A internet como objeto de luta - Le Monde Diplomatique

MOVIMENTOS SOCIAIS NA ENCRUZILHADA DAS POSSIBILIDADES E DAS DESIGUALDADES INFOCOMUNICACIONAIS

A internet como objeto de luta

por Nataly Queiroz
1 de agosto de 2018
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Falar de incidência política na atualidade é abordar as ruas e as redes virtuais como espaços de disputa. Uma vez que essa sociedade em rede tem em sua centralidade processos de comunicação, não tomá-los como arenas de ação diminui o alcance e a força dos movimentos

Expressão pop do momento pré-eleitoral, as fake news não se vinculam tão somente ao uso antiético (e muitas vezes criminoso) das novas tecnologias de informação por parte de políticos ou de empresas para confundir a opinião pública, tampouco se referem apenas à leviandade de quem compartilha informações mentirosas. O que as notícias falsas colocam em causa é a centralidade do poder comunicacional no âmbito político e, portanto, sua relevância para os projetos de mundo em disputa na atualidade. Em outras palavras, a capacidade de utilizar tática e estrategicamente a comunicação para muitos, seja nas velhas ou nas novas mídias, é métrica para aferir o poder de quem difunde as informações ou de quem financia sua propagação.

No atual cenário conturbado e polarizado do Brasil, pensar a comunicação como política de intervenção sobre o real é necessário e urgente. Salienta-se que tal dimensão extrapola a reducionista ideia de que os processos comunicacionais são simples ferramentas para conquistar algo maior. A comunicação, além de ser um direito humano, é constituidora dos sentidos da realidade em que se vive e base na qual se assentam as justificações acerca de nosso agir no mundo. É, portanto, um campo político, como definiu Pierre Bourdieu, permeado por intensas disputas entre os diversos atores que compõem a sociedade.

Não à toa, o grau de concentração das mídias, as políticas de regulação desse campo, a liberdade de imprensa e a garantia do direito à privacidade são indicadores indispensáveis para medir se a democracia vigente em determinado território é de alta ou de baixa intensidade. No Brasil, a conjuntura é preocupante. Segundo o Media Ownership Monitor,1 uma pesquisa desenvolvida pela Repórteres Sem Fronteiras e pelo Coletivo Intervozes, cinco famílias controlam metade dos principais veículos de mídia no país. São cinco empresas que, com seus interesses financeiros e políticos, levam para milhões de brasileiros insumos informativos para formar a opinião destes sobre fatos relevantes. Nesse contexto impera a criminalização dos movimentos sociais e das esquerdas, bem como o apoio às reformas restritivas dos direitos sociais, aos grandes conglomerados empresariais e aos políticos que sustentam tais agendas. A intensa concentração da mídia brasileira reflete nossa herança colonial, de desigualdades, silenciamento de vozes e apagamento da pluralidade da população.

Outro elemento imprescindível para a democracia é a existência de movimentos e movimentações sociais, os quais mobilizam uma expressiva força comunicativa. Isso porque expressam, entre outros fatores, as possibilidades de debate entre os cidadãos sobre suas realidades, e entre estes e as instituições do Estado, podendo ser agentes promotores de um importante equilíbrio nas relações de poder entre instituições e indivíduos. A América Latina e o Brasil, em particular, têm um histórico considerável de atos de resistência e de transformação tocados pela sociedade civil, muitas vezes excluída da pauta dos grandes veículos de comunicação comerciais.

Recentemente, mobilizações como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street e os Indignados, na Espanha, reacenderam os ânimos de transformação social, unindo uma impressionante energia mobilizadora, aliada aos usos das novas tecnologias de informação e comunicação (não mediadas pelos veículos de comunicação tradicionais) e à ativa participação de sujeitos políticos diversos. Ainda que seus desdobramentos posteriores não tenham sido os esperados inicialmente, sua existência fomentou outras iniciativas locais em todo o mundo, as quais demonstram a força da sociedade civil quando age de forma articulada e com possibilidade de falar para muitas pessoas, militantes ou não.

Tais mobilizações se inserem em um quadro em que a rede mundial de computadores constitui um espaço político e econômico no qual a vida acontece. As fronteiras entre mundo real e virtual, on e off-line, mostram-se cada vez menos definidas. A popularização do acesso à internet trouxe consigo a esperança da criação de um espaço mais isonômico, com condições menos desiguais de fala, comunicação e, portanto, de participação social para todas as pessoas no globo. No entanto, e paradoxalmente, ao se desenvolver no bojo do capitalismo e dos agentes que operam esse sistema, o ciberespaço reflete a imagem das sociedades nas quais se insere, com suas desigualdades estruturais, possibilidades e desafios sociotécnicos.

