A lei da bala, do boi e da bíblia
Confira a seguir a introdução inédita do livro A lei da bala, do boi e da Bíblia: cultura democrática em crise na disputa por direitos, das pesquisadoras Adriane Sanctis de Brito, Luciana Silva Reis, Ana Silva Rosa e Mariana Celano de Souza Amaral. A publicação será lançada pela editora Tinta-da-China Brasil nos próximos dias 6, no Rio de Janeiro, e 9, em São Paulo. Veja maiores informações sobre os eventos ao final desta publicação
A lei é real, mas também é fruto da nossa imaginação. Como todas as instituições sociais fundamentais, lança uma sombra de crença popular que pode, em última análise, ser mais significativa, embora mais difícil de compreender, do que as autoridades, regras e sanções que normalmente associamos à lei. Aquilo em que acreditamos reflete os nossos valores e também colore nossas percepções. A parcela da lei em que acreditamos se relaciona diretamente com a legitimidade das nossas instituições políticas.[1]
Stuart A. Scheingold
Atores dos campos conservador e reacionário vêm se valendo de direitos e garantias constitucionais para construir suas pautas no debate público brasileiro. Nesse processo, projetam imagens e contra imagens sobre a sociedade, o Estado e a democracia. “O agronegócio é a coluna vertebral do país.” “A Igreja é a promotora do bem comum.” “Armamentos e forças de segurança são salvaguardas contra o crime.” Afirmações como essas, articuladas a concepções sobre direitos e liberdades, constituem os discursos de diferentes linhas de força[2] que pautam a discussão sobre temas centrais da política nacional, como segurança pública, educação e saúde.
Este livro analisa os argumentos construídos por meio da linguagem de direitos nas áreas tradicionalmente chamadas de BBB, sigla usada para identificar as bancadas organizadas no Congresso Nacional em torno da “bala”, do “boi” e da “Bíblia”. Como a atual onda conservadora[3] da política brasileira ultrapassa os trabalhos parlamentares, esses termos servirão aqui como referenciais para observar variadas formas de articulação em diferentes espaços institucionais do Estado, não apenas no Congresso Nacional. O estudo de casos no Legislativo, no Executivo e no Judiciário brasileiros ajudará a compreender a abrangência desse movimento.
Disputas jurídicas e cultura política democrática
As constituições e o direito em geral não são garantias absolutas contra a erosão democrática. Hoje uma espécie de lugar‑comum, esse diagnóstico é recorrente na literatura contemporânea sobre direito e política. Identifica‑se, por exemplo, o sequestro das democracias constitucionais por autocratas que atacam instituições e expandem seu poder e o de seus aliados, instrumentalizando o direito para projetar uma imagem de legalidade – o chamado “legalismo autocrático”[4]. Líderes populistas, nacionalistas e autoritários invocam os direitos humanos em seus discursos, colocando‑os “a serviço de fins que são excludentes, repressivos, antipluralistas em essência” – a despeito da tradição protetiva desses direitos em relação aos indivíduos (especialmente as minorias) contra as ingerências estatais –, fenômeno visto como uma “apropriação indevida” (“misappropriation of human rights”)[5].
“Legalismo autocrático” e “apropriação indevida de direitos” são noções que surgem do incômodo diante da disjunção, aparentemente abrupta, entre, de um lado, as garantias constitucionais e os direitos e, de outro, a democracia. Muito do pensamento político ocidental se constituiu com base na ideia de que esses termos seriam evidentemente um par harmonioso[6]. Se isso enfatizou o poder socialmente estabilizador da noção de Estado democrático de direito, também deixou na sombra o fato de que todos os ideais aí inscritos – Estado, democracia, legalidade e direitos – são objetos de disputas ferrenhas.
Neste livro, tratamos de parte dessas disputas no contexto da cultura política democrática brasileira, ou seja, disputas em torno de “noções que balizam visões de mundo, que legitimam a maneira como se distribuem riqueza, poder, recursos ambientais, reconhecimento social”[7]. É na cultura política – o conjunto de instituições formais e informais, de regras explícitas e implícitas, de saber teórico e de saber prático – que se expressa concretamente aquilo que os ideais afirmam de forma abstrata. Adotamos essa lente para analisar um traço específico das democracias contemporâneas: a mobilização do direito para efetivar objetivos políticos.
