A luta de mulheres do interior do interior do Maranhão
A expressão é interior do interior do Maranhão é utilizada pelas pessoas em diferentes locais do estado como referência às zonas rurais, povoados, destacando ainda mais as distâncias geográficas, mas também sociais e de acesso a serviços públicos dessas localidades com relação a capital, a ilha de São Luís.
Desde que a pandemia começou, fomos afetados em nossas rotinas e fomos vendo nossas certezas, dia após dia, sendo dissipadas. Contudo, outras percepções, antes escamoteadas, tornaram-se mais gritantes. Por que tocamos nesse ponto?
Somos professoras no interior do Maranhão e escolhemos construir nossas trajetórias pessoais e profissionais longe de nossas famílias. Para ambas, isso sempre teve custos, porém a afetividade que encontramos nas pessoas que moram nessas cidades do interior, em vários momentos, aqueceu os nossos corações. Foram afagos tão calorosos como os cheiros e sabores das cozinhas de nossas casas maternas. Sozinhas em paisagens distantes, essas pessoas não tiveram restrições em nos amparar, oferecer seus ouvidos, compartilhar momentos, nos fazendo ampliar a nossa rede de afeto. Dos trânsitos que empreendemos, com certeza seria difícil permanecer sem esse acolhimento, renovado cotidianamente no exercício da docência.
No momento atual de difusão do novo coronavírus, entretanto, essas pessoas que se tornaram nossas referências de afeto, e até mesmo de família, sofrem ainda mais com as consequências de um país que, mais do que nunca, escancara as desigualdades sociais que representam contornos quanto às diferenças sociais de classe, gênero e raça se imiscuem em processos de exclusão. Nossas mulheres de São Bernardo, Nordeste do Maranhão que, em meio a pandemia, se arriscam para garantir a manutenção e “sobrevivência de suas famílias, fazem porque por meio de uma opressão sistematizada, são obrigadas a se sentir supérfluas, ocupando o lugar do inferior desumanizado” (Audre Lorde, 2019).

Sem conseguir garantir o isolamento social, uma parcela significativa da população desse município é autônoma, implicando em exercer suas atividades laborais no cotidiano das ruas, aumentando o risco de contágio da doença. Nos setores informais e serviços pouco valorizados, encontram-se mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico como diaristas e que, por serem chefes de família, não podem abdicar de realizar esses serviços, se arriscando por uma diária de R$ 35,00 – média paga pelos moradores da cidade por esse serviço.
Não obstante, essa dinâmica de exclusão incide também em contextos socioeducativos, pois, muitas famílias sequer possuem acesso à internet ou equipamentos tecnológicos que possibilitem uma qualidade de aprendizagem durante o período da pandemia. Esse fato culminou com a suspensão das aulas na educação básica e no ensino superior em muitos municípios brasileiros e, como forma de dar seguimento às atividades, muitas instituições passaram a ofertar aulas em modo remoto, ampliando ainda mais o abismo social, visto que um entre cada quatro brasileiros não têm acesso à internet.
A invisibilidade nessa perspectiva situacional gerada pela pandemia, reflexo da perversidade do neoliberalismo, combinado com o domínio do capital financeiro, como explica Santos (2020) exclui, discrimina e mata a população pobre. Como destaca Butler (2020), o vírus por si só não discrimina, mas sim os seres humanos moldados por poderes entrelaçados de nacionalismo, racismo, sexismo, xenofobia e capitalismo.
No Brasil, o Maranhão é o estado com o maior índice de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza (53%), apresenta a menor expectativa de vida (70,9 anos) e é o segundo estado com maior taxa de mortalidade infantil, com uma média de 21,3 óbitos por cada mil nascimentos (IBGE, 2017)[1], reflexos de falta de políticas públicas e de investimentos em infraestrutura urbana, saúde, educação.
