A miséria do futebol africano
Das 32 seleções que disputam a Copa na Rússia, apenas Nigéria e Senegal representam a África subsaariana. O continente não carece de jogadores excepcionais, mas estes são desejados pelos países ricos. Campeões africanos em 2015 e classificados para as últimas três edições do mundial, os marfinenses assistem a esta Copa pela TV. No dia a dia, seus clubes profissionais apenas sobrevivem
Em Koumassi, comuna a sudeste de Abidjã, o pátio da escola municipal se transforma em campo de treinamento durante as férias escolares. Nessa manhã de abril, os aprendizes de futebol da “academia” Métro Star chutam a bola, sob um calor sufocante. Cofundador dessa academia semelhante a centenas na capital econômica da Costa do Marfim, Aristide B.1 treina equipes de jovens. Esse ex-jogador de futebol profissional aponta seu melhor atleta. De camisa e short vermelhos, um garoto de 9 anos dá um passo adiante. “Eu quero jogar na Europa”, diz, seguro de si. Ele está ciente dos riscos de tal aventura? A estrela em ascensão do Métro Star concorda com a cabeça.
Pagamentos atrasados, bichos não pagos, lesões e cuidados hospitalares não assumidos: esse é o dia a dia dos jogadores africanos. Em oposição aos poucos privilegiados que vendem seu talento a preço de ouro nos campeonatos europeus, eles vivem com frequência sem contrato e em condições de trabalho deploráveis.
Ex-capitão da seleção da Costa do Marfim, Yaya Touré ganha cerca de 1 milhão de euros por mês no Manchester City;2 Neymar, a estrela brasileira do PSG, mais de 3 milhões…3 Esses jogadores pertencem à elite que ganha mais de US$ 720 mil por ano: 2% dos assalariados do futebol, segundo um estudo do Sindicato Mundial de Jogadores (Fifpro) feito em 2016 com 54 sindicatos nacionais. A maioria deles atua na Europa, nos países do Golfo ou na China. Em contraste, 21% dos jogadores recebem menos de US$ 300 por mês. Entre esses profissionais pobres, muitos trabalham para os clubes africanos, que pagam os salários mais baixos. E se, em termos globais, 41% dos jogadores questionados citam remunerações diferenciadas durante as duas últimas temporadas, na África essa proporção chega a 55%. O continente é de longe o mais precário para os jogadores: 15% não têm contrato, contra 3% na Europa.
O testemunho de Aristide B. e de três de seus amigos jogadores, originários como ele de Koumassi, ilustram a lacuna entre os sonhos de fortuna de milhões de jovens africanos e a dureza da divisão do trabalho no planeta do futebol. Apesar de uma sucessão de experiências dolorosas em vários clubes, Justin S., de 27 anos, ainda espera calçar novamente as chuteiras.
Aos 17 anos, em 2007, ele assinou seu primeiro contrato profissional. Seu pagamento mensal de 76 euros era inferior ao salário mínimo da Costa do Marfim (91,50 euros). O bônus de rendimento de 229 euros previsto no contrato nunca foi honrado. “A presidenta nos ganhava pelos sentimentos: ‘Eu sou sua mãe, sua mãe não tem dinheiro’. Caíamos na armadilha”, conta. Depois de um teste fracassado em um clube da Tunísia em janeiro de 2008, ele tentou a sorte na segunda divisão da Costa do Marfim. O começo do inferno. “Eu recebia pouco mais de 15 euros por mês, quando os operários ganhavam 5 euros por dia”, desabafa. Para encorajar os atletas a batalhar para subir para a primeira divisão, a gestão do clube acenou com bichos de 30 euros por vitória. A equipe ficou dois meses sem vencer e o salário foi pago com atraso. As condições de moradia também lembravam as piores oficinas clandestinas. Justin S. lembra que os jogadores dormiam diretamente no chão, usando as mochilas como travesseiro.