A força das “farsas”
Mobilizações jurídicas para efetivar direitos de grupos minoritários ou discriminados foram e ainda são fartamente estudadas pelas ciências sociais. Porém, essas mobilizações (principalmente demandas judiciais, mas também outras estratégias de pressão) em geral tinham relação com processos de consolidação da democracia, e não com a sua erosão.[8] Tradicionalmente associado ao progressismo e à esquerda, esse tipo de ativismo, quando usado em favor de pautas conservadoras e à direita, tem sido menos explorado por estudos acadêmicos, sobretudo no Brasil[9]. Seja como for, o uso estratégico do direito pelos movimentos sociais não costuma ser analisado no contexto da crise das democracias.
De um lado, o fenômeno é recebido com tranquilidade: o que, afinal, pode haver de mal na atuação de grupos ideologicamente diversos propondo suas pautas por meio da linguagem jurídica? Não será esse o objetivo das democracias liberais? De outro, se a mobilização jurídica é associada a pautas regressivas, como uma “apropriação indevida”, a reação mais frequente é subestimar o risco que ela representa. Vale a pena dedicar atenção a uma farsa, a uma tentativa, muitas vezes malsucedida, de legitimar pautas conservadoras e reacionárias com o uso vazio e hipócrita da linguagem do direito?
Para compreender o que está em jogo, é necessário perceber a força da linguagem jurídica para além dos seus efeitos imediatos. O conteúdo atribuído diariamente às normas da Constituição não tem consequências apenas casuísticas – com uma posição prevalecendo sobre outras e atores políticos ganhando ou perdendo –, mas acaba por impactar o próprio caráter dos regimes constitucionais. O acúmulo de interpretações ora progressistas, ora reacionárias sobre direitos e instituições jurídicas permite que um regime político oscile entre o republicanismo e o autoritarismo[10]. Em conjunto, as interpretações do direito – isto é, as disputas pelo seu significado – podem configurar concepções restritivas (e, por vezes, discriminatórias e até racistas) de cidadania e de liberdades civis, em detrimento de outras, que propõem visões mais amplas e pluralistas. Essas interpretações podem também concentrar poder e desequilibrar regimes de forma cumulativa, sem “golpes” no sentido clássico nem subversões explicitamente reconhecidas ou eventos marcantes de violência política[11]. Nesse processo, o risco antidemocrático não deixa de existir pela simples derrota eleitoral de líderes autocratas[12].
O direito é uma forma de ação política. Em termos teóricos, pode ser considerado um subgênero discursivo do campo político[13]. Ele é central para a vida em comum, pois regula, limita e “traduz” o mundo por meio de formas que fornecem orientações gerais, como constituições, leis, decretos etc. Mas essas formas não esgotam o direito. Elas são objeto de disputas de interpretação em espaços oficiais e não oficiais: também são parte do direito os discursos divergentes sobre quem tem direito a quê, sobre até onde vão os direitos e as liberdades, sobre quais devem ser as situações e as pessoas protegidas numa sociedade. A linguagem jurídica é um modo potente e extremamente maleável de posicionar sujeitos e ordenar a vida em sociedade em meio à ação política. Mesmo quando não se efetivam de imediato (quando, por exemplo, projetos de lei não são aprovados, argumentações não são acolhidas por tribunais, agendas políticas não se convertem em políticas públicas), os discursos que dizem como as coisas “devem ser” alteram os repertórios e, por vezes, as estruturas da cultura política. Eles têm o potencial de agregar novos tópicos ao debate público e de mudar a ênfase de tópicos já conhecidos, além de alterar os parâmetros de avaliação da legitimidade de um regime de poder.
