A luta contra o tráfico de pessoas na era da Covid-19
Será que novas pesquisadoras e ativistas feministas estão prontas para procurar novos aliados – tanto no terreno quanto nos corredores do poder – e reformular as suas reivindicações, ousando contribuir para a mobilização comprometida com mudanças sistémicas?
– 11 de março de 2020: após a identificação de um novo coronavírus, a Organização Mundial da Saúde declara que estamos vivendo uma pandemia (do grego pan-demos). A epidemia afeta toda (pan) a população (demos), não se limitando a algumas áreas geográficas.
-18 de março de 2020: com a declaração do estado de emergência português, a minha quarentena começa em Lisboa. Eu vou acalmando a ansiedade inesperada dando longos “passeios higiênicos” à primeira luz do amanhecer, escrevendo um artigo que deixara de lado para a elaboração de um projeto de pesquisa, preparando refeições saudáveis que perfumam a cozinha. Os homens e as mulheres, principalmente de nacionalidade brasileira, com quem vou cruzando com inesperado cuidado, e algum constrangimento, pela gestão incomum dos corpos, reduzem-se apenas àqueles que me entregam as compras em casa. A esses soma-se Cesária, cabo-verdiana que vive em Lisboa há muitos anos. Todos a conhecem no bairro: à noite, antes de passar o caminhão de recolha do lixo, ela retira os caixotes dos vários prédios e os traz de volta no início da manhã.
Cesária nunca teve um contrato de trabalho e, com a declaração da pandemia e o subsequente estado de emergência, perdeu muitos clientes com quem passava os seus dias entre limpeza de casas, serviços de lavandaria e outros trabalhos pagos por tarefa. Com colegas e amigos das várias partes do Atlântico, reunidos em torno de uma tela, partilho o sentimento de desconforto ao encorajar Cesária a usar máscaras do tipo FFP2, durante largas semanas inalcançáveis, enquanto é difícil prever o quanto ela poderá avançar na emergente crise económica. Enquanto isso, todos partilhamos da questão referente à duração da suspensão do controverso debate político e da mídia, em torno de um dos problemas sobre o qual temos trabalhado nos últimos anos: o “tráfico de pessoas”. Estou entre aqueles que esperam que o momento histórico inesperado proporcione uma oportunidade para repensar tanto a gestão da saúde, desafiada em diferentes geografias, quanto a organização do trabalho, a gestão da mobilidade, a ideia de cidadania.
– 26 de março de 2020: encontro entre os e-mails diários – o primeiro de uma série de policy brief, segundo o qual, num momento caracterizado por questões de saúde pública mais urgentes, os grupos criminosos “poderiam” beneficiar de uma redução nos esforços para combater o crime organizado e o tráfico de pessoas. Até os padrões de vitimização “podem” mudar. É referido o caso do Sudeste Asiático em que o fechamento de escolas e a crise econômica das famílias “poderiam” contribuir para o tráfico de crianças exploradas sexualmente online. Apesar da incomum imobilidade terrestre e aérea, bem como do aperto dos controles policiais, dentro e nas fronteiras dos diferentes países, o vínculo entre Covid-19 e tráfico de pessoas começa a ser afirmado e disseminado por redes de especialistas e agências das maiores organizações intergovernamentais.
Apesar da adoção de medidas, como a extensão de vistos para migrantes, organizações locais de vários tipos reafirmam que traficantes de todo o mundo estão ajustando os seus modelos de exploração usando as modernas tecnologias de comunicação. A evidência pareceria escassa. Alto o desafio de medir, prever, imaginar. Entretanto, por meio de webinars e da mídia, diferentes atores, apresentando-se reciprocamente como fonte de informação, afirmam existir um aumento do risco de aliciamento online de crianças e da exploração dos serviços sexuais online de mulheres. As recomendações enfatizam, em uníssono, a necessidade de permitir que organizações governamentais e não governamentais continuem a prestar os seus serviços num momento em que a pandemia obriga a um inesperado ajuste das prioridades económicas dos países.
Podemos perguntar-nos o que há de errado nisso. Para responder melhor a essa pergunta, importa dar um passo atrás no tempo.
A pré-história na luta contra o tráfico
As preocupações com o tráfico, principalmente de mulheres na prostituição, são bastante antigas, pois já se faziam sentir na época das campanhas vitorianas contra a “escravidão branca”. Historiadorass feministas e não feministas convergem em torno do fato de que, em diferentes contextos, as evidências da “escravidão branca” – ou seja, da aquisição, através da força ou engano de uma mulher ou menina branca contra a sua vontade para exploração sexual – eram muito escassas (veja-se, entre outros, Guy, 1991;Grittner, 1990; Walkowitz, 1980). Apesar disso, a partir do século XIX, houve um aumento na migração de mulheres da Europa, especialmente do sul e leste.
