A insustentável agenda ambiental do presidente
Por que a obsessão de Jair Bolsonaro por acabar com o meio ambiente cria (mais) um problema para Paulo Guedes
Quando Dilma Rousseff assumiu a Presidência, em 2011, ela ouviu do padrinho político, o ex-presidente Lula, um único conselho sobre a área ambiental: “Dilma, só não pode deixar o desmatamento subir”. Lula sabia o quanto a imagem internacional do Brasil e a avaliação do ocupante do Planalto dependiam de um controle efetivo da devastação, principalmente na Amazônia.
Sabia também que sua sucessora era provavelmente a presidente com menor apreço pelo meio ambiente desde a redemocratização, e ele não queria ver o próprio legado – foi no primeiro governo Lula que o desmatamento na Amazônia começou a cair – atirado ao vento.
Oito anos depois, temos uma situação inédita na história recente do país: o gabinete presidencial é ocupado por uma pessoa que, mais do que desprezar a área ambiental, faz-lhe oposição ativa, como se exercitasse contra a natureza alguma vingança pessoal. Talvez, antes daquela multa por pesca ilegal em Angra, tenha caído da jabuticabeira ou tomado picada de marimbondo; Freud há de explicar. Seja como for, Jair Bolsonaro parece dormir e acordar com a obsessão de pôr abaixo até a última árvore, extinguir até a última unidade de conservação e desalojar até o último índio do Brasil. Cada um desses desejos tem consequências. Para um país cuja balança comercial depende da venda de produtos agrícolas e minérios, consequências sérias.
Os movimentos da cruzada antiambiental de Bolsonaro e de seu subministro da Agricultura, Ricardo Salles, são conhecidos. Salles seccionou a medula da governança ambiental brasileira, desarticulando políticas construídas cuidadosamente desde pelo menos a Rio-92. Acabou com as áreas de mudanças climáticas e a responsável pelos planos de prevenção e controle do desmatamento. Deixou o Ibama acéfalo na maioria dos Estados e amarrado em Brasília, perseguindo e desautorizando seus agentes – que acusa de “ideológicos” e “ineficientes”.
Ao mesmo tempo, em nenhum momento contrapôs o discurso do chefe de empoderar criminosos ambientais, como no caso em que Bolsonaro molhou os pés no crime de responsabilidade ao gravar um vídeo ordenando a suspensão da destruição de equipamentos de bandidos que roubavam madeira numa área protegida em Rondônia. Salles poderia ter ficado quieto, mas ameaçou editar uma portaria vedando a destruição.
Os resultados disso tudo têm sido o espraiamento da sensação de impunidade na ponta e o franco descontrole sobre o crime ambiental. O número de multas por desmatamento até maio deste ano foi o menor em uma década, e o número de operações do Ibama na Amazônia caiu 70% de janeiro a abril deste ano em relação ao mesmo período ano passado. Bolsonaro foi eleito prometendo “tirar o Estado do cangote de quem produz”. O efeito real foi tirar o Estado do cangote de quem depreda.
A navalha de Occam – princípio filosófico que afirma que, se um fenômeno tem várias explicações, a mais simples costuma ser a correta – faria supor que tudo isso levaria a um aumento do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. De fato, é o que se verifica. Após um primeiro trimestre de redução expressiva nos alertas de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), provavelmente devido à grande cobertura de nuvens sobre a floresta, os meses secos de maio e junho mostraram uma aceleração. Maio teve o pior índice para o mês desde que o sistema do Inpe passou a operar com satélites mais precisos, em 2016. É cedo para dizer qual será o impacto na taxa oficial de 2019, que será conhecida após agosto. A depressão econômica pode frear o desmatamento especulativo, deixando o índice mais ou menos empatado com o trágico 2018, na casa dos 8 mil km2, ou, pouco provável, até reduzi-lo um pouco. Mas um eventual crescimento terá nome e sobrenome: Jair Messias Bolsonaro.
