque não iríamos conseguir nos afastar de nosso objeto de pesquisa, que ficaríamos contaminados. Ainda existe um imaginário ou uma preferência de que brancos digam alguma coisa sobre nós. O branco pode estudar as suas pesquisas próprias a partir de sua realidade e ainda pode fazer a pesquisa em relação a realidade do outro, podem falar sobre brancos, sobre negros, sobre indígenas, podem falar todas as formas de exclusão porque essa competência deles é reconhecida. É muito recente essa afirmação nossa no sentido de termos possibilidades de escolhermos as nossas realidades como objeto de nossos estudos, mas hoje já há uma massa crítica a nosso respeito produzida por nós mesmos. Temos não só essa possibilidade como também essa exigência. E isso, de certa forma, também tem colocado outros pesquisadores brancos procurando ler nossas teorias e nossas próprias críticas, para poderem ter mais competência de lidar e compreender o material que colocamos como objeto de pesquisa.
A escrevivência é um termo que a senhora cunhou e do qual fala bastante. A escrevivência nasce com a sua literatura ou já existia ainda que sem esse nome?
Eu até acho que já exista. Quando você pensa no texto de Carolina Maria de Jesus, que escrevia na década de 80, é escrevivência. Ela narra a história do cotidiano dela a partir da própria vivência. Esse termo ganhou uma amplitude muito grande, porque as pessoas estão pensando a escrevivência não só no campo, por exemplo, do registro escrito. No Rio tem uma pesquisadora negra que fez uma dissertação de mestrado e ela usa esse conceito a partir de um trabalho fotográfico dela de pesquisa e análise fotos antigas de famílias negras. Eu estou até pensando, em um dado momento em que eu tiver mais tempo, em fazer um texto mais teórico colocando todo o histórico de como que eu começo a usar esse termo. Fazer uma genealogia mesmo do termo.
A senhora mencionou a Carolina Maria de Jesus, e uma discussão que já foi muito presente no campo editorial a respeito da obra dela é a possibilidade de uma completa revisão gramatical. A senhora acha que se de fato houvesse essa revisão, a escrevivência de Carolina se perderia?
Olha, eu particularmente sou contrária a essa revisão, embora eu seja uma pessoa que escrevo meus textos e dou para outras pessoas lerem. Eu acho que todo escritor tem essa necessidade da correção, da análise dos seus textos, mas há uma diferença grande em relação à Carolina. Quando escreve ela tem um projeto literário sim, tem consciência de que está produzindo um texto literário. Por isso que ela procura um apuro da linguagem, que muitas vezes até soa com estranhamento para a gente. Mas eu não sei, por exemplo, até que ponto a Carolina tem consciência de que ela não atingiu esse apuro da linguagem. Eu ou qualquer outra escritora contemporânea temos essa possibilidade maior de perceber ou buscar esse apuro da linguagem, nós temos mais consciência, por exemplo, que a nossa escrita em determinados momentos pode fugir das normas cultas da língua, e de que podemos inclusive escolher isso como procedimento estético. Não sei se Carolina tinha essa competência, o procedimento estético que ela tinha era de escrever o mais próximo possível da norma culta, e não conseguia. Isso é uma marca identitária do texto dela, é esse desejo de se aproximar da norma culta, esse desejo e esse esforço. Corrigir esse texto corre um risco sim de apagar inclusive os modos do processo de criação dessa escritora. Eu acho que o que pode ser feito é um tipo de comentário para você não ler a obra procurando erros de português. E há ainda uma outra questão para se pensar: como eu tenho noção das normas cultas da língua, posso criar um neologismo e colocar no meu texto e isso ser valorizado como um procedimento estético. A Carolina, como não tem, quando cria um neologismo é lido como exótico, como estranho, “essa palavra não tem na língua portuguesa”. Um neologismo não tem mesmo na língua portuguesa! Se fosse assim você pegaria a obra de Guimarães Rosa e falaria “nossa, que estranho, não tá registrado”. Temos que nos colocar em um outro lugar e entender esse exercício da língua de uma outra forma para ler o texto de Carolina Maria de Jesus. Os professores quando forem trabalhar com esse texto também eles tem que ter essa competência. E os críticos literários também não tem essa competência porque não querem.
No ano passado, a Flip homenageou o Lima Barreto e uma discussões muito presentes foi a recusa dele na Academia Brasileira de Letras em vida. Para a senhora, essa recusa tinha um cunho racial?
Eu até acho que para o Lima Barreto passou a questão racial, porque na República ele talvez tenha sido o escritor que teve coragem de pôr o dedo na ferida, no racismo brasileiro. Quando a gente pensa em escritores negros gostamos muito de falar em Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Souza, e dos três o que teve um discurso literário mais veemente e explícito foi Lima. A veemência com que tratava a questão racial tanto em Clara dos Anjos como em Recordações do Escrivão Isaías Caminha é muito mais explícita. Além disso, ele já tinha uma postura que acabava sendo caracterizado como marginal. Era um sujeito negro, bebia… Então a partir de tudo isso criou-se um imaginário sobre o Lima, e ele também permitia ou se afirmava diante desse imaginário que, sem sombra de dúvidas, pode ter atrapalhado sim a entrada dele para a Academia Brasileira de Letras.