Muitas delas continuavam a trabalhar no mercado de sexo nos Estados Unidos e na América do Sul, e também na África e na Ásia. Essa circunstância encoraja estudiosos como Fredrick K. Grittnern (1990) a uma descrição da “escravidão branca” em termos de “mito cultural” ou crença coletiva que, além de simplificar a realidade, expressa medos e ansiedades. Na “escravidão branca”, os que eram alimentados pela independência das mulheres e pelo aumento da sua migração convergiriam, assim, como os processos de industrialização e urbanização em curso. Os preconceitos raciais e de classe também teriam um papel significativo.
Donna J. Guy (1991) lembra-nos que era inconcebível para as ativistas britânicas contra a “escravidão branca” que as suas compatriotas voluntariamente se submetessem à venda de sexo com homens estrangeiros na Argentina. Porém, as suas preocupações não eram tão fortes no caso de compatriotas no mercado sexual britânico. Apesar da escassa evidência, a “escravidão branca” torna-se objeto de romances e filmes e recebe ampla cobertura da mídia. É o caso da controversa série de artigos de William T. Stead, “The Maiden Tribute to Modern Babylon”, publicados na Pall Mall Gazette em 1885. Além das organizações religiosa e de pureza social, a “escravidão branca” mobiliza o movimento feminista abolicionista.
Numa época de vigilância de prostitutas, forçada pelo Estado a passar por rígidos controlos sanitários para trabalhar, feministas como Josephine Butler defenderam a abolição da prostituição, que identificavam com a “escravidão branca”. O resultado da mobilização é a elaboração de uma série de acordos internacionais e leis nacionais que, no entanto, acabam por limitar o movimento de mulheres jovens, por meio de mecanismos de vigilância e expulsão, além de serem usados para perseguir e prender prostitutas, mulheres da classe trabalhadora e homens negros. No geral, o objetivo emancipatório do feminismo abolicionista da época, que acreditava que as prostitutas deveriam ser vistas como vítimas que deveriam ser resgatadas ou reabilitadas, e não supervisionadas e punidas, acabou por aumentar os poderes repressivos do Estado.
O pânico moral moderno
Nos anos seguintes a 1914, com a redução da mobilidade causada pela Primeira Guerra Mundial, as campanhas contra a “escravidão branca” perdem força. Será necessário esperar até aos anos oitenta do século XX para assistir ao ressurgimento das preocupações feministas – assim como de grupos religiosos, organizações de direitos humanos e várias organizações governamentais e intergovernamentais, para as mulheres “prostituídas”.
Nesse caso, as ansiedades envolvem principalmente as mulheres do hemisfério sul e as não ocidentais. No entanto, da mesma forma que ocorreu cerca de um segundo antes, o alarme para o tráfico é caracterizado por poucas evidências empíricas. Contudo, feministas neoabolicionistas como Kathleen Barry, mais uma vez identificando a prostituição com o tráfico, reivindicam a sua abolição entendida como uma forma de violência patriarcal contra as mulheres. Porém, no final dos anos 90 do século passado, na época da elaboração do mais recente instrumento internacional contra o tráfico – o Protocolo das Nações Unidas para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças (também conhecido como Protocolo de Palermo) –, o lobby neoabolicionista foi contestado por quem defende os direitos das e dos profissionais do sexo.
Este lobby indica, na ausência do “consentimento”, um elemento fundamental do tráfico, que o distingue da prostituição. Após um longo e amargo debate, que ameaçou a elaboração do Protocolo, em 2000 foi alcançada uma definição de compromisso, que inclui o uso da força ou coerção como elemento essencial do tráfico e estabelece a distinção entre prostituição “voluntária” e “forçada”. Além disso, o Protocolo de Palermo, ao contrário dos instrumentos anteriores, reconhece que todas as pessoas podem ser traficadas, não apenas mulheres e crianças, e reconhece também que o tráfico pode ocorrer em todos os setores de trabalho sem se limitar ao mercado do sexo.
No entanto, tal como foi destacado efetivamente desde as primeiras reflexões sobre esse instrumento por uma estudiosa e ativista pelos direitos das trabalhadoras do sexo, Jo Doezema (2000, 2005), o Protocolo de Palermo não oferece nada às e aos profissionais do sexo. Nos últimos vinte anos, a luta contra o tráfico de pessoas não só contribuiu para o agravamento das condições de vida e de trabalho das trabalhadoras e dos trabalhadores do sexo em diferentes países, através do fortalecimento de atividades racistas, classistas e de vigilância e controle de fronteiras e do mercado do sexo, mas também para que fossem realizadas deportações de suspeitas de “vítimas de tráfico de pessoas”.