A União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência das Nações Unidas especializada em tecnologias de informação e de comunicação (TICs), em seu relatório de 2016, observa que o acesso à internet tem se expandido em todo o mundo; no entanto, o formato desse crescimento é desigual. A banda larga móvel é a principal responsável pelo incremento, sendo maior seu avanço nos países emergentes. Nas nações desenvolvidas, a banda larga fixa permanece em crescimento. Isso revela a relação entre inclusão digital, estruturas econômicas dos Estados e políticas públicas de comunicação e tecnologia.

Por meio do Índice de Desenvolvimento de TIC, a UIT destacou as características dos países com os melhores resultados: possuem políticas consolidadas voltadas ao desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação; mercados livres e competitivos para as TICs; estruturas de incentivo à inovação por parte do Estado e do mercado; população com rendimentos relativamente altos e as habilidades necessárias para fazer uso efetivo das tecnologias disponíveis. Evidencia-se que as estruturas técnicas de acesso à rede mundial de computadores são tão importantes quanto o desenvolvimento das estruturas políticas e econômicas que possibilitem às pessoas acesso a direitos humanos básicos, como educação.

Neste momento em que vivemos uma crise de credibilidade das instituições do Estado no Brasil, no qual a própria democracia tem sido atacada por ardilosos artifícios, entre os quais os discursivos e os midiáticos, é imprescindível refletir acerca das ações de comunicação da sociedade civil e de seus desafios, em especial no que diz respeito ao acesso às TICs. Isso porque a articulação e o diálogo, necessários à mudança do atual quadro de reversão de direitos e de lutas anticapitalistas, antipatriarcais e antirracistas, passam pela possibilidade de os movimentos sociais dialogarem entre si e com a população local ou global.

Convocada pelas redes sociais, Marcha da Maconha percorre a Esplanada dos Ministérios (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

O sinal amarelo das contingências

Em 2017, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) divulgou um relatório2 sobre o uso das TICs nas organizações sem fins lucrativos brasileiras, um segmento importante dos movimentos sociais no país. As instituições sem fins lucrativos, ouvidas pela pesquisa, eram de diversas naturezas: entidades de defesa de direitos, religiosas, fundações, associações e sindicatos. Do universo pesquisado, 24% delas ainda não usam computador em suas atividades cotidianas, um cenário típico, em especial, das pequenas organizações, que contam predominantemente com mão de obra voluntária para o desenvolvimento de seus trabalhos. Mais especificamente, entre estas que não contam com pessoas remuneradas, somente 29% possuíam computadores institucionais. Parte considerável dos equipamentos utilizados, sobretudo nas instituições de menor porte e/ou comunitárias, é dos próprios trabalhadores ou voluntários.

Antes de continuar, vale destacar que, das 37.499 organizações sem fins lucrativos buscadas pelos pesquisadores, a taxa de resposta foi de apenas 11% – uma amostra válida e importante, mas que pode ter revelado apenas a ponta do iceberg das dificuldades técnicas e estruturais dos processos comunicativos nessas instituições.

O acesso à internet está presente em 71% das entidades ouvidas, sendo a maior parte na modalidade de cabo e fibra ótica (59%), seguido de conexão por linha telefônica – DSL (55%), modem 3G ou 4G (32%) e conexão via rádio (14%). Os principais motivos para a não utilização da internet citados pelas organizações foram a falta de estrutura de acesso (46%) e o alto custo da conexão (43%). A falta de estrutura de acesso foi a razão mais citada pelas organizações das regiões Norte (76%), Nordeste (65%) e Centro-Oeste (64%), reforçando as desigualdades regionais nas políticas de inclusão digital no país, além dos centros de interesse do mercado de tecnologia da informação.

As dificuldades de captação de recursos e de sustentabilidade são apenas dois dos empecilhos observados pelos pesquisadores Debora Bobsin e Marlei Pozzebon, no relatório do CGI.br, para a adoção das TICs. A maior parte das instituições sem fins lucrativos brasileiras depende de editais governamentais e de instituições internacionais ou supranacionais para se manter. Para a área de comunicação, essas convocatórias são escassas. A força de trabalho, além da considerável rotatividade de pessoal (devido à escassez de recursos), aparentou ser pouco habilitada ao uso das tecnologias de informação e comunicação.