São também todos esses fatores que diferenciam a recepção dele e do Machado, por exemplo, que também é um escritor negro mas que não tinha essas questões tão explícitas?
Isso, e se Machado tivesse essa postura tão explícita com certeza não seria o fundador da Academia Brasileira de Letras, a sociedade da época não ia nem estar próxima a uma liderança de Machado de Assis.
Quando recebeu o prêmio Jabuti, a senhora disse que aquele era um prêmio de solidão. De que forma isso se relaciona com a nossa cultura meritocrática?
É uma cultura que isola e que em determinados momentos distingue as pessoas negras, e o fundamento por trás dessa distinção é o discurso que diz que se você focar você chega lá. A meritocracia elege determinados sujeitos e ao elegê-los também os retira de sua coletividade. Machado de Assis, por exemplo, já que a gente está falando dele, é lido como um sujeito excepcional, é retirado de sua origem pobre e negra. O sujeito fica isolado dentro de um contexto branco, que o valoriza contanto que ele trace uma trajetória o mais longe o possível da sua coletividade. E quando eu vou para o Prêmio Jabuti você observava no palco a ausência, por exemplo, de editoras negras, de pessoas negras para a própria entrega do prêmio e a de pessoas negras o recebendo. Aquele é um momento muito feliz, foi um prêmio que me deu uma visibilidade muito grande, mas eu tenho dito também que foi um prêmio da solidão, a medida que eu procurava meus pares e não encontrava.
Como a senhora enxerga a associação entre a biografia de um autor e sua obra?
Olha, em determinados momentos eu diria que é uma faca de dois gumes. Porque se você retira o autor desse contexto biográfico, acho que em determinados momentos pode-se perder parte da compreensão da obra, mas também se você faz essa ligação sempre, corre o risco de só a biografia do sujeito ser lida, e não a obra em si. Todo texto crítico que você pegar a meu respeito vai estar lá “Conceição Evaristo nasceu numa favela de Belo Horizonte”. Não leiam só a minha biografia, leiam o meu texto literário! Às vezes há também uma certa ironia quando eu afirmo minha biografia. Digo muito, por exemplo, que a literatura me persegue desde o ventre materno, porque a minha mãe trabalhou em casa de grandes escritores mineiros como Otto Lara Resende e Alaíde Lisboa de Oliveira. Mas o que eu quero dizer com isso é que a partir de lugares subalternizados, hoje eu poderia sentar, por exemplo, na mesma mesa de debates com Adélia Prado. Então as vezes é buscar essa biografia é realmente dizer que biografias diferenciadas podem em determinados momentos até se confrontarem, ou até afirmar de que espaço social esse texto está sendo criado. Mas, em outros sentidos, corre o risco de só a biografia do sujeito ser lida e mais nada.
Nós vivemos um momento de afloramento dessas histórias não oficiais e novas narrativas na literatura?
É um momento em que determinados grupos, as coletividades excluídas por questão de gênero, de raça ou de sexualidade, estão se apossando da escrita, ela não pode ser mais de pertença de determinadas categorias sociais. São grupos que estão querendo contar as suas histórias a partir de suas próprias subjetividades, e toda vez que se apossam de alguns bens que sempre foram impedido de acessar causam um mal-estar em quem sempre teve esses privilégios. E por isso a discussão se existiria uma escrita de mulher, de negros, uma escrita homoafetiva. E existe sim, a partir dessas subjetividades. As pessoas estão se apropriando do direito de escrever.
Sua obra hoje alcança todos os públicos que gostaria que alcançasse?
Não tenho a menor dúvida. O primeiro local de recepção da minha obra foi o movimento social negro. Foram homens e mulheres que começaram a levar meus textos para dentro de sala de aula, principalmente professores de primeiro e segundo grau. Esses textos também foram ganhando a Academia, foram sendo levados para TCCs, dissertações de mestrado, doutorados. Agora como ele começou dentro do movimento social eu tenho hoje um leitor que pode morar no morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, como pode morar também na Zona Sul do Rio ou até fora do Brasil. Tem mais ou menos um mês que eu voltei de um seminário na França, e quando cheguei lá tive a grata surpresa de um grupo de teatro que se chama Sementes da Palavra, que estava estudando minha obra há seis meses, trabalhando em cima do texto Becos da Memória. É um texto que nasce a partir de memórias ficcionalizadas da minha infância e da minha juventude, e que convocou pessoas de realidades totalmente diferentes da minha. Hoje já tenho esse público bastante diverso. Agora o que o escritor ou escritora não pode perder de perspectiva é a questão da atenção ao público. Com o mesmo entusiasmo que eu vou para a França, eu tenho um compromisso com uma escola pública lá em Maricá.
*Taís Ilhéu é jornalista