Ao lançar luz sobre a atuação de conservadores e reacionários nos espaços formais de poder, buscamos destacar como esses grupos mobilizam as instituições políticas e jurídicas e empregam o vocabulário característico delas para tensionar seus significados. Muitas vezes presentes em discursos progressistas, noções como vontade popular, soberania da maioria, pluralismo, separação de poderes, segurança jurídica, laicidade e ativismo judicial aparecem revestidas de novos sentidos e apontam para o encapsulamento de temas e termos de adversários políticos, e até mesmo para o esvaziamento e a reversão de seus sentidos[14]. Usam a linguagem de direitos para expressar objetivos contrários aos fundamentos humanistas e pluralistas desse vocabulário.
Este é um livro sobre os usos da linguagem jurídica, mesmo daqueles que não foram bem sucedidos em atingir seus objetivos ou cujos efeitos foram depois revertidos. Se alguns desses usos tiveram sucesso em obter de forma duradoura aquilo que buscavam, grande parte deles pode, a depender da convicção de quem os lê, entrar na categoria de “mera farsa”, “maquiagem legalista”, “hipocrisia” em relação aos valores constitucionais. São construídos com a linguagem do direito – especificamente a linguagem de direitos e das garantias constitucionais –, mas parecem, em várias situações, expressar o exato oposto dessas garantias e direitos. Para compreender o aspecto paradoxal dos atuais processos de erosão democrática, que muitas vezes se valem intensamente de elementos e ideais da própria democracia constitucional, é necessário conhecer e analisar esses discursos[15]. Não há democracia sem inclusão, mas é cada vez mais comum que visões de mundo excludentes se apresentem como as verdadeiramente legitimadas pela ordem constitucional. Sem enfrentar os meandros dessa tendência, corre‑se o risco de criar estratégias de fortalecimento democrático que privilegiem a ideia de ordem em vez da ideia de constitucionalidade – estratégias que enfatizem a imposição, de cima para baixo, do ideal abstrato de Estado democrático de direito, em detrimento da democratização dos recursos constitucionais de construção da cultura política.
Boi, bala e bíblia: conservadorismo e reacionarismo?
O que compõe uma onda conservadora como a que atingiu o Brasil contemporâneo é uma combinação de ações e tendências marcadas por divergências e antagonismos próprios dos processos político‑sociais. Determinadas partes ganham protagonismo ao superar outras em intensidade, relevância ou destaque. No todo, a onda é composta de um “emaranhado de jogadores em diferentes tabuleiros”. Contudo, suas “conexões parciais em torno de uma concertação mais ampla[16]” são capazes de revelar as direções que essas ondas tomam em certos momentos históricos. Este livro não mapeia todas as vozes nem todas as posições políticas que podem ser pensadas como antidemocráticas no Brasil atual. O objetivo é revelar os pontos de aproximação e, às vezes, de convergência entre as articulações discursivas sobre direitos que compõem a onda conservadora.
Evitamos categorias descritivas que, a despeito de sua relevância para a análise teórica, podem criar imagens totalizantes e estigmatizantes de disputas políticas complexas. Indivíduos e atores políticos podem ter identidades compostas por posições tanto conservadoras quanto progressistas, ou mesmo de direita e de esquerda. Podem mudar de posicionamento por meio de alianças, por estratégia ou por oportunismo. Assim, é preciso olhar para o conjunto de argumentações para entender quais convergências ou “linhas de força” [17]têm emergido do debate sobre direitos. Se os significados concretos dos direitos e das garantias fundamentais são configurados pelas disputas de interpretação, a consolidação de linhas interpretativas excludentes e autoritárias indica os padrões aos quais o campo democrático deve estar permanentemente atento. Este estudo usou o par conservador/reacionário, ou conservadorismo/reacionarismo, para englobar tanto as ações pela conservação da ordem social quanto aquelas que preconizam o retorno a configurações sociais menos diversas e inclusivas.