Dez anos depois, esse tipo de condição persiste na Costa do Marfim. Os presidentes de clube concordam com isso, do seu jeito. Paternalista, Bernard Adou, presidente da Associação Esportiva de Indénié [Association Sportive de l’Indénié (ASI)], um clube da Liga 1 de Abengourou, no leste do país, conclama os jogadores lesados a fechar os olhos: “Mesmo em caso de condições precárias e de não pagamento de salários, os jogadores devem jogar. Um salário não pago a gente recupera, mas uma partida, não”, continua Adou. Na verdade, salários e bichos não pagos nem sempre “são recuperados”.
Com a paciência esgotada, Justin S. e seus companheiros de equipe terminaram por boicotar os treinos em 2008-2009. Em uma carta aos dirigentes, os jogadores pediram colchões e ventiladores. Eles foram atendidos, mas as calamidades continuaram a se abater sobre o time. Um jogador contraiu malária e um jovem goleiro de 21 anos morreu no hospital em consequência de um choque nos treinos. Foi demais para Justin S. e quatro de seus companheiros de equipe, que decidiram deixar o clube durante a temporada. Melhor o desemprego do que a superexploração.
Aos 21 anos, seu colega Samuel K. também já experimentou os tormentos da vida de jogador profissional de futebol. Titular na primeira divisão, ele se machucou em dezembro de 2016. “A grama sintética do estádio Champroux, em Abidjã, onde é disputada a maioria das partidas do campeonato, está desgastada e perigosa”, testemunha. “Muitos se machucam ali.” O presidente do clube concordou em pagar a operação… assim que recebesse o valor da transferência de outro jogador. Seis meses depois, o pagamento ainda não foi feito. A Federação de Futebol da Costa do Marfim assumiu o acompanhamento médico. Cedido para outro clube da primeira divisão, ele se machucou novamente em fevereiro de 2018. O presidente pediu a ele que ainda assim jogasse a partida seguinte, três dias depois. O jogador recusou. O pagamento de seu salário foi suspenso. “Já faz mais de um mês que não sou mais pago; os presidentes dos clubes da Costa do Marfim são todos iguais”, diz enraivecido. Ele não é o único a sofrer tal tratamento.
“Três meses sem receber na Liga 1 é comum”, denuncia Aristide B. “Às vezes, o pagamento do salário básico é condicionado à obtenção de uma ou mais vitórias consecutivas.” Segundo a Associação dos Jogadores de Futebol da Costa do Marfim [Association des Footballeurs Ivoiriens (AFI)], os “maiores” salários variam de 450 a 600 euros. A remuneração média do jogador de futebol local estaria na faixa de 230 a 300 euros, ou seja, três vezes o salário mínimo, em um país que retomou o crescimento (8% ao ano desde 2015). “Como você quer que, no final de uma carreira, curta por definição, um jogador de futebol possa tirar proveito de suas economias e comprar uma casa?”, observa Cyrille Domoraud, presidente da AFI. O ex-goleiro da Inter de Milão nos recebe na sede da organização, que fica em Cocody, uma comuna rica ao norte de Abidjã.
Capitão da seleção marfinense, Domoraud jogou na França, no Olympique de Marselha e no Mônaco, depois no Espanyol, de Barcelona. Os outros membros fundadores da associação também fizeram grandes carreiras na Europa. Ícone do futebol marfinense, adorado no país, Didier Drogba venceu a Liga dos Campeões da Europa pelo Chelsea. Outra estrela nacional, Kolo Touré, também jogou na Inglaterra, no Arsenal, no Manchester City e no Liverpool.
Poucos são os que ousam dar início a um processo para fazer valer seus direitos. Por medo de represálias. Vice-presidente da Federação de Futebol da Costa do Marfim [Fédération Ivoirienne de Football (FIF)], Sory Diabaté nega qualquer responsabilidade. “Alguns jovens se queixam de não serem pagos, mas eles nem sequer têm sua cópia do contrato. Impossível tomar uma decisão sem haver um contrato”, desvencilha-se o dirigente, que também é presidente da Liga Profissional de Futebol. Enquanto Diabaté responde às nossas perguntas em seu escritório, um funcionário da federação filma a entrevista. Outro assiste à conversa. “Essa comissão não é independente nem paritária, como recomendado pela Fifpro”, objeta Domoraud: os jogadores da AFI não têm assento ali, o que alimenta uma suspeita de desequilíbrio em favor dos empregadores. Os presidentes de clube não elegem os membros do comitê executivo da federação marfinense?

