A morte do jovem Naël e as intensas manifestações na França
A onda de manifestações nas cidades francesas denuncia o excessivo recurso da força letal do Estado contra grupos racializados e, portanto, seu racismo estrutural
A morte do jovem Naël Merzouk na região metropolitana de Paris, em Nanterre, acendeu intensas manifestações por todo país contra o abuso de poder dos agentes do Estado. Na terça-feira (27), o jovem de 17 anos, de origem argelina, foi morto por um policial após se recusar a parar em uma blitz de trânsito. O policial acusado pela morte e os demais agentes envolvidos na cena defendem a narrativa que o ataque se deu por legítima defesa, após o jovem avançar o carro contra os agentes. Todavia a divulgação de um vídeo contradisse essa versão, mostrando que após o tiro dado pelo policial o carro ainda percorreu cerca de 50 metros até parar em um poste, sem nenhum tipo de ataque proferido pelo jovem. As imagens ainda mostram os policiais apontando uma arma contra o motorista, com a seguinte frase sendo ouvida ao fundo: “você vai levar bala na cabeça”, fato que ocorre após o arranque do carro.
O Ministério do Interior de Paris mobilizou por volta de 45 mil policiais durante a noite de sexta feira (30), com veículos blindados, no intuito de impedir que os protestos continuem ganhando força por toda cidade de Paris. Em outras cidades, como Lyon, Marseille e Strasbourg, as autoridades locais proibiram manifestações e eventos que tivessem como bandeira o repúdio pela morte do jovem. Mesmo diante da proibição, houve saques e confrontos violentos em Lyon e Marseille. Segundo o ministro francês do Interior, Gérald Darmanin, a violência tem diminuído sua intensidade em comparação com os outros dias de protestos, mesmo tendo em vista que o número de detidos tem sido substancialmente maior que nos primeiros dias de protesto. Ao todo, os agentes de segurança prenderam mais de 1.300 pessoas em todo país, segundo fonte da polícia. A expectativa é que mesmo diante da forte repressão dos agentes públicos de segurança, chancelados pelas autoridades locais, o país passe por mais uma noite de fortes e violentos protestos, principalmente nos arredores de Paris.
Movimentos e grupos de Direitos Humanos acusam o sistema francês de racismo sistêmico – quando as estruturas sociais, políticas e instituições favorecem economicamente, socialmente e até mesmo psicologicamente a raça branca. Os manifestantes também reclamam da forte repressão contra crimes em esferas civis, além da própria estrutura que incentiva a violência contra negros e imigrantes em território francês. O mesmo ministro do Interior, ao tocar no assunto do incêndio ocasionado pelos protestos em prédios municipais em Mons-en-Baroeul, reiterou que “a resposta do Estado deve ser extremamente forte”, contrapondo qualquer iniciativa de diálogo por parte das autoridades com os manifestantes.

O que estaria por detrás das posturas reativas e violentas dos agentes públicos de segurança na França?
Além da resposta produzida pela ação criminosa dos policiais nesse caso em específico, vem à tona toda a insatisfação do povo francês a respeito da violência policial. Há poucos meses, a inércia das forças policiais parisienses frente às manifestações de cunho nazifascistas causou indignação e repúdio da população. A onda de manifestações nas cidades francesas denuncia o excessivo recurso da força letal do Estado, camuflado diversas vezes pelas autoridades nos processos legais, como regra profundamente enraizada no modus operandi dos agentes.
A efervescência das manifestações nos subúrbios parisienses expõe a insatisfação dos grupos etnicamente diversos que ali residem, que procuram não somente uma resposta das autoridades contra tais ações criminosas, mas o reconhecimento dos seus direitos legais como cidadãos franceses.
Se o governo de Emmanuel Macron teve de superar diversas crises de ordem civil durante seu mandato – como as já citadas manifestações contra a reforma da Previdência, o terrorismo, os coletes amarelos -, pode-se adicionar a contínua, e cada vez mais forte, crise que se desenvolve no banlieue, a periferia francesa. Os registros nos últimos 18 anos de agitações nessas periferias, marcadas pela concentração de franceses descendentes de imigrantes, são normalmente desencadeados pela morte ou ação violenta da polícia contra algum jovem residente. Quase unânime os gritos dos manifestantes sobre a negligência social, a brutalidade dos agentes do Estado e a discriminação racial, que culminam em um cenário marcado pela disparidade de classe e pela hegemonia do poder.
A cicatriz nascida no colonialismo, inflada pela arrogância e ambição do colonizador e alimentada pelo ódio ao diferente não está com os dias contados para fechar, pelo contrário. Cada vez mais, a herança do passado é renovada e sistematizada no ambiente institucional do Estado, e o discurso sempre será classificado como “injustificável”, como feito por Macron. Entretanto, na prática, nota-se a implacável repressão contra manifestantes, de toda categoria, além das mais variadas ações, que só mudam a intensidade da violência, contra quem não possui o estereótipo nacional francês. Naël foi só mais uma vítima.
Railson Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio) e doutorando em Política Social (UFF).