São Bernardo tem uma estimativa populacional em torno de 28 mil habitantes, dos quais apenas 5,1% estão ocupados em trabalhos formais e ganham em média 1,5 salários mínimos. Já o percentual da população com rendimento nominal per capita de até meio salário mínimo é de 53%. Além disso, segundo dados do último Censo, 11,1% dos domicílios tem tratamento de esgoto adequado (IBGE, 2017). Com relação ao abastecimento de água, o atendimento é parcialmente ofertado pela Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão (Caema). Na área urbana, 56% da população tem acesso ao sistema de água encanada. Na área rural, 47% da população tem acesso adequado através de poços coletivos e individuais[2].
Na situação em que nos deparamos atualmente que nos impõe a necessidade de novos hábitos de higiene como forma de prevenção da doença, esses dados são sintomáticos das consequências de as desigualdades abarcarem variados aspectos de desumanização e violações de Direitos Humanos.
As políticas públicas, quando buscam intervir nesses cenários, adotam um discurso humanitário que, em muitos casos, não se empenham em subverter as dinâmicas de poder existentes. Pelo contrário, muitas delas acabam reforçando processos de exclusão. Como destaca Didier Fassin (1999), o processo de globalização de uma política de sofrimento está inserido dentro do paradigma do Estado democrático-capitalista. Esse paradigma é transposto tendo por objetivo suavizar os impactos dos efeitos das desigualdades sociais que recaem sobre a população vulnerável. Nesse espectro, lutar contra às desigualdades parece tarefa impossível.
As flexibilizações das leis trabalhistas contribuíram para a legitimação e emergência de novos processos de exclusão. Nas salas de aula, inúmeros são os depoimentos de alunas que trabalham todos os dias da semana, não tendo ao menos um dia de folga, para receber por mês a quantia de R$ 200,00 a R$ 300,00. As que conseguem ter acesso ao emprego formal, com o mínimo de garantias de direitos, sacrificam um tempo considerável de seus estudos, visto que os proprietários dos estabelecimentos não liberam essas estudantes para a realização de suas atividades estudantis. Estágios e outras atividades desenvolvidas no contraturno são realizadas em períodos de férias empregatícias. Uma delas, Juliana, disse que seu sonho era receber uma bolsa em projeto desenvolvido pela universidade para poder dedicar-se exclusivamente aos seus estudos. Seu salário, assim como de muitas, representa uma renda indispensável para a família.
As trajetórias pessoais nossas, autoras desse texto, convergem em vários momentos, segundo temporalidades e experiências diversas. Somos do eixo Sul-Sudeste do país, brancas e tivemos a oportunidade de alcançarmos a formação de doutoras com o financiamento de bolsas estudantis. Até passarmos em um concurso público, nunca tínhamos morado no Nordeste e saído de um eixo privilegiado de acesso a bens e capitais sociais e culturais que permite ter acesso gratuito a subsídios essenciais ao sucesso escolar e profissional (Lahire, 1997). Essa realidade está muito distante do município em que atuamos. Nele, não há bibliotecas públicas, também não há livrarias. Os livros que chegam nas escolas são os que muitos estudantes terão acesso em boa parte – senão por toda – de suas vidas. Uma vez, foi indagado em sala de aula quantos alunos e alunas tinham ido ao cinema. Em tom melancólico, uma estudante disse: – Eu nem sei o que é isso.
Eu, Tatiana cheguei a São Bernardo no início de 2019, depois de percorrer mais de 3000 km de distância a partir do Paraná. Desde então, (con) vivo e existo entre dois estados não somente com o corpo em si, mas estabelecendo relações sociais a partir de contextos economicamente, historicamente, culturalmente e politicamente distintos em suas configurações.