Na Costa do Marfim, a sobrevivência dos clubes profissionais depende de financiamento federal. Todo clube recebe a mesma cota, fixada em 114 mil euros por ano. Esse igualitarismo não é unânime. Pela voz de seu diretor-gerente, Benoît You, o Asec Mimosas acusa esse sistema de desmotivar clubes dinâmicos e com boas atuações. O Asec recomenda um subsídio composto de uma parte fixa, idêntica para todos, e de uma parte variável, indexada ao grau de organização dos clubes. A maioria dos dirigentes e a FIF rejeitam essa possibilidade.
Além das disputas internas, o futebol marfinense é prejudicado sobretudo por sua crônica incapacidade de gerar receita. A afluência média de uma partida da primeira divisão é de cerca de mil espectadores. Apenas um confronto atrai multidões: o Asec Mimosas contra o Africa Sports. Rivais históricos, esses dois times de Abidjã são os mais prestigiados do país. Cinco mil espectadores assistiram ao seu último confronto. De um montante de 750 euros, a receita magra foi dividida igualmente entre os dois clubes… Dado o baixo nível de exposição, os patrocinadores não têm interesse em colocar seu logotipo nas camisetas dos jogadores.
Desde 2016, o Canal+ paga 2,3 milhões de euros anualmente à Federação Marfinense para transmitir os jogos da primeira divisão. Esta se recusa a divulgar esse montante, que nos foi confirmado por vários dirigentes de clubes e que parece irrisório, enquanto a Liga Profissional Francesa deve receber 1,153 bilhão de euros em direitos de retransmissão por temporada a partir de 2020. “Graças ao contrato com o Canal+, a federação conseguiu aumentar o subsídio para os clubes em 25%”, argumenta seu vice-presidente, Diabaté. Não é certo que isso seja suficiente.
Um exemplo é o Stella Club, uma equipe emblemática da comuna deserdada de Adjamé, ao norte de Abidjã. “Todo ano faltam pouco mais de 90 mil euros para pagarmos nossas despesas”, expõe o irreverente Salif Bitogo, diretor-geral das filiais togolesa e beninense da Snedai, concessionária dos passaportes e vistos biométricos em nome desses países. “Tiramos do nosso bolso. Eu adianto dinheiro há mais de dez anos!”, completa o presidente do Stella, entre duas explosões de riso. A subvenção federal cobre apenas um quarto do orçamento anual e, após o rebaixamento do clube para a Liga 2, em 2015, o grupo Orange se retirou. Desde então, nenhum outro patrocinador assumiu. Seus jogadores também emprestam ao clube… contra a vontade. “Eu lhes pago com pelo menos um mês e meio de atraso. É preciso que eu mesmo tenha recursos, especialmente pelo fato de a federação pagar a subvenção em várias vezes, geralmente com atraso”, justifica ele, que foi jogador do Stella antes de presidir os destinos de seu clube de coração, desde os 18 anos.
Como a maioria de seus colegas, Bitogo usa o pagamento de seus jogadores como uma variável de ajuste orçamentário e ressalta seu desinteresse e sua experiência de empreendedor, prova de seriedade e de profissionalismo, segundo ele. Menos legítimos e mais interessados, alguns dirigentes puxam para baixo o futebol marfinense. “Se houvesse um policiamento financeiro, como na França [onde a Direção Nacional de Controle de Gestão supervisiona as contas dos clubes profissionais], mais da metade dos clubes seria rebaixada”, diz.