Esses e outros “danos colaterais” (GAATW, 2007), como a perda de rendimento, envolvem até hoje numerosos migrantes marginalizados, bem como as e os profissionais do sexo. Além disso, as críticas de ativistas e pesquisadores intensificaram-se face à ineficácia dos esforços de proteção das “vítimas de tráfico”, vitimadas, além do “tráfico de pessoas”, por práticas como a detenção em abrigos e a reeducação, antes de elas voltarem para a exploração “legal” em setores de baixos salários. Não menos problemático é o uso instrumental de uma parte daquilo que Laura Agustín (2007), com uma expressão que se tornou famosa, define como sendo a “indústria do resgate”, de problemas, em alguns casos narrativas fraudulentas de vitimização, enquanto a proteção das pessoas rotuladas como traficadas tem sido substancialmente submetida ao objetivo principal de punir os traficantes, ou seja, aos interesses securitários dos vários estados-nação.
Novos pânicos morais ou oportunidades renovadas?
Durante a atual pandemia, mais uma vez, evidências alarmantes de tráfico de pessoas são escassas, as fontes frágeis. Mas é possível admitir que, provavelmente, em algum lugar distante e exótico, que possa contribuir para renovar o pânico moral pelo tráfico de pessoas (ver também Weitzer, 2005), existe o risco de que mulheres e crianças sejam “objeto” de novas formas de tráfico por redes criminosas diligentes. Enquanto isso, hoje, mais do que nunca, o feminismo deveria questionar se campanhas antitráfico, cursos de formação e prevenção sobre tráfico, conferências em hotéis de luxo em capitais internacionais ou on-line, tradicionalmente na presença de “especialistas” e na ausência de qualquer “vítima”, podem realmente oferecer alternativas viáveis às “vítimas” de tráfico de pessoas e aos muitos trabalhadores, principalmente migrantes, postos à prova pela atual crise económica e de saúde.
Penso que o feminismo deveria questionar se aqueles trabalhadores, cujas experiências de exploração podem ser consideradas pelos representantes das forças policiais, ou de alguma ONG, suficientemente violentas para serem descritas como formas de tráfico, poderiam beneficiar de algo após a denúncia do seu “traficante”. Ao contrário dos que têm emprego, um computador e podem trabalhar em casa, contando com algumas economias e uma rede social, a maior parte da força de trabalho mundial – que inclui homens e mulheres como Cesária – é deixada substancialmente sem renda e poder de negociação desde o início da crise sanitária.
Com efeito, como a Global Network of Sex Work Projects (NSWP) e a UNAIDS enfatizaram, a atual pandemia, destacando as desigualdades preexistentes, afeta desproporcionalmente trabalhadores, como as e os profissionais do sexo, que têm uma experiência diária de estigma, marginalização e, às vezes, criminalização, bem como precariedade e exclusão de qualquer mecanismo de proteção social. A Aliança Global Contra o Tráfico de Mulheres (GAATW), uma rede feminista internacional com uma experiência histórica de intervenção com as “vítimas de tráfico”, tem confirmado repetidamente, nas últimas décadas, que a maioria dos casos de “tráfico” diz respeito a mulheres migrantes que sabiam que iriam trabalhar no mercado do sexo, mas que não estavam cientes das condições concretas de trabalho, difícil de negociar no caso de formas irregulares de migração.
Porém, uma “indústria do resgate” bem estabelecida parece estar interessada em prosseguir com a sua agenda, com força renovada, ignorando não só o que muito tem sido dito e mostrado, nomeadamente por grupos feministas críticos, mas também as desigualdades socioeconómicas globais mais amplas.
A atual pandemia pode ser uma oportunidade para repensar a linguagem com a qual definimos os problemas e a identificação de inimigos reais, bem como as alianças e formas de participação, das quais grande parte da força de trabalho mundial é substancialmente excluída. Será que novas pesquisadoras e ativistas feministas estão prontas para procurar novos aliados – tanto no terreno quanto nos corredores do poder – e reformular as suas reivindicações, ousando contribuir para a mobilização comprometida com mudanças sistémicas?
Mara Clemente é jornalista e socióloga. Investigadora integrada no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e professora auxiliar convidada da mesma instituição. Especialista em Estudos de Gênero e Migrações, tem
dedicado os últimos anos ao estudo do tráfico de pessoas.