A leptospirose e a abordagem de Saúde Única
A infecção afeta animais e humanos sobretudo em assentamentos precários e favelas, a leptospirose só pode ser controlada e prevenida através da Saúde Única, na intersecção da saúde humana, animal e ambiental
A leptospirose é uma doença infecciosa, causada por uma bactéria do gênero Leptospira, que afeta humanos e animais em regiões rurais e urbanas, especialmente em assentamentos precários e favelas. Possui grande importância social e econômica devido à sua alta incidência e percentual significativo de internações, altos custos hospitalares e dias de trabalho perdidos, além da alta letalidade.
A doença pode se apresentar com sinais inespecíficos como febre, câimbras, dor abdominal, vômitos e evoluir para sintomas de sangue na urina e hematomas. Alguns pacientes desenvolvem a forma mais grave da doença, conhecida como síndrome de Weil, na qual o paciente pode apresentar hemólise intravascular, manifestações hemorrágicas, comprometimento renal e hepático. Estima-se que um milhão de casos graves de leptospirose ocorram em humanos a cada ano no mundo, causando aproximadamente 58.900 mortes/ano.[1] No Brasil, a letalidade média está em 9,6% nos últimos anos, de 2019 a 2024.
Prevenção e controle
A diversidade de animais portadores representa um desafio significativo para prevenção e controle. Embora os cães e vários animais de produção sejam frequentemente acometidos pela doença, os roedores acabam sendo os principais reservatórios da Leptospira icterohaemorrhagiae,[2] espécie de maior importância epidemiológica em relação à gravidade da doença para os seres humanos. Portanto, tanto em centros urbanos como em áreas rurais, a presença de roedores é um fator de risco importante.

A transmissão pode ocorrer por contato direto da pele com a urina de animais e pessoas com a Leptospira sp. ou por contato indireto, pela exposição da pele à água e ao solo contaminados pela urina de animais infectados. O estudo conduzido pelos autores deste artigo avaliou a população urbana e rural e constatou que a população rural é mais acometida, reforçando o ponto da leptospirose ser uma doença ocupacional e envolver diferentes hospedeiros, mais característicos de tal região.
A dinâmica da leptospirose envolve tanto o reservatório animal, como a manutenção da bactéria no ambiente favorável. A bactéria causadora da leptospirose sobrevive no solo mais tempo, quando úmido,[3] em solos/água com pH alcalino e neutro[4] e solo/água com temperaturas mais baixas.[5] Quando associada a enchentes, a água se mistura com urina de animais e humanos infectados, e então a bactéria causadora da doença se espalha no ambiente e no solo, elevando a possibilidade de haver contato com humanos.
As características do solo, do clima e da hidrologia, assim como a presença de hospedeiros animais, tanto domésticos quanto selvagens, juntamente com fatores demográficos, agrícolas e pecuários, são determinantes para a transmissão da leptospirose. Isso torna a doença um excelente exemplo de situação em que a abordagem integrada da saúde animal, humana e ambiental se faz necessária para a elaboração de políticas mais eficazes de prevenção e controle. Esse conceito de Saúde Única integrada busca soluções para promover a saúde de forma abrangente, incentivando a cooperação desde o nível local até o global no enfrentamento de ameaças à saúde.
Enchentes no Rio Grande Sul e leptospirose
Entre abril e maio de 2024, o Rio Grande do Sul registrou uma média de precipitação acima da média histórica, com valores superiores a 300 milímetros causando enchentes e inundações em quase 95% dos municípios, incluindo a capital Porto Alegre. Esse cenário contribuiu para um aumento exponencial nos casos de leptospirose, em comparação aos anos anteriores. Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) apontam que o número de notificações de leptospirose em abril e maio de 2024 foi cerca de 60% maior do que no mesmo período em 2023.7 Esse fato recente enfatiza a problemática da crise climática associada com agravos à saúde humana, animal e ambiental.
O território e sua ocupação têm relação, tanto com a ocorrência da doença na população como nas consequências das alterações climáticas. No caso do Rio Grande do Sul, outras enchentes históricas já foram relatadas em associação ao fenômeno climático El Niño nos anos de 1941, 1982 e 2023. Contudo, o desastre do episódio recente pode ser concomitantemente atribuído a eventos climáticos cada vez mais intensos e ao processo de urbanização desordenado próximo a bacias hidrográficas. Somado a isso, a ocupação de áreas ribeirinhas pode acarretar alterações significativas no ciclo hidrológico e consequentes impactos ambientais.
Há de se considerar também os problemas com a drenagem urbana, uma vez que a urbanização excessiva e a consequente impermeabilização do solo podem atrapalhar o escoamento da água, aumentando a vazão e a frequência das inundações.8
O caso do Paraná
No Brasil, a maior incidência de leptospirose ocorre em favelas densas e assentamentos precários de áreas urbanas sujeitas a inundações e sem infraestrutura sanitária básica nas Regiões Nordeste e Norte, e em paisagens agrícolas intensivas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.[6]
A pesquisa dos autores deste artigo descobriu que, no estado do Paraná, áreas com solos úmidos e menos ácidos (Figura 1) e áreas de produção e armazenamento de grãos (soja e trigo, que podem ser potenciais recursos alimentares para roedores) tiveram maior taxa de incidência de leptospirose (Figura 2).[7]
Figura 1 – Mapa temático da incidência média da leptospirose por 100.000 habitantes por município do estado do Paraná de
2008 a 2018 e a cobertura dos tipos de solo no estado.