Antes de morar em São Bernardo, o único contato que tinha com o Maranhão foi a partir do turismo. Em diversas mídias, o “destino Maranhão” está vinculado ao Parque Nacional dos Lençóis. O fato de conhecer o estado apenas enquanto turista me proporcionou uma visão elitizada, frequentando espaços “para turistas” onde a população pobre não frequenta. Como pesquisadora, eu sabia que a exclusão social estava ali, mas ela não era vista quando se tem apenas o olhar do turista, pois, existem nuances de invisibilidade que suprimem paisagens, espaços, sujeitos, vidas, corpos, estratégias de agentes hegemônicos que modelam o espaço turístico de forma intencional para (re) criar imagens-espetáculo a partir de fetiches.
O imaginário sulista em torno do Maranhão enquanto região Nordeste é delineado por metáforas geográficas com discursos estratégicos ligados as relações de poder, como explica Foucault (1984). Assim, a ideia do Nordeste atrasado, miserável, sem recursos permeia ainda o pensamento de algumas pessoas que esquecem que nessa região existem vidas, saberes e fazeres, lugares de belezas singulares. Nas cidades grandes, o tempo rápido[3] não deixa os homens vivenciarem as filigranas da vida. E foi justamente no interior do interior do Maranhão que aprendi a importância do tempo lento e de respeitar diferentes cosmovisões.
Ao visitar uma comunidade quilombola, caminhando como um flâneur, observando o cotidiano das pessoas, as ruralidades, as rodas de conversa, o cultivo das plantações, as criações soltas pelas ruas sem asfalto e as casas de taipa, com meu olhar ainda urbanoide, lastimei as condições encontradas. Nesse momento, uma aluna rapidamente disse: “aqui eles são felizes, têm tudo o que precisam”. Como diz Santos (2006:213): “Cada lugar é, à sua maneira, o mundo”. Nesse cenário de limitações constantes, as resistências fazem parte do cotidiano, como o caso de Dona Bernarda Costa, moradora de Santa Quitéria (MA), distante cerca de 30 quilômetros de São Bernardo. A idosa de 87 anos, cuja longevidade já supera em quase vinte anos a expectativa de vida no estado, sensibilizada com a falta de máscaras para venda na cidade (equipamento indicado pelo Ministério da Saúde como forma de proteção contra o vírus) começou a costurar máscaras em TNT (material semelhante ao tecido) e doar aos vizinhos que estão no grupo de risco. Um gesto simples, mas que denota simbolicamente luta, resistência e (re) existência frente a períodos de crise.
Quando eu fui morar em São Bernardo, muitos me perguntavam o que eu ia fazer no interior do Maranhão. Em meio aos constantes aprendizados que tenho tido, aos novos sentidos de sociabilidade e convivialidade, algumas escolhas de vida são questionadas, parecendo enraizadas a qualquer contexto regional. Ser solteira e sem filhos vai contra a lógica do familismo, que implica que para uma mulher ser feliz existe a pré-condição de casamento e maternidade (Gonçalves, 2016). Ser mulher, deixar a família e ir trabalhar em um estado distante me trouxe também olhares desconfiados e admirados. Louca e corajosa. Esses dois adjetivos aparecem agora na minha vida em trânsito, estigmatizando minhas escolhas voluntárias, meu projeto de vida. Assim, passo a ser somente um corpo físico que por ser feminino necessita estar em uma estrutura familiar “tradicional” pela cultura machista e patriarcal. Por isso, para resistir, é necessário também (re) existir constantemente, a partir de movimentos de reivindicações, autonomia e independência.