Agente de jogadores influente, Abdoulaye Diabaté confirma esse diagnóstico. “Alguns clubes só vivem da subvenção. Eles não têm nenhuma ideia de como crescer, seus dirigentes não são empresários”, lamenta ele, que é também gerente-geral da ASI. “Empreendedorismo” seria um remédio para o subdesenvolvimento do futebol marfinense?
Presidente da ASI, Bernard Adou parece corresponder ao perfil delineado por seu colaborador. Esse empresário dirige a filial marfinense do grupo GEA, empresa francesa especializada na instalação de cabines de pedágio. Ele nos recebe na sala de sua luxuosa villa em Abidjã. Adou assumiu o clube em 2014 e herdou uma equipe cujos jogadores recebiam uma miséria: cerca de 90 euros, o salário mínimo. O empresário aumentou os salários e formou um time competitivo. Os resultados esportivos se seguiram. “Este ano, os salários estão sendo pagos regularmente. Cada vez mais”, assinala Abdoulaye Diabaté, com uma ponta de malícia.
Impulsionado por grandes ambições, Adou não se contenta em trabalhar para o progresso esportivo de seu clube. Em dezembro de 2016, ele foi eleito deputado da circunscrição de Abengourou. “O clube contribuiu com algo em torno de 30% a 40% para minha eleição”, diz o presidente da ASI assumindo o fato. “Pessoas que não me conheciam me viram na TV.” Em março, ele anunciou sua candidatura à presidência do Conselho Regional de Indénié-Djuablin, de que Abengourou é a principal cidade. “Apenas os políticos são capazes de dirigir clubes na África”, assegura Adou. “Se amanhã eu me tornar presidente do conselho regional, vou colocar dinheiro para desenvolver o clube. Um empresário não vai investir em um clube que não vai lhe render nada.” O presidente da ASI pode estar seguindo os passos de seu equivalente do AS Tanda. Líder empresarial e vice-prefeito da circunscrição de Assuéfry-Transua, no nordeste do país, Séverin Kouabénan Yoboua conquistou dois títulos da Liga 1, em 2015 e 2016.
Na Costa do Marfim, a porosidade entre o mundo político e o universo do futebol é uma tradição antiga. Na década de 1980, Simplice Zinsou governou o futebol marfinense. O genro do chefe de Estado e pai da independência, Félix Houphouët Boigny, presidente do Africa Sports, ignorava os problemas de fluxo de caixa. “Simplice Zinsou tinha presença em todos os lugares”, lembra com saudade Alexis Vagba, atual presidente do Africa. “O clube tinha os meios para segurar jogadores tentados por uma carreira no exterior.” O ex-dirigente do clube chegava a buscar talentos em outros países africanos. Fiel ao Africa por quarenta anos, Vagba conheceu os tempos áureos, seguidos de uma relativa decadência. “Empreendedor de sucesso, Simplice Zinsou não tornou o clube permanente. O Africa nunca teve um patrimônio, nem sequer possui um campo para treinar!”, afirma desolado. O segundo maior clube da Costa do Marfim aluga o gramado em que seus jogadores se aperfeiçoam… Seu centro de treinamento é “ambulante”. Um ônibus pega os jovens jogadores de manhã e os leva para casa à noite.
A maioria dos clubes marfinenses não tem sede. Na falta de escritórios, os dirigentes recebem seus parceiros de trabalho em casa ou em bares de hotéis. “Na África subsaariana, o profissionalismo não é desenvolvido, tanto em termos de infraestrutura quanto de organização”, resume Stéphane Burchkalter, secretário-geral da divisão africana da Fifpro.
No entanto, do ponto de vista geral, tem-se por certo que o clube mais badalado da Costa do Marfim é uma exceção. O Asec Mimosas é por unanimidade considerado a única entidade de futebol verdadeiramente profissional. Como o Africa, a associação esportiva dos empregados do comércio se beneficiou de altos apoios. Irmão do atual presidente, Georges Ouegnin era o braço direito do presidente Houphouet. Diretor do Protocolo da Presidência da República, era considerado o número dois do regime. “Isso mostra que há sempre conexões políticas duvidosas no futebol marfinense”, observa Alexis Vagba. “Sem essas conexões, um clube não consegue se desenvolver.” Em contraste com Simplice Zinsou, Roger Ouegnin, presidente do clube desde 1989, forneceu a ele os meios para se desenvolver a longo prazo. Tornou o Asec um dos clubes mais bem estruturados da África subsaariana.