Estudos sobre a ideologia conservadora apontam para determinados elementos identificadores de cada tendência. O conservadorismo preocupa‑se com a velocidade das transformações sociais e exige que as mudanças sejam realizadas nos limites da ordem existente, respeitando elementos que entende serem externos à disputa política, tais como tradição, história, família, religião, biologia e mercado. Busca essencialmente se opor a mudanças consideradas ameaçadoras e adapta seus conceitos conforme a ameaça da vez. Por isso, tem uma estrutura especular em relação ao conjunto de crenças progressistas que identifica como oponente.[18] Já o reacionarismo compartilha com o conservadorismo a preocupação com a ordem social, mas busca romper com a ordem vigente, muitas vezes qualificada de decadente, para restaurar ou recuperar um passado ou ideal perdido.[19]
Para analisar o contexto brasileiro, adotamos a lente temática das três áreas tradicionalmente referidas como BBB (boi, bala e Bíblia). Centrados no agronegócio, na segurança pública e na religião, esses temas também se ligam a vários outros tópicos, como meio ambiente, povos indígenas, trabalho, armas, política criminal, educação, gênero e sexualidade. Com diferentes trajetórias e alianças, atores de cada uma das três áreas se organizam para ocupar os espaços de poder e apresentar suas demandas no Legislativo, no Executivo e no Judiciário. Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019‑22), pautas conservadoras e reacionárias se fortaleceram por meio da valorização da moralidade religiosa, do foco na falta de segurança e no medo da criminalidade, e da projeção de discursos econômicos neoliberais.[20]
Muitas dessas temáticas propulsoras do poder político conservador e reacionário do BBB já foram identificadas em análises do conservadorismo[21] e da crise da democracia[22] realizadas em outros países. O conjunto de argumentações constitui uma chave essencial para compreender a importância dessas pautas em âmbito internacional[23], segundo a qual o neoliberalismo não pode ser visto apenas como uma linha da política econômica, mas como uma tentativa mais ampla de redesenhar o político e o social, atribuindo ao Estado o papel de manter as desigualdades (políticas, sociais e econômicas) e a moralidade tradicional[24]. O foco político nessa interação tem ainda o potencial de provocar mudanças estruturais: o neoliberalismo é uma ferramenta que esgarça o social enquanto esfera política possível, corroendo a ideia e a estrutura da democracia[25].
Linguagem de direitos nos poderes
Apresentamos nas próximas páginas uma radiografia não exaustiva dos usos da linguagem do direito em espaços institucionais de poder. Optamos por localizar primeiro os casos relevantes em cada um dos campos do BBB, para então identificar, por meio da análise de documentos públicos, os argumentos jurídicos conservadores e reacionários mobilizados em cada um deles. Para selecionar os casos, nos apoiamos principalmente em pesquisas que já mapearam a atuação de grupos conservadores e reacionários em suas respectivas áreas, com foco no cenário mais recente (especialmente entre 2019 e 2022), nas temáticas centrais e tendo como palco o Supremo Tribunal Federal (STF), o Legislativo e o Executivo federais. Em alguns casos, foi necessário um olhar mais recuado no tempo a partir do mapeamento de eventos‑chave pós‑redemocratização.
Ainda que possa ser vista como uma maneira de resguardar e reafirmar interesses mais imediatos, a atuação do BBB no Judiciário, por excelência o local de interpretação de direitos constitucionais, é um momento privilegiado de formulação de ideários mais amplos. É nessa arena que deságuam todos os questionamentos posteriores à elaboração de políticas públicas nas searas executiva e legislativa. Por ocasião de casos de grande repercussão pública, são apresentadas as manifestações de uma gama variada de atores, desde as partes do processo até aqueles que buscam influenciar as decisões. A participação desses atores que não são parte direta do processo, mas podem apresentar argumentos jurídicos sobre os casos, é comum especialmente nos julgamentos sobre a constitucionalidade de leis. Essas figuras são chamadas de amici curiae, termo em latim que significa “amigos da corte” – ou, no singular, amicus curiae, “amigo da corte”.
Observar as articulações dos discursos sobre o direito nos demais poderes permite captar os sentidos que estão em disputa em outras arenas. Os políticos que ocupam cargos no Legislativo e no Executivo recorrem à linguagem de direitos com objetivos diferentes dos normalmente associados à “técnica jurídica”. Contudo, em seus “discursos políticos”, eles também atribuem sentidos importantes a referências jurídicas, usam a linguagem de direitos para construir representações de inimigos, reforçar agendas identitárias e fazer outros apelos populistas. Essas manifestações permitem situar a multiplicidade de sentidos da linguagem de direitos na atual configuração da cultura política, além de apontarem para rumos no futuro.