E nada indica que vá parar por aí. Bolsonaro, neste momento, briga com o STF pelo direito de violar a Constituição e empurrar a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, já barrada pelo Congresso. Salles anuncia a revisão de todas as áreas protegidas federais do Brasil. E o filho 01 do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, tenta aprovar no Senado nada mais, nada menos que o fim da reserva legal, o que abriria uma área equivalente a quatro estados de São Paulo ao desmatamento. Como se para provar uma aliança de sangue com o setor mais atrasado do ruralismo, o senador ainda propôs – em afronta direta a pelo menos dois artigos da Constituição – eliminar a função social da propriedade rural. É uma espécie de fetiche de certa facção do ruralismo, que nunca engoliu a Carta de 1988 e talvez ainda tenha problemas em aceitar as leis de 1888.
A leitura que os mercados internacionais e os clientes das commodities brasileiras fazem disso tudo é simples: o agronegócio do Brasil não pode prescindir de desmatamento nem de acesso livre a terra barata. Para quem quer impor barreiras não tarifárias às commodities brasileiras e adiar acordos comerciais, trata-se de um prato cheio. Para o ministro da Economia, Paulo Guedes, mais um motivo de preocupação. A destruição ambiental pode ser o maior tiro no pé da economia nacional.
O Brasil já teve uma amostra dos prejuízos que crises de imagem acarretam, com a suspensão das importações de carne brasileira por alguns países na esteira da Operação Carne Fraca, em 2017, que detectou corrupção na inspeção sanitária. Em junho deste ano, uma rede sueca de supermercados iniciou boicote a produtos brasileiros por conta de mais um problema de mindset do governo – a liberação recorde de agrotóxicos. Dois rounds importantes da luta contra o desmatamento serão travados nos próximos meses, no acordo comercial União Europeia-Mercosul e nas negociações para a entrada do Brasil na OCDE.
A UE está sob pressão doméstica para barrar o acordo por conta do impacto que o governo Bolsonaro pode ter sobre a consecução das metas do Acordo de Paris. Em abril, mais de seiscentos cientistas europeus e duas organizações indígenas brasileiras pediram à UE que vinculasse o acordo a salvaguardas socioambientais. Em junho, mais de 340 organizações da sociedade civil pediram suspensão das negociações diante da deterioração do meio ambiente e dos direitos humanos no Brasil. O presidente da França, Emmanuel Macron, já prometeu eliminar o desmatamento das importações francesas até 2030 e vinculou o acordo comercial à adesão ao acordo do clima.
Embora o Brasil tenha permanecido formalmente no Acordo de Paris, alguém já deveria ter dito a Bolsonaro que também é preciso cumpri-lo – e isso vai de encontro à sua cruzada contra a floresta. Cientistas brasileiros estimaram que um cenário de descontrole sobre o desmatamento causaria emissões anuais só na Amazônia de 1,3 bilhão de toneladas de gás carbônico, ou 3% do que o mundo emite por queima de combustíveis. Nesse cenário, não apenas o Brasil não cumpriria suas metas, como também poderia colocar fora de alcance o objetivo global de estabilizar o aquecimento global em 1,5 °C, preconizado pelo Acordo de Paris.
Da mesma forma, o chanceler Ernesto Araújo vem fazendo, aparentemente sem muita convicção, uma ofensiva de greenwashing do Brasil para acalmar a OCDE, cujos critérios de compliance ambiental são rigorosos. Será muito difícil brandir a linha de defesa padrão do governo – dizer, usando dados falsos, que “o Brasil é o país que mais preserva no mundo” – quando onze sistemas de alerta por satélite contam a história oposta.
Talvez os indícios mais claros de que a situação está indo longe demais sejam manifestações recentes de representantes do setor agroexportador contra, por exemplo, o projeto de Flávio Bolsonaro e outras propostas de mudanças no Código Florestal. Mas defender a lei florestal e a segurança jurídica que ela traz não vai salvar a imagem – e os mercados – das commodities brasileiras. Se o agro que quer ser pop quer se diferenciar do ogro que não se importa de não o ser, tem de levantar a voz contra todo o desmonte ambiental de Bolsonaro. E também contra quem faz lobby pela terra arrasada, que não respeita limites, que acha ser possível destruir leis e florestas e engabelar a comunidade internacional vendendo uma sustentabilidade que não existe.
Carlos Rittl é doutor em Biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e secretário executivo do Observatório do Clima, rede de organizações da sociedade civil.