Com o Sol Béni, sua sede social e seu complexo esportivo de 10 hectares instalados à beira da lagoa Ébrié, em Cocody, o Asec Mimosas possui equipamentos que fazem jus à sua reputação. Dois campos de treinamento, um centro de formação, escritórios administrativos, um prédio dedicado aos meios de comunicação do clube e até mesmo um hotel com piscina. Gerente de comunicação, técnico da equipe dos jovens com menos de 15 anos… e diretor-geral, o francês Benoît You faz malabarismos entre as funções. Ele nos guia por esse lugar sem equivalente no país.
Entramos em uma sala de aula da academia. Com idade entre 13 e 17 anos, uma dúzia de estudantes faz um curso sobre centros de saúde e automedicação. “Fabrice, quantos vocês eram na classe antes de entrar na academia?”, pergunta You. A resposta da criança: “45”. Outra: “70”. As classes da Mimosifcom são menos lotadas do que as da Educação Nacional da Costa do Marfim. Entre os estudantes, dois voarão para a Europa no dia seguinte, indo para a França e a Bélgica, onde competirão em torneios juvenis.
A melhor escola do país capacita 45 futuros jogadores profissionais, com idade entre 12 e 18 anos. Escolhidos a dedo, esses jovens são geralmente dos bairros pobres da capital. O orçamento anual de 300 mil euros é totalmente fornecido pelo grupo agroindustrial Sifca, o maior empregador da Costa do Marfim, com 30 mil empregados. O Asec oferece aos seus jogadores rendimentos que variam de 500 a 800 euros por mês. Valor irrisório em comparação com o que poderiam ganhar na Europa, Ásia, norte da África ou África do Sul, essas quantias representam três vezes os salários oferecidos em outros clubes marfinenses. As receitas vêm dos anunciantes, mas também – a metade – da transferência de jogadores para clubes marfinenses ou estrangeiros: “Por falta de meios suficientes para segurar nossos talentos, somos obrigados a vendê-los. O clube ganha um pouco de dinheiro, mas isso empobrece o espetáculo”, admite You.
Vinte anos atrás, o espetáculo estava presente. No andar da direção, uma galeria de fotos de ex-jogadores faz reviver a década gloriosa do clube. Nos anos 1990, os melhores jogadores de futebol da Costa do Marfim jogavam no Asec e formavam a espinha dorsal da seleção que conseguiu se classificar três vezes para a Copa do Mundo (em 2006, 2010 e 2014) e ganhou a Copa Africana de Nações em 2015. Bakary Koné foi um deles. Esse ex-atacante do Olympique de Marselha entre 2008 e 2010 cresceu em Williamsville, um bairro popular no norte de Abidjã. Descoberto por olheiros do Asec, ele integrou a primeira turma da academia aos 13 anos de idade, em 1994. “Aos 17 anos, eu sonhava com uma carreira para poder ajudar minha família. Isso foi o que todos os frequentadores da academia fizeram”, diz Baky em voz baixa. Depois de quatro temporadas no Asec, ele jogou um ano no Catar, um prelúdio para uma grande carreira no campeonato francês.
Tendo voltado ao seu clube de formação em 2016, o jogador agora trabalha como gerente administrativo e lembra a era de ouro de seu começo. Os torcedores do Asec e do Africa dormiam em frente ao estádio Houphouet Boigny, em Abidjã, para garantir o lugar! Esse tempo passou. A banalização do futebol na televisão mudou a relação dos torcedores com seu time favorito. “O torcedor do Asec atua como consumidor de um espetáculo esportivo. Ele compara os produtos. De um lado, a Liga dos Campeões da Europa na televisão, com suas estrelas internacionais. De outro, Asec contra Bassam no estádio, um jogo medíocre jogado em um campo de má qualidade, a uma temperatura de 40 graus. Sua escolha é feita rapidamente”, resume de forma abrupta You.