Eu, Amanda, cheguei em São Bernardo em 2015, após um período de estadia em outra cidade maranhense, Bacabal. Por ter sempre me dedicado aos estudos de gênero e nunca ter presenciado determinadas práticas em terras bacabalenses, me estranhou muito quando, convidada por uma de minhas alunas que morava em povoado do município de São Bernardo, me deparei com a cena de, na hora do almoço, ver seu pai sentado a mesa esperando que sua esposa o servisse. Em um primeiro momento, aquela situação me fez pensar na tamanha opressão vivenciada por aquela mulher. Com o tempo e com a convivência, descobri que aquela mulher tinha lutado pela sobrevivência de seus 9 filhes, em vários momentos da vida, sozinha. Seu marido migrou para regiões do Pará em busca de trabalho no garimpo em período distintos, a deixando meses sem notícias. Os filhos homens, ao crescerem, seguiram o mesmo caminho. Desses, um foi assassinado e enterrado sem que ela ao menos tivesse o direito de homenageá-lo, realizando um funeral junto aos entes queridos – fato semelhante ao que hoje ocorre com a disseminação da pandemia. Ao me contar isso, agarrada a foto do filho, a sua força em permanecer e em não perecer a todas as agruras da vida reluzia em seus olhos. Suas preocupações não eram com o fato de servir a comida do marido, mas de o porquê tinham tirado a vida do seu filho e não tinham lhe dado ao menos o direito de enterrá-lo dignamente. Quais as raízes da vulnerabilidade social que levam as pessoas – no caso, seu filho – a apostar a única coisa que possui, seu corpo e sua vida? “É preciso viver nas trincheiras para lembrar que a guerra contra a desumanização é inerente” (LORDE, 2019: 244).
Essa história me fez perceber a cegueira de meu feminismo branco, sudestino, e a necessidade de, a todo momento, desenraizar padrões de opressão sedimentados em minha existência para ir além dos aspectos mais superficiais da mudança social, como ressalta Audre Lorde (2019: 247).
A história de Dona Maria, retratada acima, é para ressaltar a urgência de que, nesse momento de pandemia, as nossas diferenças não nos ceguem, nos incapacitando e nos impossibilitando pensar criativamente soluções coletivas que protejam e garantem a vida de mulheres vulneráveis.
“Nós escolhemos umas às outras
e o limite das batalhas de umas e outras
a guerra é a mesma
se perdermos
um dia o sangue das mulheres irá coagular sobre um planeta morto
se vencermos
não há como saber
buscamos além da história
por um novo e mais possível encontro”
(Trecho do poema “Outlines”, Audre Lorde)
Amanda Gomes Pereira é antropóloga e professora de Sociologia. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Docente Adjunta do Curso de Ciências Humanas/ Sociologia, campus São Bernardo. Solteira, sem filhos, vivendo na fronteira entre dois estados (Piauí e Maranhão), se reinventando a cada travessia empreendida entre eles. Pelas emoções e trabalhos, transita entre os interiores do Maranhão e os interiores de Minas.
Tatiana Colasante é turismóloga e geógrafa. Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp campus Presidente Prudente). Docente Adjunta do Curso de Turismo da UFMA, campus São Bernardo. Solteira, sem filhos, vivente em trânsito Paraná-Maranhão.
Referências
BUTLER, Judith. El capitalismo tiene sus limites. In: Sopa de Wuhan: pensamento contemporâneo em tempos de pandemia. (Org.). AGAMBEN, Giorgio et.al.. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.
FASSIN, Diddier. La patetización del mundo: ensayo de antropología del sufrimiento. En. M. Viveiros y G. Garay (Eds.), Cuerpos, diferencias y desigualdades. Santafé de Bogotá: Utópica, 1999, p. 31-41.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
GONÇALVES, Eliane. Solteira, sem filhos: menos que meia pessoa? Mediações – Revista de Ciências Sociais, v. 22, p. 479-509, 2017.
LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997
LORDE, Audre. Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. In. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. (org.) HOLLANDA, Heloisa Buarque. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 239-249.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 4.ed. 2006.
[1] Síntese de Indicadores Sociais – SIS (IBGE, 2017).
[2] Dados da versão preliminar do Relatório Final do Plano Municipal de Saneamento Básico e Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (2020).
[3] Tempos rápidos e tempos lentos são temporalidades concomitantes e convergentes. A fluidez, a circulação, os fluxos implicam em tempos rápidos, em cidades onde há maior disponibilidade de materialidade e técnicas. Já a economia pobre opera em tempos lentos (SANTOS, 2006).