Os capítulos deste livro destacam os caminhos argumentativos de manifestações nos campos do BBB em direções conservadoras e reacionárias, isto é, sua origem e seu percurso até desembocar no debate atual. Cada capítulo se aprofunda em uma das áreas, em três passos. Na introdução, identificamos as características históricas e as mudanças de cada campo no Brasil, do contexto de seu estabelecimento como uma das bancadas do Congresso Nacional até seu papel na grande “onda”[26] ou “maré” [27]conservadora‑reacionária atual. Em seguida, apresentamos os casos centrais que compõem o estudo de cada área: quais temas apareceram em quais instâncias dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Por fim, analisamos os discursos presentes nas manifestações do BBB.
Em vez de reproduzir a estrutura de cada argumentação ou selecionar as articulações mais representativas, apresentamos um conjunto de argumentos próximos, organizados em categorias que permitem detectar as diferentes posições em disputa no interior da cultura política. Começamos por destacar como os atores analisados retratam seus principais ideais, a partir de uma autoimagem e de um diagnóstico crítico do estado de coisas (um mundo em crise ou em perigo). Depois, estruturamos os diferentes discursos observados nos documentos [28]a partir de quatro questões que mostram os usos da linguagem jurídica para atingir objetivos conservadores e reacionários: Qual sentido de democracia é construído na interpretação de princípios estruturais do Estado de direito, tais como a separação de poderes e a segurança jurídica? Quais direitos e liberdades estão no centro das argumentações? Quais atores esses direitos buscam proteger, e do quê, ou de quem eles os protegem? Quais visões de mundo o direito invocado por esses atores projeta e quais rejeita? Essas perguntas ajudam a organizar os tipos de argumentos que aparecem nas disputas interpretativas sobre direitos, e indicam para quais direções elas convergem e que impacto têm na cultura política democrática.
Adriane Sanctis de Brito, associada ao Departamento de História de Harvard e codiretora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), é autora de Seeking Capture, Resisting Seizure (Max Planck, 2023), coautora de O caminho da autocracia (Tinta‑da‑China Brasil, 2023) e organizou, com Luciana Reis, o livro Direitas, radicalismos e as disputas pela linguagem de direitos no Brasil (FES/LAUT, 2024).
Luciana Silva Reis, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pesquisadora associada ao Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDD‑Cebrap) e cofundadora do LAUT, organizou, com Adriane Sanctis, o livro Direitas, radicalismos e as disputas pela linguagem de direitos no Brasil.
Ana Silva Rosa, doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp‑Uerj) e pesquisadora do LAUT, foi visiting researcher no Afro‑Latin American Research Institute da Universidade de Harvard.
Mariana Celano de Souza Amaral, mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do LAUT, é coautora de O caminho da autocracia.
[1] Scheingold, S. The Politics of Rights: Lawyers, Public Policy, and Political Change. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2004, p. 3, tradução nossa. No contexto jurídico, a tradução mais comum do termo “law” é “direito”, pois frequentemente designa a disciplina, a prática e o sistema jurídico em geral. Em diálogo com o título do livro, optamos aqui pelo cognato “lei” – que também é usado em português, especialmente na linguagem coloquial, para se referir a todo o direito.
[2] “Linhas de força” é uma expressão que enfatiza a falta de uniformidade das ações e dos atores políticos em uma “onda conservadora” – daí sua adoção para designar o que resulta de “processos sociais […] desiguais, assimétricos e com temporalidades distintas”. Almeida, R. “A onda quebrada: Evangélicos e conservadorismo”. Cadernos Pagu, n. 50, 2017, p. 25). Essa designação também permite – como pretendemos aqui – destacar as direções da prática de interpretações jurídicas e suas repercussões no regime político, para além do ponto de partida e do ponto de chegada de uma controvérsia jurídica. Nesse sentido, ver: Kennedy, D. “Authoritarian Constitutionalism in Liberal Democracies”. In: Alviar García, H.; Frankenberg, G. (Eds.). Authoritarian Constitutionalism. Northampton: Edward Elgar Publishing, 2019, p. 164. Na análise de Duncan Kennedy sobre o embate entre autoritarismo e republicanismo, ambos são considerados “forças” que empurram a linguagem constitucional e sua interpretação em uma ou outra direção.