O campeonato da primeira divisão foi criado em 1960, três anos após a primeira edição da Copa Africana de Nações. Depois de décadas de progresso relativo, o Tribunal Europeu de Justiça deu um golpe fatal na ascensão do futebol africano. Em 15 de dezembro de 1995, o acórdão Bosman proibiu as cotas de jogadores de futebol estrangeiros autorizados a jogar em uma equipe profissional da União Europeia. Assinado em 23 de junho de 2000, o Acordo de Cotonou estendeu essa disposição aos cidadãos africanos. Desejados pelo Eldorado europeu, os futebolistas do continente negro emigraram então em massa e, desde os 18 anos, como exige a Fifa. “A extensão do acordo Bosman transformou a África”, observa Sory Diabaté. “Nossos jovens se identificam com jogadores que embolsam milhões de euros. Eles querem sair, e cada vez mais cedo.” Custe o que custar.4 Entre os melhores, muitos optam pela dupla nacionalidade, a fim de jogar em uma equipe nacional europeia. Assim, durante a Eurocopa de 2016, quarenta jogadores de origem africana jogaram em um time europeu.5
“Os clubes europeus compram a preço baixo jogadores africanos de 18, 19 ou 20 anos, para obter lucro na revenda”, assinala Benoît You. Aliás, muitas vezes eles se recusam a pagar as indenizações de formação para os clubes de origem, como mostra o infortúnio do Aigles Verts de Kinshasa (República Democrática do Congo), que não conseguiu obter do clube belga Anderlecht o custo de formação do jogador Junior Kabananga. “Se a dominação colonial não pode ser responsabilizada por todos os males, é difícil ignorar seu impacto nos termos de troca”, diz Jérôme Champagne, ex-diretor de relações internacionais da Fifa de 2007 a 2010. “Como os minerais e o petróleo, os jogadores de futebol são extraídos de seus países de origem, explorados e valorizados pelos países ricos, especialmente os europeus.”
Desanimado, o presidente do Africa Sports está prestes a passar o bastão. Com voz baixa, no hotel onde nos encontramos, Alexis Vagba confidencia um segredo: “O clube não tem meios de progredir. Eu corro por todos os lugares para fazer como o Asec. O Africa está sendo cedido para um investidor belga”. O comprador em questão está justamente negociando com um de seus colaboradores, duas mesas adiante… Depois dos jogadores, os clubes? Decididamente, o futebol marfinense desperta muito desejo.
Solidamente estabelecido na África, como o grupo Bolloré, sua matriz, o Canal+ faz parte de uma estratégia para apoiar os clubes de futebol locais. “O Canal+ forneceu à Liga 1 francesa a visibilidade e os meios financeiros para se desenvolver. O campeonato da Costa do Marfim pode ser profissionalizado no mesmo modelo”, quer acreditar o diretor de “produção esportiva” da rede na Costa do Marfim. Tendo rompido com as técnicas de comercialização, o volúvel Eddy Rabin quer transformar em eventos as partidas para tornar mais atraente o “produto Liga 1” e atrair um público jovem e moderno. Pelo mesmo preço, entretenimento, dança e concertos vão animar regularmente o antes e o depois da partida. Isso colocará fim ao êxodo? De acordo com um estudo do International Football Observatory, 173 jogadores marfinenses escolheram o exílio em 2018.6
Proletários da bola
Formado em Yaundé (Camarões), sua cidade natal, Anthony B. é um trabalhador da bola. Filho de um agricultor, esse jovem de 23 anos já circulou por toda a África do futebol. Em 2002, após uma difícil primeira experiência na segunda divisão de Camarões – “zero de salário” –, ele emigrou para a Guiné Equatorial, onde, em busca de uma “vida melhor”, assinou com um clube da primeira divisão. Seu agente roubou seu bônus de rendimento. Ele continuou a carreira na Nigéria, onde foi pago corretamente (mil euros mensais). Mas se machucou. Convidado a sair, juntou-se a um clube senegalês, ganhando… 45 euros por mês. Aguentou trinta dias. “Cheio de raiva”, acabou desembarcando na Costa do Marfim, onde um treinador lhe exigiu uma parte de seu bônus. Fim da odisseia. Provisoriamente? Sempre no ataque, Anthony “procurou países com condições favoráveis para ser bem acolhido”. Enquanto isso, ele treinava com outros jogadores de futebol no destino maltratado de Koumassi, comuna a sudeste de Abidjã.