Figura 2 – Mapas temáticos da área plantada de trigo (%) e soja (%) por município no estado do Paraná e os respectivos mapas da análise bivariada local de Moran

Crédito: autores do texto
Essa pesquisa também mostrou que regiões com maior precipitação e menor temperatura tiveram maior incidência de leptospirose humana, o que pode ocorrer devido à evapotranspiração mais lenta da água nesses solos (Figura 3).
Figura 3 – Mapas temáticos de temperatura, altitude, precipitação e incidência média da leptospirose na população geral dos municípios, de 2008 a 2018 e os respectivos mapas da análise local bivariada de Moran.

Fonte: autores do texto
O solo pode atuar como um reservatório ambiental de leptospiras patogênicas, podendo oferecer a elas condições favoráveis para sua manutenção, como pH mais alcalino, menor teor de nutrientes e maior teor de umidade. Os biofilmes produzidos por outras bactérias ou pela própria Leptospira spp. são capazes de abrigá-la por longos períodos.9 Por este motivo, o ambiente com suas características, somado à ação humana, tem extrema importância na manutenção da bactéria, tornando a abordagem integrada e multiprofissional da Saúde Única necessária para a elaboração de medidas preventivas e de controle de reservatórios animais, como roedores, mais efetivas.
Estudos como os apresentados neste artigo auxiliam no planejamento e direcionamento de políticas públicas de saúde e consequentemente em ações mais adequadas para controle e prevenção da leptospirose, assim como evidenciam a relevância de estudos ecológicos espacializados com integração pela abordagem de Saúde Única em outros territórios.
Melca Niceia Altoé de Marchi é médica veterinária, consultora técnica do Ministério da Saúde.
Vitor Vieira Vasconcelos é professor de Dinâmicas Ecossistêmicas aplicadas ao Planejamento Territorial na Universidade Federal do ABC (UFABC), São Paulo.
Roberta Lemos Freire é professora de Epidemiologia e Saneamento na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná.
Anaiá da Paixão Sevá é professora visitante de Epidemiologia na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), Bahia.
[1] Costa F, Hagan JE, Calcagno J, Kane M, Torgerson P, Martinez-Silveira MS, et al. (2015). Global Morbidity and Mortality of Leptospirosis: A Systematic Review. PLOS Neglected Tropical Diseases. 9 (9): e0003898. doi:10.1371/journal.pntd.0003898
[2] Boey K, Shiokawa K, Rajeev S (2019) Leptospira infection in rats: A literature review of global prevalence and distribution. PLoS Negl Trop Dis 13:1–24 . https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0007499
[3] Bierque, E., Thibeaux, R., Girault, D., Soupé-Gilbert, M. E., & Goarant, C. (2020). A systematic review of Leptospira in water and soil environments. PloS one, 15(1), e0227055.
[4] SCHNEIDER, M.C.; NÁJERA, P.; ALDIGHIERI, S.; BACALLAO, J.; SOTO, A.; MARQUIÑOWET al. Leptospirosis outbreaks in Nicaragua: Identifying critical areas and exploring drivers for evidence-based planning. Int J Environ Res Public Health. v.9, n.11, p.3883–3910, 2012.
[5] Bradley, E. A., & Lockaby, G. (2023). Leptospirosis and the environment: A review and future directions. Pathogens, 12(9), 1167.
[6] Galan, D. I., Roess, A. A., Pereira, S. V. C., & Schneider, M. C. (2021). Epidemiology of human leptospirosis in urban and rural areas of Brazil, 2000–2015. PLoS One, 16(3), e0247763.
[7] Marchi, M. N. A. Análise espacial dos casos humanos de leptospirose no Paraná e Leishmaniose no Brasil, uma abordagem em saúde única. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Londrina. 2021.
7 BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Dados de leptospirose, 2024.
8 NERIS, R. L. S.; SILVA, K. C. F. A.; SILVA, M. C.; BATISTA, M. S.; et al. Emergência em saúde pública no Rio Grande do Sul: evento climático extremo e o impacto da leptospirose. J Health NPEPS. v. 9, n. 1, 2024.
9 THIBEAUX, R.; GEROULT, S.; BENEZECH, C. CHABAUD, S.; SOUPÉ-GILBERT, M. et al. Seeking the environmental source of Leptospirosis reveals durable bacterial viability in river soils. PLoS Negl Trop Dis. v.11, n.2, p.1-14, 2017.