[3] A expressão “onda conservadora” é relativamente imprecisa para designar o fenômeno a que se refere, mas é suficiente para nossos propósitos de nos situarmos nos debates sobre um processo já consensualmente aceito como definidor da realidade política brasileira contemporânea: o processo de consolidação, expansão e impacto crescentes de diversas correntes situadas à direita do espectro político, inclusive correntes extremistas. almeida, R., Op. Cit.
[4] Scheppele, K. L. “Autocratic Legalism”. The University of Chicago Law Review, v. 85, n. 2, pp. 545‑83, 2018.
[5] Búrca, G.; Young, K. G. “The (Mis)Appropriation of Human Rights by the New Global Right: An Introduction to the Symposium”. International Journal of Constitutional Law, v. 21, n. 1, pp. 205‑23, 2023.
[6] Loughlin, M. “The Contemporary Crisis of Constitutional Democracy”. Oxford Journal of Legal Studies, v. 39, n. 2, pp. 435‑54, 2019.
[7] Usamos aqui a formulação de Marcos Nobre sobre as noções de modelo de sociedade, especialmente “cultura política”: “Modelo de sociedade, cultura política são formas enraizadas na vida social, nas instituições políticas formais, na economia, no cotidiano. São noções que balizam visões de mundo, que legitimam a maneira como se distribuem riqueza, poder, recursos ambientais, reconhecimento social. Um modelo de sociedade não é apenas um programa econômico nem somente uma maneira determinada de entender a política, mas um padrão de regulação social mais amplo. E essa maneira abrangente de regular a vida social se expressa em uma cultura política determinada”. nobre, m. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 22. Nesse sentido, a democracia, mais do que simplesmente um conjunto de instituições ou práticas formais – como eleições livres e periódicas –, também se faz presente em determinados aspectos de uma cultura política e de um modelo de sociedade.
[8] Em torno da noção de “mobilização do direito” consolidou‑se um campo especializado dos estudos sociojurídicos. Para uma discussão sobre essa literatura, ver: Fanti, F. “Movimentos sociais, direito e Poder Judiciário: um encontro teórico”. In: Engelmann, F. (Org.). Sociologia política das instituições judiciais. Porto Alegre: Editora da ufrgs, 2017, pp. 241‑74. Um marco inicial definidor para o campo é o livro de que extraímos a epígrafe desta introdução. Ver: Scheingold, S., Op. Cit.
[9] No campo de estudos sobre mobilização de direitos, joga‑se luz sobre o ativismo de grupos conservadores em trabalhos como: Decker, J. The Other Rights Revolution: Conservative Lawyers and the Remaking of American Government. Nova York: Oxford University Press, 2016. Na linha sociológica, com foco nos profissionais do direito no Brasil: Fontainha, F. C. Et Al. O. “Os juristas da bala, do boi, e da bíblia: Outros usos e mobilizações políticas do Direito?” In: XIV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós‑Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2021, [s.l.]. Anais… [S.l.]: ..Biblioteca Virtual da Anpocs, 2021. Recentemente, o caráter regressivo do ativismo de direita em relação aos direitos (especialmente de minorias) vem sendo explorado na literatura internacional, como em: Gloppen, S. “Conceptualizing Abortion Lawfare”. Revista Direito GV, v. 17, n. 3, 2021; Payne, L. A.; Zulver, J.; Escoffier, S. The right against rights in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2023. Neste livro, tomamos como base os trabalhos que exploram (por vezes, indiretamente) essas temáticas ao tratar de áreas específicas da atuação conservadora.
[10] Kennedy, D., Op. Cit., p. 161.