Esse último fator é importante para refletir de forma mais complexa sobre o cenário. A Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla) desenvolveu um Índice de Desigualdades Digitais, composto de três dimensões que reforçam o desafio de pensar a inclusão digital como algo que transcende a mera oferta das estruturas técnicas de acesso à internet. A primeira dimensão corresponde às desigualdades de infoúso, refletindo diferenças estruturais (disponibilidade de computadores, tipo de conexão etc.) regionais que demarcam condições de acesso desiguais; a segunda, às desigualdades socioeconômicas, particularmente associadas à renda e à raça/cor dos indivíduos; e, por fim, às estratégias de superação, um conjunto de medidas para democratizar e/ou superar as desigualdades de acesso à internet existentes. É oportuno destacar ainda que, dado nosso cenário cultural, outro fator de desigualdade tem a ver com as relações de gênero. Ainda que estejamos conectadas como internautas, o percentual de presença feminina cai drasticamente quando visualizamos o sexo dos desenvolvedores de softwares e programadores, por exemplo.

Em relação aos usos que fazem das TICs disponíveis e da internet especificamente, foi possível observar que, mesmo diante de um cenário de contingências, as instituições sem fins lucrativos têm envidado esforços para estar presentes no espaço virtual. Os dados demonstram que 67% das organizações estavam na rede de computadores por meio de website e/ou perfis em redes sociais. Apenas 29% ocupam os dois espaços concomitantemente. Os recursos humanos, para além dos recursos técnicos, são fatores relevantes nesse cenário. Apenas 19% das instituições entrevistadas possuíam área vinculada à tecnologia e 18% tinham um setor de comunicação. Os segmentos que diferem dessa realidade são as instituições patronais, profissionais e sindicais. Foi verificado que apenas 35% desse grupo conta com áreas de comunicação institucional consolidadas.

As barreiras que impedem as organizações entrevistadas pelo CGI.br de explorar todas as potencialidades comunicativas, de articulação e, inclusive, de sustentabilidade institucional ofertadas pela internet são, guardadas as devidas proporções, sentidas pelos cidadãos comuns. Essa ressalva é útil pelo contexto das novas militâncias, as quais se organizam por meio da união de indivíduos que se autorrepresentam quando se reconhecem em uma causa, sem a mediação de instituições. Só pelas clivagens de classe, as quais se ressaltam na distribuição dos domicílios conectados no Brasil, já temos uma dimensão do desafio para o uso concertado e estratégico das novas mídias para assegurar o direito à comunicação e realizar uma incidência política na internet. Em 2016, segundo o CGI.br, 54% dos domicílios brasileiros estavam conectados à internet, um crescimento de 3% em relação ao ano anterior. Em áreas urbanas, apenas 23% dos domicílios classificados como D ou E estavam conectados; já nas classes A e B, 98% e 91%, respectivamente, das casas tinham acesso à rede de computadores.

O jornalista Lee Fang, em reportagem publicada no The Intercept (11 ago. 2017), destaca os investimentos de organizações estatais e privadas norte-americanas para financiar movimentos de direita na América Latina, os quais lançam verdadeiras cruzadas persecutórias a figuras e ideais associados às esquerdas, nas redes sociais (principal porta de acesso à internet de boa parte da população brasileira), na mídia tradicional e nas ruas. A incitação à polarização e aos discursos de ódio tem sido ferramenta de afastamento dos cidadãos da política e de aprofundamento do neoliberalismo no Estado e na cultura política.

Falar de incidência política na atualidade é abordar as ruas e as redes virtuais como espaços de disputa. Uma vez que essa sociedade em rede tem em sua centralidade processos de comunicação, não tomá-los como arenas de ação diminui o alcance e a força dos movimentos. Em tempos de ódio às vozes que se levantam em prol da democracia e da ruptura com os sistemas de segregação social, a resistência ao silenciamento imposto pelas estruturas de poder hegemônicas, o qual representa a morte simbólica desses segmentos, passa pela capacidade (e possibilidade) de produção discursiva e vocalização das lutas por seus sujeitos.

Como o campo da comunicação foi expandido com o advento da rede mundial de computadores, é imprescindível incorporá-lo na cotidianidade dos movimentos sociais, sem que isso signifique abandonar a disputa pelo terreno das mídias tradicionais, boa parte delas concessões públicas e com larga penetração na sociedade. Para as esquerdas latino-americanas, em especial do Brasil, está posto um novo desafio: abarcar em definitivo a comunicação como objeto de luta e campo constituidor de outros direitos.

 

*Nataly Queiroz é jornalista, professora universitária e doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco.



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