O destino favorito dos jogadores de futebol africanos fica mais ao norte. “Como lhes oferecem 600 euros por mês, eles estão prontos para ir para qualquer clube, apesar de todos os riscos, financeiros ou físicos, mesmo que tenham de mentir a idade ou cruzar o Mar Mediterrâneo numa jangada”, diz o jornalista Barthélemy Gaillard, coautor de um livro sobre os jogadores migrantes egressos da África.7 Segundo o Observatório de Futebol do Centro Internacional para o Estudo do Esporte [Centre International d’Étude sur le Sport (Cies)], os africanos representam 8% do efetivo dos clubes profissionais europeus.
Mesmo que não consigam realizar o sonho de se tornar um jogador de futebol, “apesar da desilusão, é uma alegria ter escapado da miséria e viver na Europa”, assinala Jean-Claude M’Bvoumin, ex-profissional camaronês que preside o Foot Solidaire, uma associação de apoio aos imigrantes da bola. Seu compatriota Geremi Njitap, ex-jogador do Real Madrid, hoje presidente da Associação de Jogadores de Futebol Camaroneses [Association des footballeurs camerounais], luta contra os agentes apressados em vender seus jogadores na Europa a qualquer preço e com o risco de criar um impasse sobre o pagamento das indenizações de formação para os clubes formadores (somas úteis para o desenvolvimento do futebol amador e profissional na África). “As indenizações de formação ou de solidariedade não chegam aos clubes formadores, porque as federações nacionais não são honestas”, denuncia esse que também preside a divisão África da Fifpro, o Sindicato Mundial dos Jogadores. Coincidentemente, no hotel onde o encontramos, o palácio desenrolou naquele dia o tapete vermelho para… George Weah, o novo presidente da Libéria, eleito o melhor jogador de futebol do mundo em 1995, no momento em uma visita de estado à Costa do Marfim.
Direitos de TV, técnicas de marketing, patrocínio de empresas… Os países do norte da África assumiram uma liderança considerável sobre seus vizinhos do sul, como evidenciado pela classificação do Egito, Tunísia e Marrocos para a Copa do Mundo de 2018. “Próximos da Europa do ponto de vista geográfico, assim como em termos de funcionamento, seus clubes têm recursos muito superiores aos nossos”, reconhece Sory Diabaté, presidente da Liga Profissional de Futebol da Costa do Marfim. Consequência feliz: os jogadores locais não são obrigados a arriscar a pele em uma embarcação clandestina. Eles ficam no norte da África e conseguem ganhar a vida. O mesmo ocorre na África do Sul, onde os melhores jogadores ganham cerca de 9 mil euros por mês, relata Thulaganyo Gaoshubelwe, presidente da associação de jogadores de futebol sul-africanos.
A mil milhas de distância do mundo chamativo do foot business, Luc Lagouche, professor de profissão, treina voluntariamente os Black Stars de Kibera, no Quênia. Essa modesta equipe de segunda divisão é o orgulho dos moradores da maior favela de Nairóbi. “O projeto é mais social que esportivo”, proclama com orgulho o diretor de esportes do clube. “Com o apoio de nossos patrocinadores, ajudamos os jogadores a aprender um ofício. Mesmo em uma favela, o futebol pode ser uma alavanca para a inserção.” Seria possível haver um outro futebol na África? (DG)
*David Garcia é jornalista.