[11] “Como as ideologias, as ordens constitucionais contemporâneas reais – consideradas próximas do ponto mais liberal, democrático ou republicano do espectro – são incoerentes e incompletas. São mosaicos de normas em diferentes níveis de abstração, com antecedentes – assim como defensores no presente – autoritários e republicanos (e progressistas e conservadores), refletindo estágios anteriores de conflito ideológico, bem como batalhas contemporâneas dentro de cada orientação. As normas constitucionais que são pontos de luta ideológica, por exemplo, definindo o que a força policial pode fazer com as pessoas quando as prende, são às vezes vagas e gerais e às vezes específicas e contraditórias. Em qualquer caso, elas são interpretadas por oficiais executivos e tribunais, com algumas interpretações empurrando a norma na direção autoritária e algumas na direção republicana.” Ibid., p. 162, tradução nossa.
[12] Para uma análise comparada do declínio democrático da história recente no Brasil e em outros países, ver: Brito, A. S. Et Al. O caminho da autocracia: Estratégias atuais de erosão democrática. São Paulo: Tinta‑da‑China Brasil, 2023.
[13] Wodak, R. “The Discourse‑Historical Approach”. In: Wodak, R.; Meyer, M. (Eds.). Methods of Critical Discourse Analysis. Londres: Sage, 2001, pp. 63‑94.
[14] Freeden, M. Ideologies and Political Theory: A Conceptual Approach. Nova York: Oxford University Press, 1996.
[15] São alguns exemplos de análises sobre as manifestações sociais e políticas da direita brasileira contemporânea, a partir de diferentes referenciais teóricos, propondo compreensões divergentes desse aspecto paradoxal: Arantes, P. F.; Frias, F.; Meneses, M. L. 8/1: A rebelião dos manés: Ou esquerda e direita nos espelhos de Brasília. São Paulo: Hedra, 2024; Cesarino, L. O mundo ao avesso: Verdade e política na era digital.
São Paulo: Ubu, 2022; Medeiros, J.; Rocha, C.; Solano, E. The Bolsonaro Paradox: The Public Sphere and Right‑Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil. Cham: Springer, 2021.
[16] Almeida, R, Op. Cit.
[17] Ver nota 3.
[18] Freeden, M., Op. Cit.
[19] Lynch, C.; Cassimiro, P. H. O populismo reacionário: Ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo: Contracorrente, 2022.
[20] Brito, A. S. Et Al., Op. Cit.
[21] Cooper, M. Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism. Nova York: Zone Books, 2017.
[22] Brown, W. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Politeia, 2019.
[23] Ibid.; Cooper, M., Op. Cit. 24 Brown, W., Op. Cit., p. 88.
[24] Brown, W., Op. Cit., p. 88.
[25] Ibid.; Cooper, M., Op. Cit., p. 69.
[26] Almeida, R., Op. Cit.
[27] Faganello, M. A. “Bancada da bala: uma onda na maré conservadora”. In: Cruz, S. V.; Kaysel, A.; Codas, G. (Eds.). Direita, volver!: O retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, pp. 145 ‑62.
[28] Nossa base de pesquisa é composta por 407 documentos públicos coletados de acordo com a divisão “bala”, “boi” e “Bíblia”, e analisados qualitativamente. A apresentação final da pesquisa sistematiza, por meio de uma estrutura voltada à compreensão das disputas sobre pontos‑‑chave da cultura política democrática, categorias e elaborações presentes nas próprias manifestações.
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Eventos de lançamento
Rio de Janeiro
Bate-papo e sessão de autógrafos com: Adriane Sanctis de Brito, Luciana Silva Reis, Ana Silva Rosa, Mariana Celano de Souza Amaral e Renáta Uitz
Sexta-feira, 06/12, às 19h
Livraria da Travessa Ipanema (Visc. de Pirajá, 572 – Ipanema, Rio de Janeiro)
São Paulo
Bate-papo e sessão de autógrafos com: Adriane Sanctis de Brito, Luciana Silva Reis, Ana Silva Rosa e Mariana Celano de Souza Amaral. Com mediação de Carol Pires.
Segunda-feira, 09/12, às 19h
Livraria da Vila Fradique (Fradique Coutinho, 915 – Vila Madalena, São Paulo)